quinta-feira, março 22, 2007

Ainda o DIA MUNDIAL DA POESIA

Para comemorar o Dia, que também se apresentava como sendo da Árvore e, quiçá, da Primavera, estive na Bibiloteca Municipal de Alverca, a partir das 21 horas, onde estava marcado encontro com o poeta Gastão Cruz, nascido em 1941, personalidade ligada ao movimento Poesia 61 (com Casimiro de Brito, Fiama, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta) e autor de vasta obra poética.
Éramos nove, incluindo-se neste singelo número o poeta, a responsável da biblioteca e a senhora vereadora do pelouro da cultura.
Mesa fraca para tão saboroso repasto.

Aqui fica um poema de GASTÃO CRUZ:


OUTRO TEMPO


Ficávamos de tarde com a música
na escuridão dos quartos repassados
de secura
como se a luz atravessasse
sem claridade a casa


O corredor
alargava junto às salas
fechadas a maior acabava num
púlpito debaixo
do torreão em forma de coroa da casa


Durante horas a música lançava
obscuras vagas
o futuro
tão perto já cavava
covas nas salas nunca usadas

quarta-feira, março 21, 2007

DIA MUNDIAL DA POESIA

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.


REINALDO FERREIRA

(Barcelona, 1922 - Lourenço Marques, 1959)

domingo, março 11, 2007

NOVA E SURPREENDENTE HISTÓRIA DO LETRADO LUSCIÉNIO, PROCURADOR DO COUTO MINEIRO DE VIPASCA NO TEMPO DE AUGUSTO

Quem conta um conto, acrescenta um ponto.
(Adágio popular)

Lusciénio, letrado romano, filho dum liberto que enriquecera com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados, cumpria desterro por crime que adiante se conhecerá no mais inóspito confim do Império, a remota Lusitânia, explorando uma concessão de cinco poços de cobre no couto mineiro de Vipasca. Chegou acompanhado da escrava Gláucida, prestadora de serviços tão apreciados pelo seu dono e senhor que até se colocou a hipótese de lhe conceder a carta de alforria. Sendo um letrado, Lusciénio foi entretanto requisitado pelo governo de Emérita Augusta para exercer as funções de jurisconsulto da civitas de Pax Iulia, lugar que lhe rendeu honra e acrescentamento, integrando-o na nata da sociedade local e permitindo-lhe firmar os seus créditos para se lançar a mais altos voos.
Apesar do travo do exílio, tudo estaria bem na vida de Lusciénio se este não se debatesse com um persistente distúrbio que lhe causava desgosto e vergonha. Moles como lesmas, não se lhe endureciam as carnes da genitália por maior carga de excitação que lhe habitasse o corpo. A razão deste desarranjo de ordem sexual – disfunção eréctil lhe chamará mais tarde a ciência – atribuía-a Lusciénio a um feitiço obrado pela lasciva Semprónia, mulher maligna que nas noites de Roma lhe secava as fontes seminais em imoderados festins de prazer, sempre insatisfeita, desejosa e despeitada com o afecto que ele dedicava à escrava Gláucida. Sendo Semprónia uma das concubinas de Augusto, sofreu Lusciénio a ira do Pater Patriae, que o enviou para o desterro lusitano no mesmo ano em que, provavelmente por análogas razões, despachou Ovídio para o exílio de Tomos.
Lusciénio não era parvo. De triclínio em triclínio, em luxuosos banquetes, foi consolidando as suas amizades com os poderosos e influentes até chegar a procurador do couto mineiro de Vipasca. Ascendeu ao posto por mérito próprio, mas uma boa ajuda lhe foi dada por uma arca de sestércios com que pagou, a quem de direito, o reconhecimento da sua aptidão para o provimento de tão rendoso cargo.
Estava Lusciénio já investido nas sua funções de procurador, fazendo vida de rico e tendo começado a construir uma villa com peristilo, jardim, lago de repuxos, triclínio, mosaicos pavimentares, banhos quentes e frios e outros cómodos, quando um legionário chegado de Roma para render um companheiro de armas que terminara a comissão de serviço, lhe entregou uma carta de seu pai:

Meu querido filho, muito tempo passou desde aquele dia em que de ti me apartei no cais do porto de Óstia, muita água correu sob as pontes do Tibre, muito sol queimou os telhados da nossa urbe e as copas das árvores que bordejam a via Ápia. Não voltei a receber notícias tuas dessa Hispânia onde te encontras, perguntando-me se sempre te fixaste na Lusitânia, como estava determinado e para onde te remeto a presente carta, ou se não te terás quedado pela Bética ou pela Tarraconense, províncias bem mais progressivas do que esse fim do mundo de bárbaros a que te condenaste. Meu filho do coração, quando providenciei para que tivesses os melhores mestres de Roma e zelei para que cumprisses dois anos de estágio em Atenas entre sábios e filósofos epicuristas, sempre pensei que, com tão robusto currículo, se abririam para ti as portas de uma rendosa carreira no foro, o que redundaria em teu proveito e em grande orgulho meu. Erros da juventude, meu filho, desviaram-te do caminho justo. Não é impunemente que se desafiam os desígnios do grande Pai da Pátria, o Imperador Augusto. Pagaste os errores cometidos, mas é chegada a hora de te dizer que, finalmente, há boas notícias. Poderás voltar a Roma, livre do opróbrio do exílio, logo que queiras. Vou explicar-te como consegui esta graça, mas antes, para que o possas entender, fica a saber que abandonei em definitivo as actividades mercantis ilícitas. Bom dinheiro me renderam, é verdade, mas mais cedo ou mais tarde, por evolução natural, teriam de ficar para trás. Hoje só trabalho com produtos alimentares de qualidade certificada: azeites da Hispânia e vinhos da Gália, tâmaras de Alexandria, ovas de esturjão do Cáspio, preparados de peixe de Gades, carne de vaca da Numídia. Tornei-me fornecedor da domus imperial e dos grandes patrícios de Roma, disponho de agentes comerciais nas grandes praças do mercado único do nosso Império. Foi assim que consegui, agora te explico, através das influências adquiridas no negócio, demover o Imperador. Em breve seguirá o decreto que te torna livre para regressares à Pátria. Meu adorado filho, vê se voltas depressa para tomares conta dos nossos negócios, pois a minha idade, bem o sabes, é já avançada. Nada receies, meu amado filho. Poderás casar, constituir família com uma matrona que te respeite e dê filhos, nada poderá perturbar a tua felicidade e dedicação ao trabalho. O Imperador perdoou a tua ousadia, e Semprónia, a lasciva, causa da tua perdição, acaba de ser desterrada para a Trácia por ter sido apanhada em orgias com mulheres de condição livre e escravas. Augusto, o Pai da Pátria, não perdoa imoralidades. Que os deuses te instruam, meu filho. Saúda-te o pai que muito te ama e deseja ver.
Foi por entre um remoinho de sentimentos contraditórios que Lusciénio leu a carta do pai. Era já noite. Afastou-se das lucernas que iluminavam o escrito e pôs-se a pensar. Desejava muito voltar a Roma, mas a verdade era que estava a consolidar a sua vida naquelas paragens lusitanas onde ganhava bom dinheiro e via correr os dias sem tribulações. Habituara-se à índole pachorrenta dos povos que habitavam as grandes planícies do Sul, debruçados sobre as searas com todos os vagares do mundo, sempre em dolentes cantes, pedindo licença a uma perna para mexer a outra, apascentando rebanhos de ovelhas e vigiando com os olhos dormentes as varas de porcos pretos focinhando a nutriente bolota sob os ramos dos chaparros. Habituara-se a apreciar a flora e a fauna locais, o olor e a luz das estevas em flor, o voo da abetarda e da cegonha. O sul da Lusitânia era uma terra de horizontes largos, de estranhos monumentos de pedra que se recortavam na paisagem clara, uns apontando os céus como dedos hirtos, outros em forma de templo na sua massa tosca, erguidos por antiquíssimos povos, muito anteriores aos celtas e cónios que a civilização de Roma ali viera encontrar. Partir era bom, ficar também. E depois, de que lhe serviria casar se não seria capaz de cumprir as obrigações exigidas a um pater familias? Mantinha-se o distúrbio sexual que o acometera, e Lusciénio rememorou todas as tentativas feitas para o superar: a medicina convencional e as terapias alternativas não resultaram; não resultou igualmente a poção receitada por um druida gaulês que Fortuna da roda alada e da cornucópia colocara no seu caminho, penando três dias com as tripas doridas e o ânus assado, os ingredientes bárbaros a revolverem-lhe as entranhas, e as carnes penianas permanecendo, teimosamente, sem vida; depois foi a peregrinação ao santuário do deus Endovélico, as ofertas votivas, as preces a Iupiter Optimus Maximus e os rogos a Prosérpina, deusa infernal, esposa de Plutão, para que contrariasse a maldição que sobre si se abatera; frequentou bruxos, visitou mulheres de virtude, tentou excitar-se em lupanares e orgias. Tudo fizera Lusciénio para tentar recuperar a virilidade perdida, e nada conseguira. Chegava a casa, aninhava-se nos braços da escrava Gláucida, e não ia além de umas carícias, de uns beijos ternos.
Algum tempo depois de haver recebido a carta do pai, teve Lusciénio de enfrentar uma grave contrariedade, a primeira que lhe surgia na sua carreira de funcionário do Império. Vindos da margem esquerda do grande rio que banhava Myrtilis, porto de embarque de todo o minério, hordas de bandoleiros descendentes dos antigos turdetanos da Bética assaltavam as caravanas que saíam de Vipasca e desviavam o produto metalífero para fundições ilegais. O estado e os concessionários que exploravam os poços de minério começaram a perder muito dinheiro, a braços com aqueles díscolos que assolavam as rotas de escoamento e ameaçavam levar o couto mineiro à falência. O minério que saía pelo porto fluvial de Myrtilis era baldeado para embarcações de longo curso nos portos de Ossonoba ou Lacobriga, as quais logo seguiam as rotas do mar em direcção às colunas de Hércules, engolfando-se no grande mar interior em cujas margens se situavam os centros consumidores. Lusciénio largou a pena, desvestiu o trajo togado, e, empunhando o gládio, cavalgou os caminhos de pó da planície ao lado dos legionários, dando caça à malandragem, perseguindo-os muitas milhas além de Vipasca. No Castelo da Lousa, na margem esquerda do grande rio, pernoitava Lusciénio com os legionários durante as expedições punitivas, não podendo saber que, vinte séculos mais tarde, barrado o curso do rio com um grosso paredão, toda aquela vasta área ficaria sepultada sob as águas de um lago, tão grande e profundo que nenhum homem da sua era poderia imaginar. Lusciénio chegou a pensar em alterar as rotas do minério, já conhecidas dos bandoleiros, fazendo-o seguir para um porto seguro naquele rio que subindo de sul para norte, ao contrário de todos os outros rios da Lusitânia, dirigia o seu curso para a próspera Salácia das cegonhas e das pinhoadas e se entregava ao mar, entre golfinhos e viveiros de ostras, numa baía azul onde se erguia a promissora Cetóbriga. Daí poderiam partir os barcos de mercadorias para o grande mar interior, onde encontrariam todos os ventos que Ulisses conhecera no caminho de Ítaca: o Bóreas, o Noto, o Zéfiro, o Euro. Mas logo concluía pela dificuldade do projecto, pelos custos de transporte que acresceriam em tal empresa: uma longa viagem atlântica de enormes riscos, a necessidade de contornar o Promotorium Sacrum com o seu mar alteroso, antes de se poder navegar à vista daquela costa amena, virada a sul, com as suas arribas rendilhadas e as praias de areias de ouro.
Foi numa dessas noites em que pernoitava com os legionários no Castelo da Lousa que Lusciénio, excitado das correrias da jornada, deu em reparar, com um inusitado interesse, nos grossos chumaços das genitálias sob as tangas dos militares. Retirados os uniformes, pernas e troncos ao léu, os corpos abandonados em repouso à luz dos archotes da caserna, arregalavam-se os olhos de Lusciénio para os generosos volumes entre coxas, uma singular atracção que começava a sentir e que não sabia bem aonde o poderia levar. Tal era a insistência com que o fazia que logo suscitou motejos da parte dos castrenses, uns claramente assumidos como machos, outros, se calhar, nem tanto, pois é sabido que a diferença de orientação sexual não era impeditiva, na sociedade romana daquele tempo, de se empunhar o gládio e a lança em defesa da Pátria.
A partir de aqui não voltaria a ser o mesmo o letrado Lusciénio. Detinha-se frequentemente a avaliar a musculatura dos trabalhadores braçais do couto mineiro, como se, na qualidade de procurador, quisesse certificar-se de que os homens ao seu serviço estavam em perfeitas condições físicas para o rude labor da extracção metalífera. Nos banhos, deixava o recato do reservado que as suas altas funções lhe haviam outorgado e misturava-se com militares e cidadãos comuns, com capatazes e homens de ofício, buscando a proximidade dos corpos, tocando e deixando-se tocar, em públicos deleites a que já não sabia resistir. Gláucida deixou de ser chamada para a sua cama, passando de escrava para todo o serviço a uma singela prestadora de trabalhos domésticos, completamente desqualificada perante o novo escravismo com que entretanto se adornara a casa. O preferido de Lusciénio, nesta nova fase da sua vida, era um rapagão de procedência norte-africana, de nariz esborrachado e músculos lustrosos, adquirido a um mercador de Olisipo especializado no fornecimento de escravos de prazer. E começou a correr, célere como o cavalo de Fama, a notícia da condição de effeminatus do procurador de Vipasca. Bem pensado, que outra saída poderia haver para um homem a quem os deuses, impiedosos, haviam roubado a virilidade?
Quando, por um dia quente já muito próximo das calendas de Julho, chegou a Vipasca o decreto imperial que abolia a pena de desterro do letrado Lusciénio, este mandou expedir um agradecimento ao Imperador, Pai da Pátria, mas invocando conveniência de serviço e os superiores interesses do Império, pediu licença para se manter em funções, não abandonando o couto mineiro.
Diz-se que viveu feliz o resto da vida na remota Lusitânia. E isso é afinal o mais importante. Seja onde for, seja como for.