sexta-feira, junho 30, 2006





Jorge Luís Borges está sentado num banco de jardim no Alto de Santa Catarina, diante da estátua do Adamastor, naquela posição que lhe é bem conhecida: o tronco erguido, a cabeça levantada, as mãos apoiadas no cabo da bengala. Tem do seu lado esquerdo Ricardo Reis, que segura a maleta de médico, desconhecendo-se se guarda nela as ferramentas da arte de Hipócrates ou se a usa para acomodar os seus escritos de poeta: odes sáficas e alcaicas, que o mesmo é dizer feitas à maneira de Safo e de Alceu, génios gregos, inspiradas nas musas Lídia, Cloe e Neera; Marcenda, outra musa, viria mais tarde. À direita do argentino senta-se uma figura menos conhecida: Herbert Quain, irlandês, autor, entre outros, do livro The god of the labyrinth, edição de 1933, um romance policial no género dos de Agatha Cristhie.

Por que razão ou desígnio se juntaram naquele local tão distintas personagens, é matéria que o narrador não sabe explicar. Sabe que, embora mortos, vieram os três por caminhos de vivos, por estradas e aeroportos, andando nas ruas, apanhando transportes públicos, pois não são fantasmas de atravessar paredes ou de esvoaçar em lençóis, muito menos de arrastar correntes. São espectros civilizados, que se movem pacificamente entre os viventes, sem nenhum estrépito, poupando-os a todo o assombro ou tribulação. Borges, veio de Genebra, do cemitério de Plainpalais; Reis, do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, em cujo túmulo lhe dá guarida Fernando Pessoa; Quain, de Roscommon, na Irlanda. O banco onde se sentam ostenta um letreiro com um prudente aviso: PINTADO DE FRESCO. Ainda bem, assim não se sentará nenhum passante onde já estão acomodados estes viajantes do tempo. E depois, não consta que se agarre a tinta das pinturas à roupa dos que já não são, como se neste lugar o Ontem pudesse ser o Hoje, o Ainda, o Todavia, tudo segundo o que pode ser lido e relido no citado Borges, poema O Tango.

- Ó Fernando António – disse Borges – alegro-me que tenha vindo. É sempre bom poder falar consigo.

- Por favor não me chame Fernando António – replicou Ricardo Reis vivamente incomodado – não tenho nome de santo da Cristandade…

- Você é um cómico, meu caro Fernando – insistiu Borges – essa sua mania de se mascarar, essa sua ideia peregrina de nos fazer crer que é sempre o outro e nenhum… Homem, assuma-se. Agora que está morto e bem morto, liberte-se de vez do labirinto em que se meteu em vida.

Ricardo Reis remexeu-se nervosamente na tábua do assento.

- Labirinto deve ser consigo. Não foi você que inventou essa figura de papel que está aí desse lado? O pretenso autor do livro The god of the labyrinth? Olhe que cheguei a pensar que a obra tinha existência real…

- Meu caro Fernando, veja bem o que diz, olhe que o Herbert é muito sensível. Ainda bem que ele não compreende o português…

- Volto a dizer-lhe que não me chamo Fernando. O meu nome é Ricardo Reis, nasci no Porto em 1887, estudei medicina, estive exilado no Brasil, morri em Lisboa em 1936…

- Ó Fernando, que eu saiba o único heterónimo que você matou foi o Alberto Caeiro, em 1915, coitado, ainda tão novo, apenas com vinte e seis anos… Não me consta que tenha dado um fim ao Reis ou mesmo ao Campos.

Proferira estas palavras em tom de grande ironia, deixando exasperado o poeta das Odes.

- Leia Saramago, o meu último biógrafo, e verá. Se calhar não leu, não podemos ler tudo… Ou será despeito seu por nunca ter recebido o Nobel? Ah! já me esquecia, você é cego. Os cegos não lêem, embora, caso curioso, possam ser directores de bibliotecas… De bibliotecas cegas, foi você que o disse… No entanto, pelo que sei, não lhe faltaram os olhos dos outros para fazer as suas leituras.

Borges acolheu com bonomia as alfinetadas de Ricardo Reis. Dirigiu o rosto na direcção da estátua do Adamastor, pensativo, como se escrutinasse nas gavetas do tempo uma memória antiga. Trocou umas palavras incompreensíveis com Herbert Quain, possivelmente em algum dialecto celta, e virando-se para Ricardo Reis falou assim:

- Uma coisa acho extraordinária em si, meu caro Fernando. Bem, não será a única, mas é uma delas, e muito importante, que sempre me deu que pensar. É que você tenha tido a pretensão de se constituir em émulo de Luís de Camoens…

- Luís de Camões – emendou Ricardo Reis, já conformado com a maneira como sistematicamente era nomeado por Borges.

- Eu digo Camoens. Nunca assimilei convenientemente o vosso vocalismo nasal. Sabe bem que a minha língua materna é o inglês, o castelhano veio mais tarde… Mas adiante: você escreveu a Mensagem como quem escreve Os Lusíadas do século XX. Falou do Bandarra, não esqueceu o Conde D. Henrique nem D. Tareja, mas sobre Luís de Camoens nem uma palavra. A isso chamo eu uma omissão histórica. E voluntária. Além disso, há uma diferença entre as duas obras: o grande épico recebeu por Os Lusíadas uma tença anual de quinze mil réis, atribuída pelo rei de Portugal, e você com a sua Mensagem não foi além de um segundo prémio do Secretariado de Propaganda Nacional do António Ferro, um intelectual que era funcionário do regime, o maior admirador de Salazar. Depois, lembrei-me disto há pouco, você nem fala do Adamastor. Camoens dedica-lhe vinte e quatro oitavas no Canto V, tanto como cento e noventa e dois versos; você na Mensagem alude a um Mostrengo, e resolve o assunto de uma penada, em três estrofes de nove versos… Ora o seu Mostrengo não tem nada a ver com o Adamastor do nosso grande épico. Digo nosso, repare bem, porque me correu nas veias o sangue português. Não sei se sabe, mas sou descendente dos Borges de Torre de Moncorvo. Até tenho uns versos feitos aos meus antepassados,

Nada o muy poco sé de mis mayores
Portugueses, los Borges: vaga gente
Que prosigue em mi carne, oscuramente,
Sus hábitos, rigores y temores…

- Já conheço, escusa de se dar ao trabalho de continuar – atalhou Ricardo Reis.

Borges levantou-se, e um pouco inseguro, batendo com a bengala como se procurasse orientação, foi até junto da estátua do Adamastor. Deteve-se ali durante uns minutos – se é que é possível falar de minutos, ou mesmo de outra unidade de medida, para exprimir o tempo dos que não existem –, a boca entreaberta de admiração, os olhos vagos postos na massa de pedra do Gigante. Era essa a visão do estatuário: o Adamastor apaixonado, sofredor, que revelara a Vasco da Gama o seu amor por Tétis, o sentimento não correspondido. Não serve ao amor de uma ninfa a fealdade de um gigante – verdade tardiamente entendida pelo titã. E foi assim que tendo surgido assustador sobre a minúscula nau, figura robusta e válida, pressagiando naufrágios e perdições de toda a sorte, se apartou de ante os olhos do Gama em medonho choro, esmagado pelo sofrimento de quem não é servido pelo amor.

Quando voltou para o seu lugar no banco, junto dos companheiros, estes conversavam em inglês sobre o modelo de desenvolvimento da Irlanda, país pobre que se tornou rico, e que bem poderia ser um exemplo para Portugal…

- Só quem amou poderia falar assim do Adamastor – disse Borges. Mas nem Reis nem Quain, enredados na sua conversa, compreenderam o que queria dizer.

Calaram-se finalmente quando o ouviram recitar um poema.

A LUIS DE CAMOENS

Sin lástima y sin ira el tiempo mella
Las heroicas espadas: Pobre y triste
A tu patria nostálgica volviste,
Oh capitán, para morir en ella
Y con ella. En el mágico desierto
La flor de Portugal se habia perdido
Y el áspero español, antes vencido,
Amenazaba su costado abierto.
Quiero saber si aquen de la ribera
Última comprendiste humildemente
Que todo lo perdido, el Occidente
Y el Oriente, el acero y la bandera,
Perduraria (ajeno a toda humana
Mutación) en tu Eneida lusitana.

Foi então que um vento inopinado tomou conta das copas das árvores. No banco em frente foram pelo ar as folhas de um jornal que era lido por dois idosos. Saltou o boné da cabeça de uma criança. Brilharam as coxas de uma rapariga debaixo da saia esvoaçante. Um sem-abrigo que fumava uma beata engasgou-se com o fumo e teve um ataque de tosse. Dois namorados que se beijavam junto à grade do miradouro vieram abrigar-se no pequeno bar do jardim. Num automóvel estacionado no largo disparou-se o sistema de alarme.

E houve quem visse dois grandes rectângulos de papel elevarem-se no céu sobre as casas que descem para o rio.

Borges está agora sozinho no banco.

Um dos idosos a quem o vento arrebatara o jornal, tocou no braço do companheiro e disse:

- Está ali um tipo que parece cego. Olha, vai levantar-se… Vamos perguntar-lhe se precisa de ajuda para atravessar a rua.

Diga-se porém que nada do que o idoso viu pode ser considerado seguro. De resto, nem é seguro que ali tivessem estado os dois idosos, e que o vento lhes tivesse levado o jornal, e que houvesse um banco de jardim com um letreiro a avisar que estava pintado de fresco.

D.E.

sábado, junho 03, 2006

O DESCONCERTO DOS AMANTES

Serena está deitada de costas na cama, a cabeça sobre as mãos numa nudez irrepreensível que me magoa os sentidos. Recorta-se a linha do corpo contra o cetim da colcha, o prodígio dos seios, a pele muito branca, o tufo de sombra dos pêlos púbicos. Faz-me mal vê-la assim, como um nu deitado de Modigliani fora do tempo e do espaço, sorrindo e entreabrindo as coxas como se se preparasse para os delírios do amor. Pela persiana que não está completamente fechada entra no quarto uma fresta da luz da tarde… Mas nada disto que vejo tem existência real. Serena não está comigo, deixou-me há muito tempo. Saiu de casa dominada por um inesperado desencantamento, e dela conservo na memória estas imagens que projecto como holograma no espaço vazio do meu quarto. Vejo-a sempre assim desde o dia da sua partida. Todos os dias.

Não foi paixão, disse-me, não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Cegou-me a tua luz, fragilizei-me, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Subo a persiana e encho o espaço do quarto de claridade. Serena volta-se de bruços, como se a luz e o ar quente da tarde lhe causassem incómodo ou apenas quisesse subtrair o rosto à observação dos meus olhos. Vejo-lhe as ancas e o anel da cintura, os ombros estreitos, o torneado das nádegas e das pernas.

Já não te sinto, disse-me, não consigo viver com este afecto mudo, como se me bastasse o teu olhar para saber que me amas.

Senta-se na borda da cama e faz tenção de começar a vestir-se. Toma as roupas que jazem em desalinho sobre o cadeirão. Enfia os braços nas mangas da camisa, veste as calças. Está agora de pé, virada para mim, a camisa desabotoada, os cabelos soltos caindo sobre os ombros. Apetece-me tocar-lhe nos seios… Mas não adianta pensar nisso. Serena não está aqui e o que vejo não passa de uma ilusão amarga que se meteu no meu quarto e me faz sofrer.

Só me desejas pela minha beleza, disse-me, nunca foste capaz de me ler a alma. Para ti não passo de um corpo e de um sexo.

É verdade que te desejo pela tua beleza, sim, a beleza é o pão dos olhos, não sei viver sem ela. Mas não me peças que te fale de amor. São redundantes todos os discursos amorosos, são frágeis as palavras quando nos propomos explicar os sentimentos. As palavras são sons, apenas sons, signos inconsequentes que não suplantam a eloquência dos olhos, o toque das mãos.

Serena acaba de se vestir. Passa a escova pelos cabelos olhando-se no espelho. Sai do quarto, e eu oiço bater a porta que dá para a escada. Sinto-me asfixiar dentro do espaço fechado. Chego à janela que se abre para o precipício da rua e vejo-a sair. Olho-a, sigo os seus passos pela calçada. Sinto-me cansado. Respiro profundamente bebendo a grandes sorvos a aragem quente. E encho-me da luz da tarde até cegar, como um pássaro doido voando no abismo.


D.E.

NUNO JÚDICE, o blogue

www.aaz-nj.blogspot.com


REGRESSO DO BAILE


Falo de poesia pura, como se de pura
abstracção estivessem a tratar as mãos
que despem este corpo. E quando passo de um verso
a outro, sabendo que a imagem vai nascendo
deste movimento em que as palavras
dançam na página, limito-me a seguir
os dedos que abrem botão após
botão, e desfazem laço
após laço, até descobrirem o que
sabíamos que existia, sem nunca o ter visto:
o belo, na sua exacta proporção.

No centro do quadro, onde uma janela
se abre para o que é, talvez, uma paisagem,
o olhar distrai-se do significado que
o gesto constrói. E quem passa o limite,
e se confronta com a sombra, perde
a possibilidade de um regresso a este
instante luminoso, em que num simples
eco a música da noite se concentra,
enchendo os ouvidos que se habituaram
ao silêncio.

Por isso, espero que o trabalho
chegue ao fim, para que a mulher se volte,
e dê à dança o argumento
da sua nudez.

Nuno Júdice