terça-feira, maio 13, 2014

DOCUMENTOS DOS TEMPOS COLONIAIS

Um exemplo do desprezo a que eram votadas as mais elementares aspirações dos naturais. Até para receber o sacramento do matrimónio era preciso meter cunhas junto de patrões e superiores hierárquicos. Uma igreja para colonos e outra para colonizados -- colonização exemplar.
Nampula 27-10-71
Ex mo Senhor
Alferes Mil. do D.B.I. / NP.
Manuel José Matos Nunes
Muito bom dia.
Vim respeitosamente rogar a V. Excia e enformando-lhe o meu caso com a Paróquia.
Ora!  – eu fui a Paróquia, por caso não toquei o assunto do meu casamento na mão do Senhor Pároco; sem que primeiro ter com Senhor Catequista e ele diz-me assim:
 – Faria bem se o senhor isse ter com os seus ou seu patrão, para ires com eles ou ele, a perguntar que dia será para o meu casamento ou o mês. Para você ficares a espera o dia do seu casamento preparando o seu material. Para você ires sozinho ter com o senhor Padre, ele há-de custar-lhe dar-lhe uma resposta urgente.
Por isso peço ao meu alferes que me dê uma pequena companhia para lá a Paróquia…
Muito grato ficaria se me desse uma resposta possível.
                                                                                  Remete: A………………

domingo, maio 04, 2014

EPISTOLÁRIO *

Nampula, 13.11.1970
Cara amiga,
Foi com satisfação que recebi a sua carta. Ela veio quebrar um silêncio de alguns meses e estou-lhe grato por isso. Nem a minha partida precipitada, nem o embaraço e desorientação de me vir ligar a uma causa que não é minha, nada disso justificava uma partida sem nada dizer.
Começo por lhe falar de Nampula, cidade onde fui colocado. O ambiente que aqui se vive é essencialmente militar. Dantes, a cidade funcionava como quartel general avançado; hoje, é daqui que a guerra é efectivamente conduzida.  Viaturas militares circulam pelas ruas em todos os sentidos. À noite, nos cafés, fala-se de tropa. Situada no interior, a uns 200 km. da costa, a cidade beneficia de um clima seco que, segundo creio, até nem é dos piores de Moçambique. Como diversões há um cinema e pouco mais. A vida é caracterizada pelo “deitar cedo e cedo erguer” como mandam as boas regras. A água tem de ser fervida antes de se consumir. Por vezes abre-se a torneira e, por mais lentes que um homem ponha, não consegue enxergar uma só gota do precioso líquido. Quanto ao abastecimento de luz também não prima pela regularidade. Mas, apesar de tudo, isto ainda é muito bom quando comparado com certos sítios… Tive bastante sorte em não ter ido parar ao mato.
Cheguei aqui a 5 de Outubro, vindo de L. Marques, e não há dúvida que sofri um grande choque. Lá em baixo tudo, ou quase tudo, é diferente. Fui colocado na Chefia do Serviço de Intendência, organismo que tem a seu cargo o planeamento e a coordenação do reabastecimento. As minhas funções são, portanto, essencialmente burocráticas. Além disto entro na escala de serviços no Quartel General e, muito provavelmente num futuro próximo, na de colunas logísticas para Mueda.
Por aqui a guerra continua e ninguém desconhece que só de uma maneira ela pode terminar. Não se pode conter aquilo que vem do seio do povo como não se pode conter um vómito. O português, tão humilde na sua terra, transforma-se completamente ao chegar a África. Ele contacta aqui com uma população num estado de subdesenvolvimento muito maior que o seu e isso dá-lhe uma confiança extraordinária em si mesmo. O que sempre foi um modesto jornaleiro converte-se num homem empreendedor, contrata trabalhadores, adquire rapidamente aquela mentalidade odiosa que nós conhecemos. Claro, é fácil prosperar quando se paga a um trabalhador, a coberto da lei, 200 e 300 escudos mensais. Por muito pouco qualificada que seja a mão de obra ela produz sempre dez vezes mais que o seu salário. E admirem-se que um povo mais aguerrido (em Moçambique é o caso dos macondes e dos aianas) pegue em armas disposto a lutar contra este estado de coisas. A guerra em Moçambique estende-se já a três distritos: Cabo Delgado, Niassa e Tete. A actuação do nacionalismo é todo à base de implantação de minas nas picadas. As minas são, como sabe, engenhos explosivos accionados por compressão. São difíceis de detectar, sendo a causa de muitas mortes e elevados prejuízos materiais. Cada “Berliet” destruída representa para a Nação 400 000$00 e isto é sangrar. Mas os homens, terão preço? Há quem diga por aqui que os homens é o menos – requisitam-se mais – mas que as “Berliets” é que são difíceis de arranjar.
Uma guerra destas só pode ser ganha, toda a gente o sabe, por quem tiver o apoio da população. Ora o que é facto é que nós não temos o apoio da população.  Ela pode estar subordinada, por uma questão de medo, mas não perderá a oportunidade de se vingar de tanta humilhação sofrida, nem deixará de prestar ajuda aos que já estão engajados na luta.
A mim chateia-me estar aqui a perder 2 anos (e mais um monte de coisas) só para defender as costas a meia dúzia de sub-humanos sem quaisquer escrúpulos.
Entretanto aqui no distrito de Moçambique, onde habitam os macuas, a situação é relativamente calma. Graças a isso temos o turismo interno: a ilha de Moçambique, a praia da Choca, Nacala, António Enes, etc. Aqui em Nampula, chegado o fim de semana, faz-se 200 km. até ao litoral como se vai de Lisboa ao Guincho. Isso é importante para a sanidade mental de cada um. Pelo que disse já deve ter para si que isto é do género que “não interessa a ninguém”. Se não é o escape do fim de semana um cavalheiro tem fortes hipóteses de ir parar à neuropsiquiatria.
Se me aguentar por aqui, apesar disto ser uma sucata, terei oportunidade de acompanhar certas matérias e, eventualmente, ir até L. Marques fazer umas cadeiras. Do mal o menos. É aborrecido pensar que ainda falta tanto tempo para me ver livre disto.
Durante os dois anos de comissão terei direito a dois períodos de férias de 35 dias. Possivelmente, um deles será para ir até Lisboa. Ainda há dois meses que saí de lá e já só penso em voltar.
E por agora é tudo o que tenho para lhe dizer. Escreva sempre e pergunte sempre o que quiser.
Cumprimentos para si e para seu marido.
Cumprimentos também às jovens da DVL.
                                                 O amigo certo,
 
* Não há explicação - apenas uma vaga ideia - sobre a razão de se encontrar este aerograma na posse do remetente. Que ele foi enviado, foi: ver carimbo dos correios, 16.11.70.