sexta-feira, novembro 25, 2005

À VOLTA DE EPICURO, FILÓSOFO GREGO, 341 a.C.- 270 a.C.

Um dia destes faço-me epicurista. Vou para o campo compor bucólicas, apascentar rebanhos, amar pastoras míticas. O emprego que se dane, as contas que fiquem para quem as quiser pagar.

O epicurista é um sábio. Conduz o carro da vida por estradas sempre desimpedidas, por onde o trânsito flui sem a menor dificuldade. Sabe evitar o desconforto dos abomináveis congestionamentos, vive com serenidade, não conhece desordem e paixão que lhe perturbem a alma.

A minha curiosidade, digamos, intelectual, não cessa de me levar a extraordinários exemplos de seguidores de Epicuro: desde Lucrécio, poeta latino, até Ricardo Reis, de quem recomendo a leitura da magnífica ode OS JOGADORES DE XADREZ.

Mas nem precisava de recorrer a exemplos de tamanha dignidade. Tenho outros, igualmente válidos, que estão mesmo debaixo dos meus olhos. Vejamos.

O jovem que tenho lá em casa detesta relógios, em especial os que recebem o epíteto de despertadores. Por essa razão, vai acumulando faltas às aulas matinais da Faculdade. Pois se o corpo e a mente se recusam a despertar, a horas em que o Sol ainda mal nasceu, por que razão é que havemos de os obrigar a enfrentar a luz do dia através de processos violadores da recta natureza das coisas? Adianta apanhar comboios e autocarros, padecer nas estradas a caminho do trabalho, quando o sono, porque curto, não logrou recuperar-nos para o cabal desempenho das nossas funções?

A minha consorte, estimável pessoa, também não gosta de relógios. Tira a medida do tempo pela altura do Sol, acredita na verdade pura da luz e da sombra. No emprego, teima em não aceitar a promoção que lhe querem dar, pois isso lhe trará, inevitavelmente, mais trabalho e dores de cabeça. E o dinheiro não é tudo!

Amemos, pois, Epicuro e as suas sábias lições. A felicidade é vivermos de acordo com a bondade da alma e a simplicidade dos sentimentos. É fugirmos ao sofrimento cruel. Dominemos o corcel das paixões, esse cavalo de Tróia que tantas vezes metemos no coração para nos perdermos. Não dêmos passos mais compridos que a medida da perna. Deitemos os olhos só até onde podemos ver.

Há que escolher entre ócio e negócio. Negócio é a negação de ócio, conforme indica o antepositivo neg. Por mim, já não deve tardar muito que deixe o negócio e me entregue às delícias do ócio. Quando derem pela minha falta, procurem-me, se quiserem, num lugar irreal. É por lá que estarei, de bem comigo, amando Epicuro e a sua sabedoria. E nenhum de vós, meus entes queridos, se vai admirar ou perturbar com a minha opção. Pois foi convosco que aprendi tudo o que começo a saber sobre a serenidade da vida.

D.E.

sexta-feira, novembro 11, 2005

LEMBRANÇAS

O trovador. No princípio tive dificuldade em compreender por que razão se viera meter no Sindicato. Via-o arrastar a figura pesada pela floresta de secretárias, de gabinete em gabinete, sentado à mesa da sala de reuniões a afinar estratégias e a preparar prosaicas acções de propaganda, como colar cartazes ou distribuir panfletos nas saídas do Metro.

Ia quente o Verão. Havia muita ganga nas ruas. Decorria a campanha eleitoral para os corpos directivos do Sindicato dos Trabalhadores de Escritório. Além de trovador, trabalhava numa empresa de publicidade, ou coisa parecida, daí a sua filiação sindical.

Enquanto o trovador se entregava à luta sindical, a rádio difundia, nas vozes de conhecidos jograis e jogralesas, as cantigas de amor e de amigo, de escárnio e mal dizer que inspiradamente compunha: desfolhadas em eiras de milho sob luares de Agosto, touradas com bandarilhas de esperança, laranjas amargas e doces.

Não era, pois, um trovador palaciano, desses que vemos sentados à mesa de reis e senhores, beneficiando do cómodo agasalho dos mecenas. Andava misturado com a plebe, convivia com o operariado das fábricas e dos estaleiros em manifestações e comícios. Amava a poesia e a luta de classes, ele que não era castrado da arte nem do sentimento.

Mal cheguei a conhecê-lo.

Uma noite, quando já se afigurava que nunca ganharíamos as eleições, ficámos a conversar, já tarde, no passeio da Rua Brancaamp. Foi quando me dirigiu o convite para beber um copo e acabar a conversa num qualquer bar da cidade. Não aceitei, que o dia seguinte era de trabalho, impunha-se descansar.

Vi-o apanhar um táxi e atravessar a solidão da noite na direcção do Largo do Rato. Um homem na cidade.
E eu nunca me perdoei daquela conversa por minha vontade inacabada.
D.E.