quinta-feira, outubro 27, 2005

O DIÁRIO DE MAFALDA



nesse diário
uma força de marés e sóis
um cristal de voz
puro como um amor
ou a madrugada

um tempo de pássaros
o fado claro
a cor dos poemas
e o metal da música
contra a cinza dos dias
sem paixão

D.E.

sábado, outubro 22, 2005

O PÉNIS DE MÁRMORE E AS TÁBUAS DE BRONZE DE VIPASCA

1

Lusciénio, filho dum liberto enriquecido com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados, duas ânforas de água do Tibre por cada três de genuíno néctar, estava destinado a uma promissora carreira no foro. O pai mandara-o aprender com os melhores mestres de Roma, estagiara na Grécia, até se deixara seduzir por Epicuro antes de optar por ideias e desígnios mais ajustados às práticas forenses. Porém, por razões que até um narrador omnisciente não consegue descortinar, foi obrigado a exilar-se na Lusitânia, onde chegou acompanhado de Gláucida, escrava líbia para todo o serviço, tendo-lhe sido concessionada a exploração de cinco poços no couto mineiro de Vipasca.

Em Itália deixou Semprónia, a lasciva, mulher de líbido alta que no martírio das noites lhe secava as fontes seminais e comia as forças do corpo, só lhe dando tréguas em três ou quatro dias do mês sob o efeito inelutável das regras fisiológicas. Era então que Lusciénio se recolhia em paz nos braços de Gláucida, vingando-se em beijos e carícias da imoderada violência dos vícios da carne. No porto de Óstia, de onde saiu pelo mare nostrum a caminho da Hispânia, ainda viu no cais a libidinosa Semprónia, despeitada com a sua partida na companhia da escrava. Um arrepio atravessou-lhe o campo da pele. Ia fresca a aragem do mar, Lusciénio levou a essa conta o inesperado estremecimento. O pior, no entanto, estava para chegar.

Ao largo da costa de Saguntum, cinco dias e cinco noites levava já de viagem a galera ágil, os remos chapinhando nas águas, as velas grávidas do cálido siroco, deu-se conta da reiterada falência do seu membro fálico. Tentara na segunda e na terceira noite, não insistira à quarta, que o mar estava bravo e o enjoo lhe tolhia o desejo, mas na quinta noite, sob os olhos estelares do céu, puxou Gláucida para um desvão do convés e, a coberto do sono da marinhagem, tratou de abater o jejum. Não conseguiu nada. As carnes penianas, flácidas como alforrecas, não o permitiram. Cravou as mãos no cordame da embarcação e chorou em desespero a sua raiva impotente.

2

Em Vipasca era dura a vida dos homens. O couto mineiro era um cemitério de escórias, os poços e galerias esventravam a terra em demanda do filão metalífero. O transporte do minério fazia-se sob escolta dos legionários para o porto fluvial de Myrtilis. O Estado esmagava os concessionários com pesados impostos e levava, qual ave rapace, o maior quinhão do seu labor. Os banhos eram um pequeno refrigério na inclemência daquele clima continental, muito quente no Verão e frio no Inverno.

Quando o administrador do couto mineiro informou o governo de Emerita Augusta da chegada de Lusciénio, da concessão de cinco poços que acabara de requerer e do curriculum forense de que era detentor, além do rápido deferimento da matéria requerida recebeu também taxativas instruções para que o recém-chegado fosse contratado como jurisconsulto ao serviço da administração local. E assim, a par da gestão das suas concessões, Lusciénio passou a trabalhar, como legista, no aperfeiçoamento dos regulamentos económicos e sociais de Vipasca.

3

Tudo parecia sorrir ao exilado jurisconsulto. O administrador, agradado com o douto desempenho das suas funções, abria-lhe as portas do triclínio e era vê-lo recostado em ceias sumptuosas, em esquisitas degustações, comendo e bebendo do melhor, mariscos provenientes de Troia e Gades, vinhos da Bética e da Campânia. O minério que saía dos seus poços, apesar da mão roubadora do Estado, rendia-lhe bons proveitos. Gláucida floria de beleza na tranquilidade da sua juventude, até pensara dar-lhe a alforria e casar-se com ela. Só aquele problema sexual não dava sinais de se resolver.

Um comandante da guarnição militar com quem costumava falar nas horas brandas do banho, deu-lhe uma receita que obtivera de um druida gaulês numa das suas comissões ao serviço do Império: misturar numa papa de favas feita com água do mar, intestinos de atum e tâmaras do Egipto, juntar vinho doce e mel de abelhas, tomar uma hora antes da prática sexual. Experimentou, mas não deu resultado.

Alarmado com a persistência do desarranjo, resolveu tentar a medicina. Médicos não havia em Vipasca, seria necessário ir a Pax Iulia e consultar um qualquer aspirante a Hipócrates que aí exercesse a arte. Consultou, mas não obteve a cura.

Foi então que em desespero decidiu recorrer à intercessão divina. Havia numa vasta região da Lusitânia o culto do deus Endovélico. De Ebora a Ossonoba, de Caetobriga a Myrtilis, corria a fama daquela divindade salutífera que curava mais e melhor que o próprio Esculápio. Rumou ao santuário do deus e aí prometeu a entrega votiva de um pénis erecto da altura de um homem, esculpido em mármore rosa, se lhe fosse restituído o poder viril. E tendo como provável que a causa do seu padecimento pudesse ser feitiço da infame Semprónia, dirigiu preces a Prosérpina, deusa infernal, para que contrariasse o mal de inveja que lhe havia sido enviado.

4

Nunca se conseguiu saber se graças a Endovélico ou a Prosérpina se curou Lusciénio da sua aborrecida perturbação. A Posteridade viria a descobrir no santuário de Endovélico em S. Miguel da Mota, Alandroal, muitas aras e lápides com inscrições votivas, até uma cabeça da divindade esculpida em boa pedra, mas não se encontraria qualquer pénis erecto, em mármore rosa ou de qualquer outra variedade de mármore, o que poderá indiciar que o voto não foi cumprido por não ter sido recebida a graça.

Mas em 1876 e 1906 seriam descobertas nos escoriais de Aljustrel duas tábuas de bronze contendo a legislação aplicável no couto mineiro de Vipasca. E isso deverá ter sido obra de Lusciénio, letrado exilado na Lusitânia por obscuros motivos, filho dum liberto rico, amante terno da escrava Gláucida e objecto sexual de Semprónia, mulher lasciva, invejosa e má.

sábado, outubro 15, 2005

Soneto a S. FREI GIL DE SANTARÉM, devaneio poético com metro e rima

Quiseste ser meu Fausto um deus venal
alçado acima dos simples mortais
pelo incomum saber de artes letais
abandonaste o Bem seguiste o Mal

Rútila tentação jugo fatal
dissolutos festins gozos carnais
amaste bruxas anjos sepulcrais
em submissão a um poder brutal

Comia-te o corpo a impura lava
a que te tinhas dado alegremente
e que de ti já tudo te levava

Quando uma luz te penetrou a mente
e te tirou da condição de escrava
a alma cega dessa treva ingente

D.E.

domingo, outubro 09, 2005

CESÁRIO


DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde


Quero, dessa aguarela, o fogo de rendas do decote, a transparência das papoilas na colorida alegria da blusa, e, se possível, soltar as mãos no dorso das rolas, aves tão belas, tocar-lhes a seda das penas e as rijezas dos bicos, e já que, meu poeta, nada dizes dos lábios, dos olhos, dos cabelos, acreditar em gomos de fruta vermelha, em lagos espelhados de céu e em searas da cor da tarde, e abrir esse piquenique de burguesas às operárias da cintura industrial, às senhoras maduras da classe média, às meninas universitárias e às empregadas dos centros comerciais, uma grande alucinação de beleza sem distinção de classes, uma tela do tamanho dos campos e dos penhascos, meu poeta dos sentimentos e das sensações, mestre de Caeiro, nosso mestre.

D.E.

quarta-feira, outubro 05, 2005

UM CONTO POETICAMENTE TRISTE

Havia já uma semana que os meus olhos ensonados, obrigados a respeitar o sinal vermelho do semáforo em cada manhã que por ali passava, se detinham a ler o que estava escrito na superfície amarelada daquela parede. Era num prédio de esquina, sem graça. A inscrição estava à altura do rés-do-chão, onde chega o braço e o coração de um homem:

ANA, AMO-TE. PERDOA

Aí à vigésima vez em que me deixei fascinar pela romântica mensagem, numa manhã de trânsito intenso, fiquei com as rodas do carro coladas ao chão, o semáforo a debitar sucessivas ordens para avançar, e uma sinfonia de buzinas a desabar sobre a minha cabeça numa imitação grotesca de uma peça de Stravinsky.

Confesso que não dei por nada. Só me apercebi da enorme desordem sonora quando um polícia, desses que usam botas de cano alto e têm uma braçadeira vermelha com um metálico T, se arrimou ao vidro da janela e me perguntou se me estava a sentir mal. Que não, disse, que estava tudo bem. E ele então explodiu com todo o fragor da sua incontestada autoridade, que não atrapalhasse o trânsito, que arrancasse depressa e sem mais delongas, que ainda puxava do bloco de multas e praticava um pouco de caligrafia.

O que pode fazer nestas circunstâncias um pobre licenciado em Psicologia Clínica, média de curso de treze valores, vinte e oito anos de idade e ocupação profissional incerta? Obedecer, é claro, desentupir a via pública e deixar para trás o furioso cívico e a romântica inscrição mural.

Mas há coisas que vemos e não esquecemos com facilidade. Vivemos numa era de sofisticados meios de comunicação. O infeliz amador que na sua dolorida mágoa se entregara àquela arcaica forma de comunicar, podia ter escrito uma carta em correio azul, enviado uma mensagem SMS ou veiculado a profundidade dos seus sentimentos através do vertiginoso correio electrónico. Preferiu gravar na parede aquilo que lhe ia na alma. Foi esse procedimento singular que me fascinou e que me levou a desejar conhecê-lo.

Dobrada a esquina, na rua que sobe, há um desses cafés populares de bairro onde todas as noites se reúnem os mesmos clientes, moradores na vizinhança, bebendo umas cervejas e, ao fim-de-semana, assistindo aos jogos da Liga na Sport TV. Fiz-me frequentador do local. À segunda noite já tomava assento numa mesa onde se discutia acaloradamente as diatribes do Pinto da Costa e as invectivas que lançava aos de Lisboa. Foi quando descobri, na parede de um prédio que ficava mesmo em frente do café, outra lancinante inscrição:

ANA, SOFRO POR TI. PERDOA

Perante tão eloquente réplica, começou a formar-se dentro de mim a convicção de que o caso era mesmo sério. Como psicólogo, devorava-me o desejo de descobrir o sofredor, de lhe dar ajuda em transe tão delicado. Aproveitaria para conhecer um pouco mais da mente humana, alargar os meus conhecimentos em tão complexo domínio, robustecer o meu arcaboiço científico no laboratório dos encontros e desencontros dos nossos quotidianos afectos. E em cada noite que me metia no bairro em demanda do convívio do café, acabava sempre por deparar com novas inscrições nas paredes sebentas dos prédios. O homem não parava. Era um delírio mural.

Entretanto, lá fui obtendo de um dos meus companheiros de tertúlia algumas indicações sobre a citada Ana.

Disse: Moça bonita, um corpo à maneira, mora ao cimo da rua, às vezes até toma a bica aqui no café mas desanda logo, não faz sala, vivia aí com um gajo barbado e com ar de lunático, parece que é professor, sempre com livros na mão, às vezes até falava sozinho, mas não parecia má pessoa, nunca mais o vimos, a rapariga agora vem aí mas sempre sem companhia, se é ele que anda a escrever nas paredes?, se calhar é, raio do homem para o que havia de dar-lhe, com tantas mulheres que há por aí, francamente, é só um gajo estalar os dedos e é vê-las aparecer, sabe o que lhe digo?, há vinte anos não havia nada disto, o que o pessoal queria elas também estavam doidinhas pelo mesmo, agora ficam agarrados à internet e é só sexo virtual, esta malta está toda maluca, ó Chico tira aí mais duas imperiais, uma para mim e outra para este senhor, mas dizia eu, bonita rapariga sim senhor, é pena que não tenha tido sorte com o gajo, se calhar não a satisfazia e ela calçou-lhe uns patins, é o que há mais para aí, sabe, até lhe conto a história do filho do João que trabalha como segurança no centro comercial, pois o rapaz...

E num fim de tarde, após prolongadas mediações, consegui encontrar-me com Ana no café. Vi-a chegar, o corpinho ondulado metido na justeza dos jeans, o redondo dos seios adivinhado sob o minúsculo top, o brilho de um piercing na concha do umbigo. Como únicas testemunhas, sobre a mesa, duas garrafas de Coca-Cola e um cinzeiro de lata amarrotado.

Sabe, não costumo falar com estranhos, mas disseram-me que era por causa do Jorge que queria conversar comigo, coitado do rapaz, sou muito sua amiga, acredite que me custa esta situação, afinal ainda estivemos juntos perto de um ano, e depois anda para aí desesperado a pintar as paredes do bairro, só o dinheiro que gasta em tintas, francamente, é uma coisa que nem se compreende, pois acredite que estou a ser sincera, gosto dele a sério, só que não dava para fazer vida juntos, sou uma pessoa alegre, gosto de luz, não sou dada a melancolias, mas diz que é psicólogo?, é interessante, também pensei em tirar psicologia, só que acabei em letras, fiz o segundo ano de estudos franceses, por que razão desisti?, dificuldades, sabe, apareceu-me um emprego na TMN, aproveitei, não podemos perder estas oportunidades, mas voltando ao assunto, o Jorge é um bom tipo, não era mau amante, mas por vezes andava estranho, era a mania da poesia, quando escrevia ou descobria um novo poeta ficava estranho, ultimamente era o Walt Whitman, conhece?, é assim como o Álvaro de Campos mas em inglês, Leaves of Grass, lia o livro da frente para trás e de trás para a frente, dissecava os poemas, replicava, ficava insuportável durante essas fases, depois passava-lhe, melhorava, mas era por pouco tempo, não era mau amante, repito, pena que se transtornasse de vez em quando, estou a falar-lhe abertamente porque é psicólogo, não me abria assim com qualquer um, passava uma semana inteira que não se chegava a mim, está a ver, é aborrecido, e foi então quando conheci outra pessoa, a vida é assim, a verdade é que essa experiência também não correu bem, estou sozinha, mas não tenho vontade de recomeçar com o Jorge, até lhe digo que...

Ana é um pássaro falador, uma torrente de palavras saindo da boquinha bonita, os dentes muito brancos, a língua ágil humedecendo o carmim dos lábios. Podemos dizer aos pássaros que se calem? Podemos reprimir os maviosos murmúrios dos regatos? Ana fala, irremediavelmente, e eu bebo-lhe os mais ínfimos sons, coloridos fonemas do meu deslumbramento súbito.

A conversa com Jorge veio a seguir. Encontrei-me com ele no anfiteatro dos jardins da Gulbenkian. Trazia Apollinaire no bolso do casaco.

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nous amours
...
L´amour s´en va comme cette eau courante
L´amour s´en va

Expliquei-lhe ao que vinha, que era só para ajudar, que falara com Ana e que ela me encorajara a ter uma conversa com ele. Jorge poisou em mim um olhar de poeta incompreendido, passou a mão pela melena, e eu vi-lhe os dedos gastos do ofício de segurar canetas e picar teclados, os olhos bêbados do lume dos versos. Depois saímos dali a tomar um refresco, acabámos a conversa no seu tugúrio em Alfama. E Jorge parecia já outro homem, uma cura de milagre, decidido a enfrentar a vida de forma mais prosaica. Pegou nas latas de tinta e ofereceu-mas, acabava ali mesmo o seu mortificante delírio mural.

Regressei a casa, vaidoso dos meus sucessos clínicos. Curar um homem numa única sessão é obra. À noite fui ao café, detive-me ainda diante de alguns escritos parietais do poeta Jorge. Aquilo era passado.

Depois subi a rua para bater à porta de Ana, comunicar-lhe o surpreendente resultado do meu encontro com Jorge.

Conversámos. Como as palavras são tanto e tão pouco. Chaves poderosas que nos abrem portas para todos os estados de alma, ou apenas essa frágil articulação de segmentos sonoros, esse esplendor de signos imperfeitos a que falta a substância das coisas? Falávamos, e as nossas palavras começaram a pedir um toque de pele, a lentura do corpo. Foi quando Ana pôs a sua mão sobre a minha e eu senti que já não havia nada a dizer, que a partir daquele momento toda a fala era um despropósito e que a única coisa que fazia sentido era deixar-me ir na aventura da mão, seguir-lhe o braço, perder-me na plenitude do corpo.

Comecei então a viver com Ana no seu apartamento pequenino e simpático. O amor começava ao fim do dia, quando chegávamos a casa, e prosseguia pelos perfumados jardins da noite até às horas da madrugada. As vezes passávamos pelo café, os meus companheiros riam-se.

Mas durou pouco tempo a nossa relação. A imagem de Jorge, obsidiante, fixou-se na minha cabeça. Aproximara-me dele como terapeuta e acabara a roubar-lhe a mulher que amava. Tinha-o desenganado dessa paixão, conseguindo até que me entregasse as latas de tinta. Quem sabe se com mais umas inscrições, umas noites mais a pintar paredes, não teria logrado recuperar o seu amor perdido? Doía-me pensar nessa elementar possibilidade. Doía-me saber que enquanto eu me entregava às delícias do corpo de Ana e passava a noite abraçado a ela, Jorge, o infeliz poeta, sofria sozinho no seu quarto, acompanhado apenas dos seus vates, sem ninguém para amar.

Passei a ver, sempre que estava com Ana, o olhar melancólico do poeta e a sua mão acenando com o livrinho de Apollinaire de onde caíam folhas soltas com os poemas escritos a Annie Playden. Tentava fechar os olhos, mas era ainda pior. Ouvia então estranhas vozes que declamavam ´´La chanson du Mal-Aimé´´, poema que acabei por decorar sem nunca ter lido:

Adieu faux amour confondu
Avec la femme qui s´éloigne
Avec celle que j´ai perdue
L´année dernière en Allemagne
Et que je ne reverrai plus

Resolvi espaçar os meus encontros com Ana, passando algumas noites em minha casa. Era a única forma de fugir às vozes e imagens obsidiantes, de ter algum descanso. Até que tudo acabou: Ana, com frontalidade, apresentou-me um certificado de amante incompetente e entregou-me a guia de marcha.

Sofro agora como sofre ou sofreu o poeta Jorge. Há cinco dias que não me apresento ao trabalho e as noites são de uma indizível tortura. Mas hoje saí com as latas de tinta para o bairro de Ana. Evitei passar junto do café, entrei pela rua de cima, e aventurei-me na primeira parede nua que descobri, uma excelente parede para receber o meu grito de alma, até admira que o poeta Jorge nunca tenha dado com ela. E premindo nervosamente a válvula do spray deixei nela o primeiro dos meus apaixonados apelos:

ANA, CONTINUO A AMAR-TE. PERDOA.

D.E.

MORTE DE AL BERTO

Não foi como a de Rimbaud
A noite
não estendeu o seu manto sobre as copas das árvores
a luz
que tomou conta do tempo
não sossegou o coração dos pássaros
não suspendeu os jogos das crianças
À tua frente havia um mar
do qual não sabias o nome
um pélago onde chegavam rios esquálidos
que abraçavam a voragem
O chicote da tosse
rachava-te as arcadas do tórax
fechava-te o sopro dos pulmões
a febre crescia
sobre as disfunções orgânicas
em dose letal
Estavas magro
muito magro
doíam-te os dentes os ossos
E
na cidade
havia uma alegria de asas
sobre as cabeças dos homens
algazarras de meninos
nos recreios escolares
nenhuma lágrima se desprendia
nenhum fio de emoção
cortava a atmosfera amena
Depois
a dor cessou completamente
e uma grande tranquilidade sobreveio
ainda viste sair de ti
a nuvem da alma
Van Gogh
de quem eras íntimo
veio receber-te
Podia ter sido no céu de Arles
ou de Lisboa
ou de Paris
mas não
foi num campo amarelo de trigo
algures num patamar do tempo
Trazia numa mão
a última carta escrita a Theo
e na outra
o brilho metálico de um revólver
E tu entraste no campo de trigo
uma tela que ondulava ao vento
com revoadas de corvos escuros
recortados num céu azul
Desapareceste onde se supunha estar uma ceifeira
e era Verão


D.E.