domingo, novembro 01, 2009

ALICE E O ESPELHO

Cansei-me de ler livros. Ando agora nas redes sociais da Internet, fazendo amigos, adicionando nomes à minha lista de contactos, escrutinando as fotografias e os perfis que me chegam nos fluxos mágicos do espaço virtual.
Ontem conheci um rapaz de nome Pierre. Francês? Não sei. A fotografia mostra-o com uma cabeleira negra, os olhos vagos, um cachecol desabado sobre o casaco de lã de cores amarela e verde, um sorriso terno que faz pensar em alegrias que estão muito para lá da ligeireza das teclas ou dos reflexos do ecrã. Engenheiro informático, solteiro, nascido a 23/7, omisso o ano, mas, pelo aspecto, aí pela casa dos trinta. Talvez trinta e muitos, mas que importa? Até aos quarenta anos os homens estão como novos, isto já eu ouvia à minha mãe, senhora comprovadamente experiente em tudo quanto ao sexo oposto diz respeito.
Antes de me dedicar às redes sociais da Internet, frequentei ginásios, lugares onde, com sorte, podemos melhorar a silhueta e conhecer atletas. Os corpos são como poemas. Vi muitos bíceps, muitos músculos abdominais que me cortaram a respiração acelerada pelos exercícios de marcha no tapete rolante. Um dia, porém, descobri que só homens desinteressantes se chegavam ao pé de mim com as mais incríveis propostas: um treino de jogging na pista da Cidade Universitária, um café à saída, a participação numa qualquer prova de corrida pedestre ao fim-de-semana. Achei que não compensava tanto esforço, tanto dinheiro gasto ao fim do mês, tanta desorganização de horários no termo do dia de trabalho. Chegava a casa sempre depois das nove, exausta e cheia de fome. Comia muito, e engordava disparatadamente. Desisti.
Depois de abandonar os ginásios juntei-me a um grupo de observadores de aves que se passeava de binóculos e máquinas fotográficas nas veredas da Serra de Sintra. Precisava de conhecer pessoas. Andei fins-de-semana a fio pelas zonas do Rio da Mula e da Lagoa Azul em demanda do falcão-peregrino, do gavião, do pombo-torcaz e da ferreirinha-alpina. Havia homens interessantes naquele círculo de amadores da natureza. Um dia, quando subíamos a uns penhascos de onde se avistam os longes do Cabo da Roca, fui auxiliada pelo Mário, um homem casado, o mais atraente de todos os membros do grupo. Agarrou-me pela cintura, encostou-se, e antes de me empurrar para cima tomou a liberdade de me apalpar demoradamente os seios, como se manipulasse duas alavancas impulsionadoras da minha subida ao coruto das rochas. Gostei que me fartei. O pior foi a mulher, observadora tanto das espécies avíárias como das movimentações do marido, que logo ali, desrespeitando o silêncio exigido para a observação dos pássaros, se pôs a ralhar asperamente com o fogoso consorte.
Saí pela porta pequena do grupo de amigos das aves e, através de uma colega, comecei a ir às reuniões duma comunidade de leitores. Livros e mais livros, discussões longas sobre temas que por mais que me esforçasse nunca conseguiria acompanhar. Memórias de Adriano, As Cidades Invisíveis, O Lobo das Estepes, livros grossos e duros como uma noite sem companhia. Participavam muitas mulheres na comunidade de leitores, pois, diz-se, são elas que mais apetência demonstram pela leitura. Quanto a homens, eram escassos e gastos.
Ainda se falassem de livros como os Onze Minutos do Paulo Coelho, ou desses que são escritos por personalidades conhecidas da televisão, que não dão trabalho a ler, como Não Sei Nada Sobre o Amor e tantos outros, ainda teria feito um esforço para me manter na comunidade. Assim não. Prefiro a Internet. A vida passa diante dos meus olhos como um grande quadro do mundo, sem complicações, à distância simples de um clique. Quando bem calhar dou o salto para o lado de lá. É assim como atravessar um espelho.

AINDA OS DIÁRIOS

O diário é uma escrita datada, fragmentária, intermitente. Philippe Lejeune chama-lhe o “grau zero” da construção textual, e, de certa forma, esse parece ser o sentimento de escritores como José Régio. O poeta d´As Encruzilhadas de Deus diz nas Páginas do Diário Íntimo: Um diário é informe ou disforme, desconexo, espontâneo, sei lá! Não é, ao menos pela forma, – uma obra de arte.
Contrariamente a estes juízos, os diários de Maria Gabriela Llansol (Um Falcão no Punho, Finita e Inquérito às Quatro Confidências) assumem-se como peças exemplares de literatura e reflexão. São obras de arte.

Herbais, 20 de Outubro de 1982

Manhã cheia de sol, em contraste com a atmosfera pluviosa dos últimos dias; querer continuar a escrever
Contos do Mal Errante é a minha resposta luminosa à manhã. Ultimamente julgava que o meu corpo era menos maleável, que, onde uns desejos se alargavam, outros se restringiam. Mas sei que o corpo responde à voz altissonante que chama, e ele próprio grita; assim, também ele ainda contém o amor carnal, que é bom condutor do humano. (…) Senti-me feliz sobre a superfície da terra que pisamos. O regresso ao corpo do Augusto ontem não podia passar despercebido nesta hora do Diário.

Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho, Lisboa, Edições Rolim, 1985, p. 90.

quinta-feira, outubro 29, 2009

A SURPREENDENTE E SEMPRE PROVEITOSA LEITURA DOS DIÁRIOS


Portalegre, 18 de Maio de 1953

Acabo de acompanhar ao cemitério, e de a fechar no seu caixão, a velha Lúcia, que me serviu durante quinze anos. Era casada, vivia com o marido e os filhos, e vinha todos os dias fazer-me o serviço de casa. Deixou-me há cerca de dois anos, por já não poder trabalhar. Vinha visitar-me de vez em quando, e continuava muito pegada a este casarão. Mulher dos velhos tempos, com um profundo sentido de honestidade, e dignidade na sua pobreza. Como eu lhe dava alguma coisa quando me visitava, acanhava-se de vir só por isso. Algumas vezes fui duro para com ela. Obrigava-a a levantar-se bastante cedo, fosse Verão ou Inverno, para me vir servir o pequeno-almoço à cama. Nos últimos tempos, sobretudo de Inverno, era-lhe isso penoso; e eu sabia-o, mas pouco a poupava. Estimava-a sinceramente, no entanto. Por sua vez, ela era-me profundamente dedicada, tinha-me um grande respeito, e até na morte falou em mim e na minha casa.


JOSÉ RÉGIO, Páginas do Diário Íntimo, Lisboa, IN-CM, 2004, p. 249.

quarta-feira, outubro 28, 2009

UM REFERENDO INJUSTIFICADO

A propósito da aguardada lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aparecem agora certos defensores da família e da moral apregoando a necessidade de submeter a referendo tal matéria legislativa.
Pretendo mostrar que tal não faz sentido. E por várias razões. Vejamos:
1. O casamento é um contrato civil que estabelece direitos e obrigações em relação às pessoas que nele intervêm. A vertente patrimonial, ou seja, o reconhecimento de um conjunto de bens que passam a pertencer ao casal, é aspecto da maior relevância no contexto legal da união civil. Sabemos as garantias que daí derivam, tanto por morte de um cônjuge, como por divórcio. O que demonstra o interesse do legislador em não deixar desprovidos de meios patrimoniais o cônjuge sobrevivo ou os que forem obrigados à separação.
2. O objectivo do casamento não é necessariamente a procriação. Embora ela seja uma sua consequência natural, a verdade é que a razão principal que leva duas pessoas a uma vida em comum é do domínio da afectividade e do companheirismo.
3. Sendo assim, não me escandaliza a união entre pessoas do mesmo sexo. O amor não corre no sentido único do sexo oposto. Ele pode existir entre dois homens ou duas mulheres com a mesma dignidade do amor heterossexual, reclamando a constituição de laços familiares estáveis e duradouros.
4. Prosaicamente é então necessário comprar ou alugar uma casa, adquirir mobília e alfaias domésticas, fazer as despesas de manutenção do lar, afectando-lhes um orçamento para o qual cada um dos membros contribuirá na medida das suas possibilidades.
5. Nesta união de facto não salvaguardada pela lei, o que poderá acontecer por morte de um dos membros do casal ou por separação? Para quem reverterá o património comum? Há garantias de que, no caso de morte, o que resultou dum esforço de ambos (casa, carro, todo um conjunto de bens) não seja herdado ou apropriado por um irmão, um pai, um filho duma união anterior? E no caso de separação, como se fará a partilha dos bens comuns?
6. As indefinições avançadas são de uma injustiça clamorosa. O Estado tem a obrigação de garantir os direitos dos cidadãos, e os cidadãos em união homossexual não podem ter um estatuto de menoridade.
Pelas razões enunciadas não se justifica um referendo. Não estão em causa princípios éticos ou morais, apenas direitos e garantias dos cidadãos. Há que legislar, e basta!
Sabe-se que o que choca muitos dos moralistas que agora levantam a voz é a extensão da figura do casamento à união homossexual, em especial pela apropriação que dela fez a Igreja Católica, ao ponto de a instituir como um dos sacramentos da sua religião.
Sabe-se igualmente que o folclore e a bizarrice dos casamentos heterossexuais tenderá a estender-se a certos casamentos realizados entre pessoas do mesmo sexo. O ridículo, porém, fica com quem o procura. A maioria dos que passarão pelo Registo Civil para oficializar as suas situações não se prestará certamente a cenas de véu e grinalda, ou troca de alianças, ou ostensivos beijos na boca no momento da solenidade. Quem quiser dar espectáculo que o dê. A maioria dos interessados só quererá ver reconhecido um direito fundamental da pessoa humana: o direito à felicidade. Só isso.

sábado, outubro 24, 2009

LE BON USAGE DES MALADIES

Leio no Diário Inédito de Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, 2008, p. 130:

Évora, 21 de Novembro de 1948

Tenho de o dizer. Há um tipo que além do sarampo e adjuntos da infância teve aos treze uma pleurisia, aos dezasseis um duplo foco pulmonar, aos dezassete outro do outro lado, depois uma ladainha de moléstias: (…) e por aí, até que aos trinta e dois lhe tiraram um rim. Pois apesar de o físico estar todo alugado por mazelas, foi ainda possível, aos trinta e três, arranjar uma vagazinha para uma sinusite.
Caramba, esse tipo sou eu!
- Certamente um caso de le bon usage des maladies, nos moldes reflexivos de Blaise Pascal.

quinta-feira, outubro 22, 2009

"O rompimento da fraternidade"


Tudo porque Deus aceitou de bom grado as ofertas de Abel, constituídas por artigos de origem animal, e não demonstrou apreço pelo que lhe oferecia Caim, simples produtos da sua actividade agrícola.

Valorizando o labor da pastorícia e rebaixando o dos trabalhadores da gleba, Deus dividiu os irmãos e os homens. Instalou o ciúme no coração de Caim, fez-se autor moral do crime.

A Bíblia é um livro tão rico, tão rico, que dele pode sair uma literatura inteira. Está lá tudo o que diz respeito ao homem: a miséria e a opulência, o amor e o ódio, a guerra e a paz, as grandes e as pequenas paixões das almas.

Nas margens de tudo isto ficam os padres pregadores em púlpitos arruinados, os inquisidores de fato e gravata, as vozes estrídulas da ortodoxia cega.

Leia-se em Camões:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza.

domingo, outubro 18, 2009

"A PONTE SUBMERSA"

O romance A Ponte Submersa, de Manuel da Silva Ramos, que hoje acabei de ler, remeteu-me para uma realidade que não tinha presente: a submersão, pela barragem da Aguieira, da aldeia de Foz do Dão, situada na confluência do Dão com o Mondego. Casas e ponte lá ficaram sob as águas da albufeira, em drama semelhante aos de Vilarinho das Furnas e Aldeia da Luz.
O livro, porém, é mais do que isto.

sexta-feira, outubro 16, 2009

ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO

Philippe Lejeune
Nos estudos de literatura autobiográfica formula-se por vezes a seguinte questão: o que é mais verdadeiro – a autobiografia ou o romance? Por outras palavras: há mais sinceridade nos escritos referenciais (autobiografias, memórias, diários), em que o autor, em seu nome, conta factos e experiências da sua vida, ou, de outra forma, é nos escritos de ficção (romance, novela, conto) que melhor se revela a intimidade do escritor?
Philippe Lejeune, professor e crítico francês nascido em 1938, pioneiro dos estudos de literatura autobiográfica, desvaloriza a questão. Autobiografia e romance são para ele duas faces da mesma moeda: o que aquela oculta, revela este. Chega assim à noção de espaço autobiográfico, um conjunto de textos referenciais e de ficção através dos quais o autor constrói, articuladamente, uma imagem de si.
Então poderemos talvez dizer que não é a escrita que se alimenta da vida, mas a vida e a personalidade do autor que são criadas pela escrita.

terça-feira, outubro 13, 2009

O HONROSO CARGO

O bairro dos mortos, como era conhecido pela rapaziada da minha rua, ergue-se num chão declivoso com a forma aproximada dum rectângulo. Está limitado a norte pela Rua da Bica do Marquês, a sul pela Travessa da Boa-Hora (a rua da praça), a oriente pela Rua de Dom Vasco, e a ocidente pela Calçada da Ajuda – a tal dos quartéis e dos cavalos a que se refere Baptista-Bastos nas Bicicletas em Setembro. Cavalos e cavaleiros, descendo a calçada, ao domingo, para o render da guarda no Palácio de Belém, recebiam da malta o apodo de capicuas: uma besta, uma sela, uma besta.
Chamávamos-lhe bairro dos mortos pelas placas toponímicas que identificam as ruas, todas respeitantes a militares falecidos em combate ou celebrizados por feitos heróicos que alegremente ignorávamos: Rua Comandante Assis Camilo, Rua Cabo Floriano de Morais, Rua Coronel Pereira da Silva, Rua Soldado António Costa, e outras.
O bairro era uma colecção de prédios monótonos e amarelentos, de fachadas tristes, as janelas entreabertas para o olhar viscoso das vizinhas, as ruas dormentes de alcatrão fendido e irregular. No centro das casas e das vias ficava (fica ainda) a Escola Primária nº 60, fundada, conforme informação lapidar, em 15 de Setembro de 1934, ano dois da famosa ordem constitucional que nos quis obedientes, respeitadores, de brandos costumes e orgulhosamente sós. Lembro-me de ler em Alexandre O’ Neill:
Neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso.
Verifiquei no domingo passado que, afinal, o bairro não mudara muito. Mais automóveis, menos carros eléctricos chiando nos carris da Rua da Bica e da Rua de Dom Vasco, gente mais composta assomando às janelas, agora com persianas de plástico e caixilhos de alumínio, mas, no fundo, o mesmo clima soturno, de fastio, sem um canto de jardim ou uma tira de relva, entrevendo-se apenas, em escassos pontos da sua área, uma nesga da língua azul do rio com o imprevisto dum barco e o arraial de silos nas margens da Palença.
Vem tudo isto por causa de uma carta cuja parte inicial aqui reproduzo:

Conforme poderá verificar pela cópia do alvará de nomeação afixado na Câmara Municipal foi nomeado para o honroso cargo de Escrutinador (secção de voto nº 5) da Assembleia de voto da freguesia de Ajuda que funcionará na Escola Primária nº 60 – R. Coronel Pereira da Silva.

Foi por esta singular convocatória que passei todo o domingo no bairro dos mortos, urdindo evocações poéticas e descarregando prosaicamente os cadernos eleitorais. Às nove da noite ainda contava votos. Fui-me deitar, cansado dos trabalhos do honroso cargo, sem saber quem ganhara e perdera naquele dia de eleições.

segunda-feira, outubro 05, 2009

A VIZINHA

Chegava a casa, ao fim do dia, cansado e triste. Sete horas de trabalho monótono diante do computador, a cabeça pendente sobre o teclado, os olhos doridos dos revérberos do ecrã.
Estacionava o carro num dos rectângulos marcados a tinta branca no chão da praceta, e dirigia-se ao prédio onde morava, uma torre insolentemente disparada aos céus como se quisesse sorver o infinito.
Subia no elevador até ao seu apartamento, o 8º F. Metia a chave na fechadura, dava quatro voltas, e lastimava o estrépito metálico que se soltava dela. Denunciava-o.
Era então que os passos de mulher irrompiam no andar de cima, perseguindo-o por toda a casa.
Jantava, arrumava a loiça. Sentava-se finalmente para ler um livro ou burilar um poema, e os passos que sentira na cozinha abatiam-se sobre a solidão da sua mesa de trabalho.
Abandonava a caneta, deixava-se tomar por uma lassidão que lhe mostrava uma mulher de sapatos de salto alto e pernas cheias, o ventre flácido, os seios desabados sobre o círculo grosso da cintura, o rosto rotundo num grande alarde de fealdade impune.
Ele nascera para cantar o perfume e a beleza do corpo, para viajar nos cabelos das mulheres quando neles se insinua o vento, para amar as tardes de sol e as promessas das manhãs de bruma. Mas esgotava-se nas rotinas dum escritório cinzento, prisioneiro dos sonhos, desassossegado em casa pelo assédio obsceno do andar de cima.
Toda a noite era perseguido pelo tropel selvagem da fealdade. Levantava-se exausto, horrorizado.
Não sabia se alguma vez encontraria o esplendor da beleza. Estava seguro, porém, de que nunca subiria ao 9º F.

O "confiteor" do artista

Natureza, feiticeira impiedosa, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Pára de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris.

terça-feira, setembro 29, 2009

DEIXEM-ME CONSPIRAR!

Declaração do P.R., hoje, às vinte horas:

- A mais desonesta, demagógica e mistificadora declaração política produzida por um presidente da república no nosso regime democrático
.

domingo, setembro 27, 2009

ESCAPOU

Nem sempre governou com acerto, incompatibilizou-se com vastos sectores sociais, teve contra si os representantes dos patrões e dos trabalhadores, e deixou por cumprir algumas importantes promessas eleitorais – mas não perdeu!

Como se explica isto?

Quanto a mim, por três ordens de razões:

PRIMEIRA: Apesar dos erros cometidos e da marca de classe das suas políticas, deixou passar uma imagem de quem estava a fazer o melhor que podia. Podem acusá-lo de tudo, mas não de ter sido um governante apagado e conformista. Demonstrou atitude, tomou medidas e tentou uma política reformista em diferentes áreas.

SEGUNDA: Beneficiou com a recessão económica internacional. Por um lado protegeu-o, ao dar-lhe uma justificação para o incumprimento dos objectivos económicos do seu programa; por outro, permitiu que surgisse ao eleitorado como a opção mais credível para continuar a enfrentar a crise: perante uma situação aflitiva, não se muda abruptamente de timoneiro.

TERCEIRA: Com as “campanhas negras” que lhe moveram – e que, como se viu, vieram de todos os lados, inclusive da presidência da república – acabou por despertar simpatias mesmo fora do seu eleitorado natural. Se houve quem desse crédito a tudo o que de mau sobre ele se disse, houve também quem achasse desproporcionados, improváveis e maliciosos os conteúdos das sucessivas acusações que lhe foram sendo feitas.

Deixou fugir a maioria absoluta. Vai ser obrigado a fazer compromissos, não se sabe muito bem como e com quem, e é de crista murcha que vai entrar no novo ciclo político. Porém, para quem, há poucas semanas, estava praticamente morto e enterrado, os resultados ora obtidos só podem saber a vitória.

quarta-feira, setembro 23, 2009

ÁLVARO DE CAMPOS




Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
– Tirava os brincos do prego,
Casava c’um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
– (Ela conhece-me a fundo)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
– Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
– Então, filho, nada feito,
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

(Comunicado pelo Engenheiro Naval Sr. Álvaro de Campos em estado de inconsciência alcoólica.)

ASFIXIA


Tanto falou de asfixia que está mesmo a ficar asfixiada. Agora que Cavaco lhe cortou o oxigénio, é um caso com prognóstico reservado.

sábado, setembro 19, 2009

PAULA REGO e "O Crime do Padre Amaro"

Amaro era, como diziam os criados, um “mosquinha morta”. Nunca brincava, nunca pulava ao sol.
(…) Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma velha ama. As criadas, de resto, feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele abandonava-se, meio nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces.

Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pp. 35 e 36.

sexta-feira, setembro 18, 2009

REPÚBLICA DAS BANANAS

Estarão recordados de como Cavaco Silva chegou a presidente do PSD em Junho de 1985. Enfastiado da monotonia de Lisboa, viajou até ao congresso da Figueira da Foz para fazer a rodagem do carro que acabara de comprar. Só que entrou como militante de base e saiu como líder. Uns meses mais tarde seria primeiro-ministro, lugar que ocupou durante dez anos.
Hoje é presidente da república e tudo indica que se tenha servido de um jornal para construir uma intriga política. Teve tempo suficiente para investigar a vigilância que alegadamente lhe era movida pelos serviços secretos. Poderia ter confrontado o primeiro-ministro com as suas suspeitas, poderia ter accionado os órgãos de fiscalização, mas não, preferiu passar uma informação confidencial ao jornal de Belmiro de Azevedo e fazer rebentar a bomba em vésperas de eleições. Hoje descobriu-se-lhe a careca.
Cavaco Silva não é uma personalidade isenta e acima da esfera dos partidos, como é requerido pela função que exerce. Admite-se que esteja farto de coabitação e que bem gostasse de ter no governo a sua correligionária Manuela Ferreira Leite, mas não pode agir segundo modelos típicos de uma qualquer república das bananas. Seja qual for o resultado das presentes eleições, acho que não merece o segundo mandato. Espero bem que o perca!

segunda-feira, setembro 14, 2009

MARIDOS













Li ontem na internet a entrevista concedida por Judite de Sousa ao "Expresso":

P: José Sócrates também nunca foi muito simpático consigo nas entrevistas que lhe deu. Sabe qual é a razão?
R: É por causa do meu marido. Há muito sectarismo e mesquinhice na política. Sou jornalista há 30 anos. Já era a Judite de Sousa antes de ser casada com Fernando Seara. Não admito que ponham em causa o meu profissionalismo e a minha independência por estar casada com um político.

Ainda impressionado com tão extraordinária resposta, ouvi hoje na Antena 1 a entrevista a Sócrates conduzida por Maria Flor Pedroso. O chefe do governo agastou-se várias vezes com as perguntas da jornalista, e, verdade seja dita, não foi muito simpático com ela. Pergunto: alguém me poderá dizer quem é o marido de Maria Flor Pedroso?

quinta-feira, setembro 10, 2009

À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA (poema de António Boto)

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias-
Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me. Transformemos

A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!



António Boto, Canções - Poema de Cinza, Lisboa, Edições Ática, 1975.

quarta-feira, setembro 09, 2009

ANTÓNIO BOTO (1897-1959)


Fernando Pessoa falou dele como sendo o único poeta português a quem podia aplicar-se, sem dissonância, a designação de esteta (Revista Contemporânea, 1922). José Régio foi pelo mesmo caminho, elevando-o aos píncaros da excelência no ensaio António Boto e o Amor (1938).
Porém, o apreço literário que lhe era dispensado pelos seus pares não encontrou correspondência no juízo que dele tinham como homem e ser social. António Boto era vaidoso, desleal, sempre disposto à mentira e à intriga. Conta João Gaspar Simões (Retratos de Poetas que Conheci, 1974), ter em tempos recebido uma carta assinada por um desconhecido “Mário” que rezava assim:

Então o sr. não sabe que na moderna poesia portuguesa há só três poetas geniais? Não sabe quem são? Pois eu lhe digo:
Fernando Pessoa
António Botto
José Régio.
Já sabe agora? O resto é merda, como você.

Almada Negreiros dava-lhe o epíteto de serpente, e mesmo José Régio não o poupou nos volumes As Monstruosidades Vulgares (1960) e Vidas São Vidas (1966) do ciclo romanesco A Velha Casa, projectando os seus ademanes e idiossincrasias na personagem desprezível do poeta João Salvador.
Apesar da infelicidade de alguns escritos como, por exemplo, Fátima – Poema do Mundo com o inenarrável soneto de louvor ao cardeal Cerejeira (Rio de Janeiro, 1955), foi artista que deixou obra. É assim, ninguém é perfeito.

domingo, agosto 30, 2009

MARIZA

Um poema esotérico de Fernando Pessoa datado de Outubro de 1932.

VISUS NOCTURNUS

A empregada era uma adolescente com corpo de mulher adulta. O cabelo descia-lhe pelas costas, os olhos pareciam puros, mas a boca, a parte do corpo que está mais perto da alma, dava sinais de sensualidade e volúpia. Estavam ambos sentados num sofá, diante duma lareira onde ardiam grossos troços de lenha. Ela tinha na mão um cálice de porto, curvo e cintilante, que de vez em quando levava aos lábios. Falavam de coisas do escritório, assuntos profissionais como balanços e balancetes, conferência de contas, cálculos de amortizações e reintegrações. Ele tinha sobre as pernas um maço de papel contínuo, de listras verdes, cujas folhas ia separando pelo picotado. Ela afogueava-se com o calor que vinha do lume e levava a mão à gola alta da camisola de lã, tentando aliviar a pressão daquele colar apertado. Então, como não conseguisse afastar o desconforto, tirou a camisola, deixando entrever o limiar dos seios sob a filigrana negra do sutiã. Ficara ainda mais bela, com os cabelos descompostos e os lábios túmidos como gomos de fruta. Depois despiu as calças, tirou as botas e as meias, e o mármore das pernas coloriu-se dos reflexos do fogo.
Um feixe de luz, real como a manhã que se anunciava, caiu-lhe sobre as pálpebras frouxas, gastas, cansadas duma vida de lançamentos a débito e a crédito. Estava sozinho, como sempre. Levantou-se, ao mesmo tempo contrariado e feliz: tinha de abrir o escritório às nove, era a hora a que chegava a empregada. Talvez o sonho voltasse na noite seguinte.

quarta-feira, agosto 19, 2009

ALBERTO DE SERPA (1906-1992)


Varanda, minha varanda
donde avisto
tudo quanto não se vê!
ALBERTO DE SERPA, Varanda, Coimbra, Edições presença, 1934. Dedicado ao Poeta António Botto, ao Poeta José Régio e ao Pintor Carlos Carneiro.

terça-feira, agosto 18, 2009

LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO

JÚLIO POMAR, Lusitânia no Bairro Latino (retratos de Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Sousa Cardoso), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Estes partiam de comboio. Sabia-se bem ao que iam.

segunda-feira, agosto 17, 2009

IN SITU


Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
JOSÉ RÉGIO, "Toada de Portalegre", Fado, 1ª edição, Coimbra, 1941.

domingo, agosto 16, 2009

PLOTINA - A propósito de "Memórias de Adriano"

Plotina, imperatriz, esposa de Trajano


Lembro-me, Plotina, de quando demos as mãos
naquele dia de Inverno em Antioquia. O sismo
derrubara as traves das casas,
espalhara um cheiro de morte
nas florestas e praias da Síria,
e entre o desânimo dos soldados, que viam
na catástrofe o presságio de próximas derrotas,
só o Imperador,
heroicamente obstinado, acreditava nos reflexos
de oiro lavrados nas areias da Ásia.

Lias-me um poema grego, a tua voz era
um cântico de musa, e um diadema de volutas
cingia-te a fronte. Tive a certeza,
naquele instante de suprema elevação, feito
de poesia e dos mais puros afectos,
de que eram os mesmos os caminhos
por onde seguíamos, que tu me conhecias e amavas
como o vento conhece e ama
as copas das árvores, os cabelos das mulheres,
o delírio ondulante das searas
nas tardes rubras do mês das espigas.

Estive sempre longe e perto de ti. Busco agora,
nas folhas da memória, o viso terno do teu rosto de diva.


Amei-te mais com a alma e menos com o corpo,
e só por isso foste verdadeiramente minha.

Passaste como a ave
que risca os céus e se detém no olhar
de quem está preso à terra.
Salvaste-me.

quinta-feira, agosto 06, 2009

PEREGRINAÇÕES (continuação)


Torre do Prior do Ameal, integrada na antiga cerca de Coimbra. Ali viveu António Nobre, o poeta do , que lhe chamou a Torre de Anto, a sua torre.


Ó meu cachimbo! Amo-te imenso!
Tu, meu turíbulo sagrado!
Com que, bom Abade, incenso
A Abadia do meu passado.

……

Por alta noite, às horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para falar contigo a sós.


E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre de Anto, aonde eu moro!
Ali, metido no buraco,
Fumo e, a fumar, às vezes… choro.

PEREGRINAÇÕES (continuação)

Apesar da simpatia com que fomos recebidos pelo casal zelador da casa, impressionou-nos o despojamento da mesma e a singeleza documental da biblioteca. Na casa de Ossela, o visitante vê a cama onde nasceu o grande escritor, os sapatos e a mala que usou na sua célebre volta ao mundo, e pouco mais. Na exposição da biblioteca encontramos exemplares dos títulos publicados e das respectivas traduções, como, por exemplo, os fascículos da primeira experiência romanesca de Ferreira de Castro, aos dezasseis anos de idade. Na fachada de um desses fascículos podemos ler:

J.M. Ferreira de Castro

CRIMINOSO
POR
AMBIÇÃO

Sensacional romance
(expurgado de phantasia)

Fascículo III

Empreza Editora

BRAZIL-1916


Surpreendeu-nos descobrir um romance “expurgado de fantasia”, como se a fantasia não fosse a essência da matéria romanesca. Do que eram capazes aqueles editores brasileiros de princípio de século para venderem os seus livros!

quarta-feira, agosto 05, 2009

PEREGRINAÇÕES (continuação)

Camilo nunca foi feliz na casa de S. Miguel de Ceide. Herdada do marido de Ana Plácido, por lá viveu durante vinte e sete anos de intensa criação literária. Recebia Castilho e os seus discípulos, que vinham de Lisboa para o visitar, como atesta o tosco monumento de pedra erguido à entrada da propriedade. Deu um tiro na cabeça, sentado numa cadeira de baloiço que ainda lá está como testemunha muda do drama de um desistente. Foi em 1890, um ano depois do suicídio de Soares dos Reis, um ano antes do de Antero de Quental.

terça-feira, agosto 04, 2009

PEREGRINAÇÕES


A casa de José Régio. Aliás são duas casas: a dos pais, ao centro, e a da madrinha Libânia, com o seu jardim e mirante, à direita. A esta se recolheu o Poeta no final da sua vida, nela morrendo em 22 de Dezembro de 1969 em consequência de um enfarte de miocárdio que não quis tratar no único local onde o poderia fazer com alguma probabilidade de êxito: o hospital.Em Vila do Conde há ainda a casa onde, entre 1881 e 1891, viveu Antero de Quental. E muito próximo desta, praticamente na mesma rua, uma que foi habitada por Camilo Castelo Branco.

domingo, agosto 02, 2009

SOBRE AS VIAGENS







O Régio era uma pessoa muito modesta. Esteve a explicar-me que não precisava de sair do País porque aqui encontrava tudo. Contou-me de um sapateiro de Portalegre que tinha sodomizado a filha. Portanto, dizia ele, todo o universo estava em Portalegre. Fiquei horrorizado com esta ideia. O universo todo não está em Portalegre. (…) Tive a percepção imediata de que aquilo era uma redução absurda. O que não é de espantar no Portugal de Salazar. Era a isso que o Salazar nos queria reduzir. (…) Todos aqueles homens da geração da Presença, como depois os neo-realistas, foram vítimas. Não perceberam que havia mais mundos no mundo. Não os deixaram.

Vasco Pulido Valente em entrevista à revista Ler (Julho de 2009)

Neste meu estado, falam-me em viagens! Digo, eu próprio, que tenciono ir à Itália no próximo ano; – e o mais curioso é que efectivamente alimento esse vago plano: ir lá com os Mirandas. Na verdade, porém, que me interessam as viagens? Que me interessam pessoal e profundamente? Que poderão ensinar-me que eu não saiba, dar-me que eu não tenha? (…) É aos extrovertidos que as viagens interessam: aos cujo relativo vazio de vida interior se tapa com uma aparência de enriquecimento. Eu sei que é em mim que tenho o mundo – o mundo que me é possível apreender.

José Régio em Páginas do Diário Íntimo

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim em parte alguma. (…) Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares em O Livro do Desassossego



Não há nada como dar a palavra aos próprios!

sábado, junho 20, 2009

MINISTRO DEBALDE

O ministro Augusto Santos Silva respondeu à intervenção dum deputado do Partido Ecologista “Os Verdes” que levou um balde para o Parlamento. Um balde furado, pretendendo mostrar com tal auxiliar retórico a ineficiência da política energética do governo.
Falando do verbo baldear, derivado de balde - segundo referiu, muito usado na marinha mercante -, disse o aguerrido ministro que os ecologistas deviam “varrer com baldes de água os (seus) convés” , repetindo imperativamente: “baldeiem dos vossos convés os preconceitos.”
Só que o plural de convés é conveses, de acordo com o que se pode ler, por exemplo, em Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, nas regras relativas à formação dos plurais dos nomes.
Um pequeno engano, tão pequeno que nem tira votos, nem prejudica a carreira política do ministro. Isso é, afinal, o que mais interessa, e que se "balde" a língua.

quarta-feira, junho 10, 2009

LUÍS DE CAMÕES ( I )

Camões e as Tágides, Columbano, Museu de Grão Vasco
Há vários meses que, por razões que não são para aqui chamadas, ando acompanhado de Camões. Para ser mais preciso, do Camões épico, o d´Os Lusíadas, o tal poema que serviu em tempos para os estudantes dos liceus se treinarem na divisão de orações. Assim, a epopeia camoniana era apresentada aos liceais não como um corpo vivo, apetecível, mas como um cadáver pronto a ser dissecado sobre uma mesa de anatomia.
Falar d’ Os Lusíadas é tema vasto. Há que ir por partes. Hoje, 10 de Junho, falo do parecer do censor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu Ferreira, que analisou a edição de 1572. Diz o dominicano:

Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Ásia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes, somente me pareceo que era necessário advertir os Lectores que o Autor pera encarecer a difficuldade de navegação & entrada dos Portugueses na India, usa de hua fição dos Deoses dos Gentios. (…) Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poético não tivemos por incoveniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salva a verdade da nossa sancta fe , que todos os Deoses dos Gentios sam Demónios.

Ora aí está: Baco, inimigo dos Portugueses, e Vénus, a doce deusa que por mais de uma vez , ao longo da viagem para a Índia, protegeu a armada do Gama, além de todos os outros deuses apresentados por Camões, são demónios, e, ao mesmo tempo, ficções. O bom inquisidor arrumava assim a questão, sem ver nada de escandaloso no poema: nem Vénus a seduzir Júpiter no Canto Segundo, nem os amadores das ninfas no Canto Nono.
Convinha muito à Ordem de S. Domingos aquilo que Camões diz no poema contra os Jesuítas, émulos dos Dominicanos no árduo trabalho de conquistar o Reino dos Céus. Só por tal rivalidade permitiram os homens da Inquisição (Dominicanos) que a epopeia fosse publicada sem nódoas expurgatórias. Ainda bem.

domingo, junho 07, 2009

PLATÃO EM DIA DE ELEIÇÕES

Jean Delville, L´École de Platon, 1898, Musée d´Orsay, Paris
O partido que escolhi nestas eleições está à beira de ganhar. Uma vitória esmagadora, por maioria absoluta, embora, em verdade, não seja bem um partido – talvez uma espécie de frente popular, heteróclita, com distintos níveis de motivação e consciência. Assim, não foi por acaso que me encontrei a ler, neste fim-de-semana, vastos passos do diálogo Górgias de Platão. A retórica e a política sem princípios, a criação pela persuasão de um estado de crença sem ciência – foi tudo isso que o Mestre da Academia denunciou que a mim me afastou das urnas. O Cavaco que vote, mais o Dias Loureiro. Se calhar, apesar da reclusão indigna, até o Oliveira e Costa não deixará de exercer o sacrossanto dever. Têm boas razões para isso. Prova-se, afinal, que não são ingratos para com o sistema que os criou.

sexta-feira, maio 29, 2009

PANFLETO


EM 7 DE JUNHO NÃO IREI VOTAR. Não o faço por comodismo, para aproveitar os feriados e partir de férias. Estarei por cá, e nem sequer penso aproveitar os dias de praia, se é que vai dar em termos meteorológicos para tais recreios. Faço-o por imperativo de consciência! A política nacional afunda-se num pântano (reconheço agora a pertinência da expressão usada por aquele chefe de Governo que, perante o cenário de sombras, optou corajosamente pela desistência). Um pântano bem ilustrado pelo impasse indigno a que se chegou no processo de eleição do Provedor de Justiça. O nosso sistema partidário está caduco, prisioneiro de interesses e de glórias vãs, pedindo votos quando nada faz pelo povo, pelas massas trabalhadoras, pelos reformados pobres e pelos indigentes. O sistema partidário não pensa nos outros, só pensa em si. Sobram-nos os casos tristes dos bairros problemáticos, explorados com avidez pelos canais de televisão; os escândalos financeiros que envolvem membros dos partidos e do Conselho de Estado; o circo parlamentar onde a bancada do Governo e as da Oposição rudemente se confrontam em vez de procurarem soluções para a superação da crise. É o momento de lhes fazer sentir que não é esse o caminho, que a liberdade exige respeito por quem trabalha, por quem não está comodamente sentado à mesa do orçamento: trabalhadores (nacionais e imigrantes), empresários, estudantes, professores, investigadores. NÃO VOTAR EM 7 DE JUNHO É UM AVISO AOS SENHORES DO PODER, UM IMPERATIVO PATRIÓTICO!

segunda-feira, maio 25, 2009

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA

Catarina Wallenstein no papel de Luísa Vilaça
Adaptação ao cinema, por Manoel de Oliveira, de um conto de Eça de Queirós, escrito em Cuba em 1873, quando o autor ali desempenhava funções diplomáticas. Um Macário e uma Luísa Vilaça do século XXI. Um belo filme sobre o texto famoso do grande Eça.

domingo, maio 24, 2009

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XVI )

Depois de A Cidadela Branca, leio Istambul de Orhan Pamuk. Pergunto-me se o hüzün istambulense (uma forma de melancolia típica dos habitantes da cidade) não terá algo a ver com a saudade portuguesa, esse sentimento de privação e incompletude em que Teixeira de Pascoaes viu a essência do génio português, aquilo a que chamou a única síntese perfeita entre o sangue ariano e o sangue semita. Pamuk dá-nos sobejos exemplos dessa melancolia de Istambul, um nevoeiro que vem do fundo dos tempos, sitiando as almas dos homens e os seus sentimentos.
Talvez a única ligação entre o hüzün da grande metrópole turca e a saudade portuguesa seja esse comum sentimento de decadência, de perdidos fulgores civilizacionais. Também eles, os turcos otomanos, tiveram as suas Índias. Submeteram vastas regiões do Médio Oriente, do leste da Europa e da África mediterrânica, tendo chegado às portas de Viena e instalado o pânico entre a Cristandade dos séculos XV e XVI.
Mas tiveram Lepanto, como nós tivemos Alcácer Quibir, e tudo se desfez. Chega sempre um momento em que a História se ri da soberba dos povos.

sábado, abril 25, 2009

25 DE ABRIL

“Acham que aquilo é um telejornal?” – A interrogação retórica do homem do leme indignou o Georg von Trapp da TVI (pelo menos de tal se mascarou numa das últimas galas da estação!), como se os telejornais de que é director não fossem, desde sempre, o exemplo acabado da desinformação, do oportunismo, visando claramente as audiências e os benefícios comerciais que as mesmas proporcionam. A pose institucional com que veio a terreiro, qual falsa dama ferida na sua honra, ficou ao nível da grotesca fealdade da apresentadora e da decrepitude física do comentador. Escusava era de ter falado do 25 de Abril. Não é certamente pelos ideais democráticos do movimento que anda metido no mundo da televisão.

domingo, abril 19, 2009

PEREGRINAÇÕES

Numa passagem d´A Cidade e as Serras, Zé Fernandes sobe com Jacinto aos altos de Montmartre, onde então se construía a Basílica do Sacré-Coeur, e olhando Paris põe-se a filosofar sobre os malefícios da cidade e a vil exploração das plebes pela burguesia triunfante. O discurso inflamado do companheiro de Jacinto, atormentado com a perversidade urbana e a barbárie capitalista, só se acalma à hora do jantar, num luxuoso restaurante do Bois de Boulogne, perante um vinho gelado com que põe termo às securas da garganta e às suas filosofias de ocasião. Este trecho do romance queirosiano é a melhor recordação que guardo do Sacré-Coeur, lugar muito frequentado por turistas nestas tardes mornas de Primavera.
Porém, há sempre motivos interessantes a descobrir. Num pequeno jardim sobranceiro à Rue Chappe, praticamente no espaço sagrado da Basílica, há uma estátua de bronze em cujo pedestal podemos ler:


AU
CHEVALIER
DE LA BARRE
SUPPLICIÉ À L’ ÂGE DE 19 ANS
LE 1er JUILLET 1766
POUR N´AVOIR PAS SALUÉ
UNE
PROCESSION


Este é o caso do Chevalier de La Barre que indignou Voltaire. Não deixa de ser tocante que ali à beira do templo, perante o espírito do lugar, se preste homenagem tão expressiva a uma vítima da intelorância religiosa.

segunda-feira, abril 06, 2009

"UMA NOITE COM O FOGO"


O romance Uma Noite com o Fogo, de António Manuel Venda, foi apresentado no dia 1 de Abril na loja Bertrand da Avenida de Roma.
Trata-se do relato de uma experiência vivida, ideia sustentada pela epígrafe de Mário Quintana:

“O autor nada mais fez do que vestir a verdade…”.

Porém, a experiência vivida não é descrita como numa simples crónica. A verdade dramática vestida pelo autor não prescinde da ficção, esse canto de sereia em que acreditamos como se fosse a realidade pura.
É essa mistura de referencialidade e imaginação que nos leva a classificar o texto de António Manuel Venda como uma autoficção, designação de género definida basicamente como um relato de conteúdo simultaneamente autobiográfico e romanesco em que se regista identificação nominal entre autor, narrador e protagonista.
Apesar de em Uma Noite com o Fogo essa identificação não ser explícita, a sobreposição daquelas três instâncias não deixa de estar presente ao longo de todo o texto. Percebe-se bem de onde e para onde viaja o protagonista naquela noite em que o fogo andou à solta. Percebe-se bem onde ficam aqueles montes de sobreiros e medronheiros assolados pela fúria das chamas. Na personagem que se defronta com o fogo não conseguimos ver outra figura que não seja a do próprio autor, lá na serra algarvia onde nasceu e onde viveu os tempos da infância e da juventude, a tal floresta do sul que deu nome ao seu blogue – uma floresta destroçada pela incúria de todos, não só dos que se sentam nas cadeiras do poder.
O tempo da história resume-se a uma única noite, o suficiente para emocionar o leitor, tanto pelo combate desproporcionado contra a calamidade natural (?), como pela intervenção frequente da memória autoral numa espécie de “recherche du temps perdu” – um mergulho no mundo da infância e da inocência perdida.
Um livro muito interessante de António Manuel Venda, dentro do género a que nos habituou, tão raro, por enquanto, nas nossas letras.

terça-feira, março 10, 2009

CRISTINA BRANCO canta JOSÉ AFONSO



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

terça-feira, fevereiro 24, 2009

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XV )

Jesuina (assim mesmo, sem diacrítico no i), protagonista de As Bicicletas em Setembro, talvez não fosse viúva no sentido usual do termo. Há muitas formas de viuvez: a mais dolorosa será, provavelmente, viuvar de alguém que se encontra vivo.
Diz-se na contracapa do livro que todos nós já perdemos alguma coisa. Todos nós já perdemos alguém, embora o mais importante nem seja a perda originada pela morte ou aquela que a separação tantas vezes impõe aos que se amam. A perda mais difícil de aceitar é a das pessoas que saíram da nossa vida pelos seus próprios pés, ou, em outra variante, a das pessoas que nunca nela chegaram a entrar.
Jesuina vivia nas margens do tempo e do espaço, reclusa na sua própria casa, cercada de jornais velhos e de crianças de quem tomava conta, lendo o Amor de Perdição, inventando cores para as palavras como Rimbaud inventara para as vogais.
Tudo isto num bairro cinzento, pesado como o odor da salsugem que sobe do rio no período da vazante – ali à beira do Largo da Paz, dos quartéis da Calçada da Ajuda, do Jardim Botânico, da casa de Alexandre Herculano, da Torre do Galo, do Salão Portugal e das Terras do Desembargador.
Jesuina não é só do bairro da Ajuda, é de todos os bairros com as suas ruas de solidão.

(Baptista-Bastos, As Bicicletas em Setembro, Porto, ASA Editores, 2007.)

domingo, fevereiro 08, 2009

O PROBLEMA DO DESEMPREGO

Atravessou como se seguisse num carreiro de formigas a estreita passagem entre a cancela e o posto do pessoal da segurança. Tinha acabado de chegar no autocarro fretado pela empresa, uma lenta viagem diária por lugarejos e ermos, recolhendo as operárias em diversos pontos do percurso. Continuou pelo espaço alcatroado do parque de estacionamento até se meter por uma porta lateral do edifício em cuja platibanda se podia ler:

FÁBRICA DE COMPONENTES DE ELECTRÓNICA

Tinha quinze minutos para despir a gabardina e o casaco, deixar a roupa e a mala no cacifo, vestir a bata, tomar um café tirado na máquina de bebidas do refeitório, encaminhar-se para o posto de trabalho, aguardar o som da campainha que às oito e meia em ponto dava o sinal para o começo da laboração. Antes, à entrada da área fabril, ainda passaria pelo chefe de turno, sempre com a folha de produção nas mãos e um olhar de cobiça comendo-lhe as formas do corpo. Teria ainda cinco minutos para, já sentada no seu lugar, pensar em algumas coisas da vida.
Às sete horas deixara a criança na ama. Passara pela padaria, voltara a casa para tomar o pequeno-almoço, à pressa, antes de se dirigir ao ponto de paragem do autocarro. Levantara-se atordoada, custando-lhe enfrentar a luz, após uma noite de sexo e pouco sono. Tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno. Trabalhava na fábrica desde os vinte e dois anos de idade.
Passara algum tempo na Suíça, chamada por familiares da diáspora com próspero negócio de restaurante e casa de hóspedes. Fazia camas e limpava quartos, chambres, rooms, zimmers – era como quisessem chamar-lhes, que todos aqueles nomes estavam inscritos no reclamo luminoso virado para a estrada que marginava o espelho escuro do lago. Todos menos o nome português, pois não contava para tal efeito a língua nacional, apenas o dialecto em que se dizia e escrevia o árduo trabalho de todos os dias.
Não chegara a concluir o nono ano. O pai era picheleiro, a mãe fazia serviços de limpeza e amanhava o quintal onde floria uma nespereira sobre canteiros de ervilhas e ervas de cheiro. Nunca dispôs de ambiente familiar estimulador dos estudos. Depois das aulas ajudava na cozinha dum restaurante, tomava conta de dois irmãos, e namorava. Fazia-se uma mulher de mão-cheia, bonita e apetecível como um fruto fresco. Os clientes do estabelecimento, jogadores de cartas e amigos dos copos, decrépitos como os velhos canecos que vinham à mesa, sibilavam epigramas obscenos quando a viam passar, e arriscavam sorrisos de dentes foscos, a saliva cobrindo-lhes os cantos da boca, aguados de lascívia e míngua.
Foi numa noite de S. João. Um odor álacre a sardinha assada, o desvario do baile, uma neblina que subia do rio e fazia brilhar o chão das ruas, violando o ciclo natural das estações. Foi por amor ou desejo. Passou a andar de mão dada, às claras, sem medo de ninguém, como se a noite fria de Junho lhe tivesse outorgado um novo estatuto, uma nova força para enfrentar a vida. O pai não tolerava as intimidades de que ia tomando conhecimento, enquanto a mãe contemporizava, fazia que não via nem ouvia. Uns meses depois, subia a um terceiro andar dum prédio antigo de onde se divisava um grande monte, escuro como uma fortaleza, na margem esquerda do rio. Saiu de lá dilacerada e fria, de barriga dormente e pernas frouxas, com uma caixa de comprimidos de sulfamidas na mão.
Do fundo do tempo vieram os cadernos da infância: redacções sobre o Natal e o Dia do Pai, desenhos de girassóis coloridos e casas com duas janelas e uma porta, semelhantes a caras espantadas, de olhos e boca bem abertos perante o inverosímil da paisagem. Num nos cadernos, escreveu:

Quando for grande quero ser enfermeira para tratar as pessoas doentes, os velhinhos e os desempregados sem dinheiro.

Não se lembrou de mais nada para lá daquele ponto. Voltara de novo ao equador da vida. Tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno que deixara na ama às sete horas da manhã.
Não deu conta de que há muito havia tocado a campainha para o arranque do trabalho. Ela disse depois que não ouvira, que se deixara escorregar no plano inclinado duma estranha viagem até ao ponto mais distante e próximo de si, e que tal incidente até deveria ser avaliado pela medicina do trabalho, pois talvez fosse o resultado da tensão quotidiana vivida na fábrica, o medo constante de não atingir os objectivos exigidos pela empresa. Desculpas que não mereceram acolhimento, pois a folha de produção do chefe de turno, apensa ao processo disciplinar, não deixava dúvidas: mais de cem unidades por produzir, o efeito multiplicador induzido sobre os postos de trabalho a jusante, um prejuízo de grossas proporções, algo nunca visto numa empresa com tão eficiente organização fabril. E depois ainda se admiram, referia o despacho da sanção disciplinar, se a fábrica for deslocada para os países do Leste ou para a Ásia.
Chegou a casa, já tarde, com uma folha carimbada para apresentar no centro de emprego da sua área de residência. Encostou a cabeça ao espaldar alto duma velha cadeira e nem por um momento pensou na vida passada. Agora só lhe interessava o que viria a seguir: tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno que deixara na ama às sete horas da manhã, e que, dava-se conta naquele momento, ainda lá estava, esquecido pelos progenitores, aturdidos, a braços com o problema do desemprego.

domingo, dezembro 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIV)

E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria , ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignomínia crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. – Isto é dito por Almeida Garrett nas Viagens, cuja história decorre em Julho de 1843, em pleno período da ditadura de Cabral. Dito por Garrett e não por um seu narrador, pois há suficientes provas, ao longo de toda a narrativa, da identificação do autor com o narrador e protagonista. A crítica costuma enfatizar a complexidade da obra, os seus diferentes níveis (narrativa de viagem, novela, carta) e o hibridismo formal típico do Romantismo, mas raramente se detém nas suas marcas autobiográficas. Uma verdadeira autoficção, dizemos nós, muito antes de o termo ter sido inventado, em 1977, por Serge Doubrovsky.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIII )

Em certa altura, no silêncio da casa, a minha mãe dizia como se se tratasse da coisa mais natural do mundo: “Lá está a costureira.” Eu aproximava o ouvido do sítio da parede que ela tinha apontado, e aí ouvia, juro que ouvia, o ruído inconfundível de uma máquina de costura, das de pedal (não existiam outras), e também, de vez em quando, um outro som característico, arrastado, o da travagem, quando a costureira leva a mão direita à roda para deter o movimento da agulha.

(JOSÉ SARAMAGO, As Pequenas Memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, p. 89.)


Ouvi-a algumas vezes na casa da minha avó, em Tomar, nas horas lentas dos serões, e também em Lisboa, num terceiro ou quarto andar da Travessa Nova de Santos, onde morei com a família até aos seis anos de idade. Chamavam-lhe a costureira, ou a costureirinha. O som vinha do interior das paredes, de detrás dos móveis ou até dos interstícios do soalho, reproduzindo na perfeição o ruído de uma máquina de costura em pleno funcionamento. O meu pai, de quem herdei, entre outras coisas, um certo pendor para a incredulidade, dizia tratar-se de um insecto que roendo o seu sustento ou vibrando as asas produziria aquele rumor semelhante ao de uma máquina de costurar. Que insecto seria, não sabia dizer, mas recusava as explicações destituídas de racionalidade.
Li hoje n´As Pequenas Memórias de José Saramago o relato de igual experiência vivida pelo escritor nos seus tempos de criança. A explicação que lhe era dada pelos adultos referia uma costureira que por não respeitar os domingos, trabalhando afincadamente nesses dias em vez de os dedicar ao culto de Deus, havia sido condenada a costurar eternamente, eternamente metida dentro das paredes das casas. Já não me lembro que justificação fabulosa me apresentavam para tão intrigante mistério, mas estou em crer não ser muito diferente da que era prescrita ao pequeno José pelos seus familiares.
Tal como Saramago, também eu não voltei a ouvir a costureirinha. Talvez o juiz condenador tenha decidido comutar-lhe a pena, libertando a triste de tão penoso fadário. Ou talvez tenhamos deixado de a ouvir apenas por causa do barulho dos aparelhos de televisão e das potentes aparelhagens de som que passaram a marcar lugar nos nossos espaços domésticos, abafando com os seus decibéis o brando murmúrio da respiração das casas. Tudo é possível.
Não me atrevo a jurar, como o nosso Nobel, mas lá que a ouvi, ouvi, a pobre costureirinha, condenada por um juiz cruel a vaguear de casa em casa, por dentro das paredes, sempre a dar ao pedal da sua máquina de costura. Pequenas memórias? Não me parece.

domingo, novembro 16, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XII )

A leitura de O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, leva-me de viagem para outro livro: Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, obra-prima da literatura de língua portuguesa do século dezasseis, publicado em Ferrara, Itália, no ano de 1553.
Em ambos os livros (o de Zimler apresenta-se como a transposição literária de um manuscrito da diáspora sefardita), recordamos a intolerância e as exprobações sofridas por uma comunidade laboriosa que apenas aspirava à liberdade de religião e ao respeito pelas suas ancestrais tradições.
Após o massacre de Lisboa de 1506 (a que recentemente se ergueu, junto da Igreja de S. Domingos, um belo memorial) e durante o reinado inquisitorial do Piedoso, milhares de judeus abandonaram o país com prejuízo da economia, da ciência e da cultura portuguesas. Tudo por causa da cristianíssima fé dos reis, do clero fanático e do povo ignaro.

sábado, novembro 15, 2008

SÉGOLÈNE ROYAL

Parece o descanso da guerreira, mas não é. Neste fim-de-semana, em Reims, Ségolène Royal está na luta pela liderança do Partido.
Voto nela!

domingo, novembro 02, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 15 )

Fui hoje chamado para uma reunião com o director do centro de ajuda psicológica. Pretendia ser informado, de viva voz, sobre a evolução de cada um dos casos que me foram entregues desde a mudança da população para a nova aldeia. Expliquei-lhe que um deles me inspirava particulares cuidados, o do homem que tinha recusado trasladar os restos mortais da sua mulher, referindo-me a ele desta maneira e não pelo nome próprio por me parecer que assim seria identificado com maior facilidade pelo meu superior hierárquico. Logo percebi que o motivo apresentado para a reunião não passava de um mero expediente para chegar a outras indagações. Ouviu quase distraidamente a minha exposição, fazendo correr por entre os dedos um caneta esferográfica, supostamente destinada a tomar notas, enquanto ia olhando os longes da paisagem através da janela que se abria à esquerda da sua secretária.
Devo dizer que nunca simpatizei com este homem. No dia em que me apresentei no centro, questionou-me sobre aspectos da minha vida particular de forma tão despropositada e abusiva que desde logo passei a evitá-lo, só o contactando por rigoroso imperativo de serviço. A pergunta mais extraordinária que então me fez, acabado de chegar e não me conhecendo de nenhum lado, foi se eu era solteiro como indicavam os meus documentos de identificação ou se, como era comum entre muitos jovens, vivia em união de facto com alguém. Confesso que gaguejei, tal a surpresa. Dei uma resposta atabalhoada, inconclusiva, incomodado por me ver constrangido a contar a minha vida a uma pessoa com quem não tinha qualquer intimidade e que se limitava a ser o director do serviço onde acabava de ser colocado.
No prosseguimento da reunião, sempre pouco interessado naquilo que eu lhe ia dizendo, rapidamente se encaminhou para as perguntas que realmente pretendia fazer-me: o que achara eu do jantar oferecido pelo Presidente da Câmara, por que razão me ausentara ainda o discurso não havia terminado, se alguma coisa me parecera mal na organização do referido jantar. Sendo o mandatário da candidatura, disse-me, era de bom grado que registaria as opiniões e críticas dos eleitores.
Falei-lhe da minha fraca disposição para discursos longos, do desinteresse que sentia pela política e do facto de não ser eleitor no círculo do concelho. Isso explicava a minha atitude. Dei-lhe, nestes aspectos, uma resposta franca, mas escondi a revolta sentida perante o arrazoado demagógico do Presidente da Câmara. Indignara-me aquela disposição para iludir com as palavras, o oportunismo das homenagens ao pobre morador falecido, a hipocrisia das alusões aos pastores espoliados das suas terras, as referências aos dias felizes do povo na nova aldeia – como se a felicidade se construísse pelo apagamento da memória e das raízes, pelo internamento de toda a população numa geometria de ruas limpas e paredes brancas.
Foi então, enquanto alimentava estes pensamentos, que ele lançou sobre mim uma frechada súbita:
“Diz-se por aí que costuma frequentar um bar de
gays do outro lado da fronteira.”
A minha perplexidade perante o arrojo e o descaramento da observação não poderia ter sido maior. Nos primeiros instantes, só a indignação dos meus olhos foi capaz de falar. Aquele homem conhecia os lugares que eu frequentava, talvez até as minhas relações pessoais, parecendo-lhe natural inquirir sobre a matéria da minha vida privada e convidar-me a prestar-lhe contas do que fazia para lá das horas de trabalho. Ele deve ter sentido o efeito causado pela sua observação, pois o desenho da boca, onde era visível a mais impudente das determinações, cedeu o lugar a um trejeito sombrio e ameaçador que não podia deixar de ser levado em conta. Confirmei em absoluto, pela forma como procedeu comigo, aquilo que dele se dizia. Tendo sido sempre um funcionário zeloso do regime deposto, logo se adaptou às novas condições criadas pela democracia, com inscrição partidária e prossecução dos seus propósitos carreiristas. Era portanto uma mentalidade do passado, um espírito de inquisidor disfarçando-se sob o cartão dum partido e o folclore das campanhas eleitorais. E foi aí que a minha cólera explodiu. Acabei por lhe dizer que não admitia insinuações e reparos sobre a minha vida privada, que tal não lhe era permitido, e que só em matéria profissional me sentia obrigado a dar-lhe satisfações. O homem deu por terminada a reunião, como se estivesse satisfeito com os resultados da mesma, dizendo-me entre dentes que se tinha limitado a avisar-me, e eu saí para o corredor, a caminho do meu gabinete, num passo lento e triste.
Daí a uma hora teria mais uma sessão com Josué. Sentei-me à mesa de trabalho a ler as notas que vinha tomando sobre o desenvolvimento do seu caso, e senti que nunca como naquele momento ele me despertava tanto interesse. Um interesse que não era afinal do domínio da profissão, onde os progressos até não existiam, mas antes fundado na humanidade daquele ser e daquela vida, nos seus merecimentos e imperfeições que não conhecia por completo, no drama de ter sido o único a deixar tudo sob as águas – elementos que faziam dele a mais singular das pessoas com que me deparara entre os povoadores da falsa terra prometida. Esperei-o com ansiedade, e rapidamente esqueci a impertinência astuciosa do director do centro.
Quando, à hora marcada, dei indicações para chamarem Josué ao meu gabinete, estava longe de imaginar o que ia acontecer.