domingo, dezembro 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIV)

E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria , ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignomínia crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. – Isto é dito por Almeida Garrett nas Viagens, cuja história decorre em Julho de 1843, em pleno período da ditadura de Cabral. Dito por Garrett e não por um seu narrador, pois há suficientes provas, ao longo de toda a narrativa, da identificação do autor com o narrador e protagonista. A crítica costuma enfatizar a complexidade da obra, os seus diferentes níveis (narrativa de viagem, novela, carta) e o hibridismo formal típico do Romantismo, mas raramente se detém nas suas marcas autobiográficas. Uma verdadeira autoficção, dizemos nós, muito antes de o termo ter sido inventado, em 1977, por Serge Doubrovsky.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIII )

Em certa altura, no silêncio da casa, a minha mãe dizia como se se tratasse da coisa mais natural do mundo: “Lá está a costureira.” Eu aproximava o ouvido do sítio da parede que ela tinha apontado, e aí ouvia, juro que ouvia, o ruído inconfundível de uma máquina de costura, das de pedal (não existiam outras), e também, de vez em quando, um outro som característico, arrastado, o da travagem, quando a costureira leva a mão direita à roda para deter o movimento da agulha.

(JOSÉ SARAMAGO, As Pequenas Memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, p. 89.)


Ouvi-a algumas vezes na casa da minha avó, em Tomar, nas horas lentas dos serões, e também em Lisboa, num terceiro ou quarto andar da Travessa Nova de Santos, onde morei com a família até aos seis anos de idade. Chamavam-lhe a costureira, ou a costureirinha. O som vinha do interior das paredes, de detrás dos móveis ou até dos interstícios do soalho, reproduzindo na perfeição o ruído de uma máquina de costura em pleno funcionamento. O meu pai, de quem herdei, entre outras coisas, um certo pendor para a incredulidade, dizia tratar-se de um insecto que roendo o seu sustento ou vibrando as asas produziria aquele rumor semelhante ao de uma máquina de costurar. Que insecto seria, não sabia dizer, mas recusava as explicações destituídas de racionalidade.
Li hoje n´As Pequenas Memórias de José Saramago o relato de igual experiência vivida pelo escritor nos seus tempos de criança. A explicação que lhe era dada pelos adultos referia uma costureira que por não respeitar os domingos, trabalhando afincadamente nesses dias em vez de os dedicar ao culto de Deus, havia sido condenada a costurar eternamente, eternamente metida dentro das paredes das casas. Já não me lembro que justificação fabulosa me apresentavam para tão intrigante mistério, mas estou em crer não ser muito diferente da que era prescrita ao pequeno José pelos seus familiares.
Tal como Saramago, também eu não voltei a ouvir a costureirinha. Talvez o juiz condenador tenha decidido comutar-lhe a pena, libertando a triste de tão penoso fadário. Ou talvez tenhamos deixado de a ouvir apenas por causa do barulho dos aparelhos de televisão e das potentes aparelhagens de som que passaram a marcar lugar nos nossos espaços domésticos, abafando com os seus decibéis o brando murmúrio da respiração das casas. Tudo é possível.
Não me atrevo a jurar, como o nosso Nobel, mas lá que a ouvi, ouvi, a pobre costureirinha, condenada por um juiz cruel a vaguear de casa em casa, por dentro das paredes, sempre a dar ao pedal da sua máquina de costura. Pequenas memórias? Não me parece.