quarta-feira, fevereiro 29, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (5)

Em frente do mar, como Júdice

Na esplanada, em frente do mar, vejo-te
como naquela tarde em que te sentaste no muro
de pedra que dava para a praia, e gozando
o voo das gaivotas sobre o areal e a espuma,
levantaste a fímbria da saia um palmo acima
dos joelhos. Na minha mão despertou
a carícia que a tua pele insinuava, e tu riste
com a alegria de quem vê cumprir-se a promessa
dum afecto. Hoje pergunto-me como foi possível
chegarmos a este silêncio de olhos e vozes
que tomou conta de nós como um nevoeiro de gumes
insidioso e frio.  Estendo o braço sob a mesa
da esplanada à procura da carícia antiga.
Mas já não a encontro.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (4)


Falo de um livro em que escrevi
as palavras pinheiro, resina, agulha.
Um livro com uma dedicatória
de quando o teu ventre era vagem
e os teus seios breves pomos.
Falo de um livro antigo
como os que inventaram
a palavra pão ou a palavra amor.
Um livro que percorreu a memória
e os hexágonos do tempo
por entre desencanto e traição:
uma ferida e cicatriz de lume
(ajeno de placer y de contento)
na minha pele de bibliotecário cego.

Nota:
A palavra “ferida”, no décimo segundo verso do soneto monóstrofo, encontra-se no manuscrito  como “herida”. Tratando-se de um possível lapso,  adoptámos a correspondente expressão portuguesa. Já de mais problemática compreensão (ou talvez não)  é a inclusão parentética do verso castelhano que julgamos pertencer a San Juan de la Cruz.  

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (3)

Deixa-me acreditar, meu pequeno pássaro,
que voaremos ainda sobre os telhados
da nossa cidade desfeita, e que desenharás,
com os teus lápis de cor, os ilesos campos
que a ruína não logrou  tocar.
Aí ficaremos os dois, na manhã
que o teu traço anuncia, correndo e brincando
por entre as macieiras da verosímil imaginação,
até que cansados nos deitemos de costas,
a tua pequena mão no meu polegar,
as nossas cabeças juntas, sob o sol amarelo
que radia sonho e a alegria única
do nosso amor
contra as paredes hirtas da desilusão.

sábado, fevereiro 25, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (2)

Da próxima vez, não nos deitaremos
em leitos de penas nem cobriremos de sedas
o livor da indiferença.
A pele esperará pela outra pele,
a voz contará sempre com a outra voz.
Haverá ramos de árvores sobre
o beiral da casa, a chaminé transpirará
vagarosamente a excitação da noite,
e da praia virá, como um arrulho de ave,
o rumor incessante e renascente do mar.
Da próxima vez haverá poemas,
e no metal das palavras
conheceremos o perfil do amor.
Da próxima vez, se houver próxima vez.

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

O QUE ELES INVENTAM!

Os desempregados inscritos nos centros de emprego vão ter um gestor de carreira para facilitar o regresso ao mercado de trabalho, anunciou hoje o ministro da Economia, no final da reunião do conselho de ministros.

(Notícia dn)

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (1)

Entras em todos os meus sonhos,
como um rio de lava doloso e lábil.
Vejo-te nos degraus da noite,
nas ágoras do dia, e sabes de mim
aquilo que nunca cheguei a dizer-te.
Devassas-me a imperfeição do corpo,
os escaninhos do ser, azougue
que me percorre e enche, desassossego
que se deita comigo, mão fria
que me violenta o sexo
e desafia a humanidade.
Mando-te embora, sombra lívida
que não tolero nem desejo.
Mas voltas sempre.

terça-feira, fevereiro 21, 2012

JOSÉ RAFAEL

JOSÉ RAFAEL (1947-2010), poeta tomarense. Viveu ignorado e ignorado morreu numa manhã cálida de Novembro. Deixou um maço de poemas inéditos, em caligrafia espessa e desigual, de difícil leitura. As mais de trezentas folhas, sobrepujadas por uma placa de cartão que servia de capa, encontravam-se atadas por três voltas cruzadas de barbante. Sobre a capa de cartão estava escrito a marcador de tinta preta: CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL.

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

A LAMENTAÇÃO DE PROCUSTO

I
Reconheço os crimes que cometi, o terror que espalhei pela Ática, infligindo aos viandantes os suplícios do leito. Via-os chegar exaustos ao cais do porto onde os esperava, queimados de vento e  pó, as sandálias e as túnicas desfeitas, –  de bom grado aceitavam a miragem de repouso que lhes prometia.
II
Confesso que  sofria.  Perturbava-me a impiedade dos deuses, o fogo sombrio da desigualdade nos olhos dos homens, o rápido fluir da vida sob as pontes  do destino  absurdo. Mas o mal que pratiquei nunca me concedeu a satisfação, nunca tive prazer em ver no rosto das vítimas o reflexo cruel do pavor sem limites: fiz apenas o que estava destinado  fazer-se  desde o princípio dos tempos.
III
Capturou-me Teseu numa vereda que levava a  Elêusis. O dia era uma promessa de luz e havia no ar um cheiro brando a pinheiros. Eu tinha os olhos rasgados de viandantes e as mãos tolhidas de sangue.
IV
Morri no suplício do leito, mas os meus membros decepados,  vivos em metáforas, atravessaram o martírio da História por séculos de luz e de trevas.
V
Bastava o frio castigo de Teseu e a mortalha de silêncio sobre o meu ser desprezível:  a moeda ao barqueiro, o rio sem  regresso. Teria descido em paz ao reino das sombras, aliviado dos meus crimes e da tirania dos deuses.  Teria  descansado, enfim, no leito do olvido.

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

CAVACO SILVA CANCELA VISITA A ESCOLA POR CAUSA DOS PROTESTOS

Escola António Arroio, hoje (foto JN)
Os figurões têm medo. Perante os protestos dos alunos e da Associação de Pais por causa das condições da escola e dos preços dos passes de transporte, nada melhor que meter o rabo entre as pernas.

sábado, fevereiro 11, 2012

MULHERES EM LUTA

Manifestação da Intersindical em Lisboa - 11/2/2012
Eram, agora, ainda mais frequentes essas reuniões, que às vezes se prolongavam pela noite dentro. Vinha o Januário, o Zé Olívio, o Rúdio, – já velhos conhecidos. Vinha o Margarido, quase sempre acompanhado do Paulo Bastos, – mais recentes.  Apresentado por qualquer destes, de vez em quando vinha um desconhecido, que depois continuava de aparecer, ou não. Geralmente, era um camarada que, de passagem pelo Porto, fazia uma visita. Chegara, já, a vir um ou outro indivíduo com cara de estrangeiro. Maria Clara servia cafés a todos, Joaquim trazia do guarda-loiça a garrafa do conhaque. “Não são conversas de mulheres”, dissera Joaquim, uma vez que, mais por sondar que por outra razão, ela aparentara querer assistir a uma de tais reuniões. “Também há mulheres que se metem nessas coisas”, retorquiu ela. “Quais coisas?”. “Essas da política.” Bem se vê que tu não”, rematara ele. E, para rematar a contento dela: “Nem eu te queria metida nisto. Quero-te como és.” “Julgava que só os burgueses é que pensam assim das mulheres!” “Toma!”, exclamara o Januário, rindo.
JOSÉ RÉGIO, A Velha Casa, vol. IV, Obra Completa, Lisboa, IN-CM, 2003, pp. 245 e 246.