sexta-feira, julho 28, 2006

foto JN
Não sei se ela apenas olha
as ruínas das casas
os sulcos
que se abrem no chão à força
da charrua das bombas
ou se procura
em alguma memória
de outra vida distante
a tranquilidade do mar
as frescas florestas de cedros
os pássaros que em pleno Verão
riscavam a alegria dos dias
no céu da cidade

Talvez da janela
aberta como uma ferida
ela não veja mais
que o reflexo da parede
trespassada de fogo
e ao coração ainda puro
ignorante da raiz dos destroços
não reste senão
para memória futura
a poeira do tempo parado
de onde nascerá o ódio

D.E.


domingo, julho 23, 2006

A ARTE DE BEIJAR

Não sabes beijar, disse-lhe ele, sacudindo-a de cima de si para a borda da cama. Era noite, um feixe de luar atravessava a janela aberta que dava para um pátio onde àquela hora, em pleno Verão, ainda brincavam crianças. Ela deixou-se ficar quieta durante algum tempo, olhando o jorro de luz que lhe iluminava o corpo. Depois levantou-se com muito cuidado para não acordar o companheiro que entretanto adormecera e foi sentar-se na pequena sala de estar a ver televisão. Passava um filme romântico, um casal que se beijava num grande jardim que lhe pareceu o Central Park de Nova Iorque, isto porque acima das copas das árvores erguiam-se, enormes, as colunas de cimento dos edifícios urbanos. Um filme americano. Pôs-se a estudar a forma como os amantes se beijavam: a inclinação dos eixos das cabeças, a abertura dos lábios, a maneira como prendiam as mãos ou como as soltavam em brandas carícias de amor. Beijar sempre se lhe parecera uma coisa natural, uma manifestação de afecto desprovida de qualquer grau de ciência, algo que nos vem da alma como a luz nos entra pelos olhos. Mas agora chegava à conclusão que, em verdade, deveria haver uma maneira certa de beijar, bastava dar conta da forma como o faziam os amantes do filme. Tinha de aprender a beijar, o mais depressa possível.

Na manhã seguinte, no escritório, recordou-se das dificuldades profissionais que inicialmente tivera. Dissera-lhe o chefe, um dia, Você se não aprende a trabalhar com o computador não vai ver o seu contrato de trabalho renovado. E ela metera-se a estudar à noite naquela escola de informática do bairro, um curso de cem horas, dez semanas – Windows, Excel, Internet. Salvou o emprego. O que agora precisava para salvar a relação amorosa era de aprender a beijar. Mas escolas para aprender a beijar não conhecia. Uma colega tinha andado a frequentar um curso de etiqueta, outra aprendera dança do ventre, sabia de quem tivesse cursado arte de dizer, decoração de mesas, como receber visitas e organizar recepções, mas sobre a arte de beijar não conhecia nenhum curso em cujas aulas pudesse inscrever-se. Passou a ver os filmes da televisão e as telenovelas com maior atenção, e parecia-lhe que alguma coisa ia aprendendo com eles. Só que na prática não via confirmados os progressos que pensava estar a fazer. O companheiro continuava a achar uma sensaboria os beijos que ela desentranhava para o fazer feliz, negando-lhe a boca que ela tanto procurava.

Lembrou-se então daquele seu grande amigo de infância com quem tinha vivido as inocentes brincadeiras de criança. Perdera-lhe o rasto na adolescência, quando a família dele se mudara para outra cidade, mas viera a reencontrá-lo mais tarde, acabado de sair de um divórcio muito traumático. Decidiu telefonar-lhe. Da mesma forma que, na altura, o encorajara a superar o difícil transe que ele atravessava, podia agora esperar a ajuda que só um amigo pode dar, o conselho, a orientação, tanto mais que se tratava de pessoa com experiência adquirida no domínio dos desacertos amorosos. Encontraram-se. O amigo ouviu-a com interesse, os olhos brilhantes. Segurou-lhe uma das mãos como quem transmite uma força, e passando-lhe um dedo no recorte da boca, disse: Vou ajudar-te. Como?, perguntou ela, pressentindo uma resposta que não podia conhecer antecipadamente mas que depois de dada compreendeu ser a única possível: Vou ensinar-te a beijar.

Começaram em casa dele, ao fim da tarde, seguindo um programa de formação minuciosamente estabelecido, com uma clara definição dos objectivos a atingir. Primeira sessão, só beijos de lábios. Depois, nas sessões seguintes, as aulas práticas progrediram em exercícios de dificuldade acrescida, trabalhando com a língua e os dentes, misturando secreções salivares, beijos sôfregos e de cortar a respiração. Por hoje chega, dizia ela, preparando-se para retocar os lábios com um batom que tirava da mala de dentro dum estojo de que fazia parte um pequeno espelho. Era sempre ela a pedir o fim da sessão. Ele, por sua vontade, continuaria. Voltavam no dia seguinte. Como fazia muito calor começaram a aliviar-se das roupas para uma execução menos penosa do trabalho: ele tirava a camisa, ficando nu da cintura para cima, e ela despia a blusa deixando apenas o sutiã. Os teus beijos são já tecnicamente perfeitos, disse-lhe ele de certa vez, É a altura própria para passarmos a práticas pedagógicas mais exigentes. E começaram a combinar beijos com carícias: enquanto as bocas sorviam ou mordiam furiosamente, as mãos soltavam-se sobre os corpos, tocavam as zonas erógenas, metiam-se sob o pano das roupas à procura de ocultas delícias. As sessões tinham lugar muitas vezes sobre o tapete da sala, na horizontal.

Não é possível saber quando terminaram exactamente as sessões, o momento em que o formador deu por concluída a formação ou mesmo a altura certa em que formanda sentiu já estar formada em arte de beijar. Também não é possível determinar se ele se limitou a ensinar-lhe a matéria inicialmente proposta ou se se terá alongado por artes e conteúdos extra-curriculares. Sabe-se sim que ela se tornou outra mulher, mais segura, mais ardente e confiante nas suas capacidades.

Sabe-se ainda que em certa noite, já no fim do Verão, estando ela deitada com o companheiro naquele mesmo quarto onde havia uma janela que dava para um pátio, ele se aproximou, tendo começado a beijá-la. Coisa estranha, talvez se tratasse dum apetite passageiro originado por algum estímulo inesperado. Ela não disse nada, mas pensou, enquanto se abandonava quase indiferente àquela surpreendente manifestação de afecto, que afinal era ele que não sabia beijar.

A noite estava fresca, já não se ouvia a algazarra das crianças brincando, só lhe apetecia dormir. E nenhum raio de luar atravessava a janela do quarto para iluminar o seu corpo.

D.E.

sexta-feira, julho 21, 2006

LER NA AREIA

O Leitor, de Bernhard Schlink.

Um romance sobre a descoberta do amor, o fascínio dos livros e a vergonha dos campos de extermínio do nazismo. Uma leitura densa de emoções e prazer. Um olhar sobre a História e o Direito. Um romance para se ler agora, no momento em que o fundamentalismo islâmico procede à revisão em baixa do número de vítimas do Holocausto – como se a diferença, por maior que fosse, pudesse alterar a expressão da monstruosidade. Um romance para se ler neste tempo, quando a Palestina e o Líbano estão a ferro e fogo e não é fácil compreender de que lado está a razão, se é que ela está em algum dos lados.
D.E.

sábado, julho 15, 2006

VOLTANDO AO MESMO




LYGIA!





ISTO COMEÇA A TORNAR-SE FIXAÇÃO DOENTIA.






VER AQUI:
www.gargantadaserpente.com/450/poemas/246.shtml

Sobre LYGIA FAGUNDES TELLES - "AS HORAS NUAS"

SEI APENAS AQUILO QUE UM GATO PODE SABER. Mas digo que para entender a alma duma mulher não chega às vezes a vida dum homem. Nisso terei eu algumas vantagens com as minhas vidas múltiplas: compreender uma mulher como esta, dona de mim mesmo, que me mandou castrar para que fosse só seu e de mais ninguém – Rosa, Rosa Ambrósio, Rosana, actriz que pisou os palcos da glória, agora um pouco envelhecida, ainda por cima alcoólatra, ou alcoólica, nem a terapia lhe tem valido. Rosana perdeu homens: Miguel, o primeiro amor, chamado na juventude ao convívio dos deuses; Gregório, o legítimo, embora já dormissem em camas separadas, levado por um enfarte que foi um suicídio; Diogo, o secretário, muito mais novo do que ela, saído da sua vida pelo próprio pé. Por isso vive quase só, comigo e com uma empregada, a Diú, já que com Cordélia, a filha, não pode contar. Cordélia, uma jovem com uma singular atracção por homens velhos, todos na casa dos sessenta, velhos perversos a quem falta o vigor e a honestidade do amor juvenil. Minha filha, coitadinha, não deixe que eles se babem sobre as suas carnes, não permita que façam porcarias consigo – mas isto não sou eu que digo, é uma dor que Rosana tem dentro de si, é um grito dela. De todos os amantes só Diogo sabia declinar-lhe o nome: ROSA ROSAE. Talvez por isso tenha sido tão custosa a separação.

Rahul. Rahul é o meu nome. Já tive vidas de gente, já fui menino numa moradia de venezianas verdes, ou de persianas verdes, vivi um singular episódio de amor numa casa com átrio, peristilo e um jardim florido onde havia uma mesa com tampo de mármore e pés de bronze imitando patas de leão. Outras eras. Vestia uma túnica e era jovem. Hoje sou uma bola de pêlo com patas almofadadas, língua rugosa, um sexo inexistente e estes olhos da alma atravessando os tempos.

Ananta Medrado, trinta e um anos, virgem, é a psicanalista que assiste Rosana. O cavalo do desejo à desfilada no corpo, ou no andar de cima onde habita um misterioso vizinho, ou dentro da alma, lugar onde acontecem tantas coisas que não sabemos explicar. Quem poderia imaginar ao vê-la assim com a sua bata de médica, sentada no consultório à cabeceira do divã, tratando a minha dona – uma diva no divã – fazendo correr o rio das palavras na memória dos afectos perdidos? Ananta desapareceu e nunca mais foi encontrada, o assunto está na Delegacia das Pessoas Desaparecidas. Um problema. Não, um teorema. Um teorema é um problema onde metemos Deus: teo + rema. Isto dizia Gregório, o meu dono, um ataque cardíaco que foi suicídio. Ananta desapareceu para se refugiar em algum lugar a domar o cavalo bravo do desejo, trinta e um anos, ninguém a castrou, isto é o que pensa Rosana, a minha dona.

Tenho saudades de Gregório. Antes de Rosana desfazer as estantes e dar sumiço nos livros ainda vinha pela noite visitar o refúgio da biblioteca. Eu deitava-me na transparência das suas pernas, ronronando a minha asma como uma chaleira fervente, e mesmo assim parecia que me sentia e afagava-me o dorso peludo com a nuvem da mão. Depois desapareceu de vez. Tenho saudades de Gregório, tenho saudades de tudo o que fui. Hoje sou um simples gato saído de um livro para falar de uma história.

Uma história? Nem tenho a certeza.

D.E.

domingo, julho 09, 2006

FUTEBOL E "RAPARIGA COM BRINCO DE PÉROLA"


A princípio não quis levar aquilo a sério: era um jogo a feijões, para um prémio de consolação… Mas depois vi que estavam lá o Presidente da República, uma primeira dama de circunstância, o Chefe do Governo – estes os que mereciam maior visibilidade mediática – e, na penumbra, creio, ministros e ajudantes de ministros, deputados e directores-gerais, tudo gente que se senta à mesa do orçamento e está acostumada a lidar com a vertigem do transporte aéreo com a mesma naturalidade de quem apanha o autocarro para a Buraca. E todos, pelo menos os que eu via, cantavam o hino nacional a plenos pulmões. Foi então que dei importância ao assunto. Mandei vir uma imperial e uma embalagem de amendoins e dispus-me a assistir ao confronto – havia um magnífico ecrã na zona de restaurantes do centro comercial, sempre era melhor do que ver em casa.

Atravessei estoicamente a primeira parte do jogo. Meditei, ao intervalo, nos feitos heróicos dos filhos de Luso. Desisti aos sessenta minutos, quando aquele jogador português com nome gálico confundiu a nossa baliza com a do adversário.

Disse-me depois o empregado de um café, na Avenida de Roma, que ainda tínhamos levado mais uma estocada, mas que um valoroso patriota de nome Nuno tinha aberto um rombo no último reduto do adversário. O Nuno, perguntei, o que tem sido sistematicamente preterido em favor de aquele açoriano que costuma correr atrás de bolas de queijo flamengo? Esse mesmo, respondeu-me o profissional de hotelaria e serviços similares, jogou apenas meia dúzia de minutos mas fez tanto quanto o outro que andou horas e horas a arrastar o canastro pelos relvados luxuosos da Alemanha.

E lembrando-me dos altos magistrados da Nação, todos de hino na boca e patriotismo a transbordar do peito, suspensos das duras tarefas da governação, vendo cair os nossos naquela jornada inglória, vieram-me as lágrimas aos olhos e aos lábios aquelas palavras do grande Luís de Camões sobre a austera, apagada e vil tristeza em que se metera a Pátria. A sua Pátria, a nossa.

Dei comigo numa sala do Quarteto, na sessão das dez, a espairecer. Na plateia éramos só dois, imagine-se o prejuízo daqueles pobres empresários… Mas para mim foi o melhor da noite: Rapariga com brinco de pérola, de Peter Webber, com a esplendorosa Scarlett Johansson e, em fundo, a pintura de assombro de Johannes Vermeer.


D.E.