sábado, agosto 26, 2006

CIÚMES

Inspirado no conto homónimo de GRACILIANO RAMOS (1892-1953)
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
O manancial de epítetos e invectivas jorrava da boca de D. Joanina sobre a pessoa do seu até aí amado esposo João Baltasar Amador, técnico oficial de contas, homem um bocado obeso, com o ácido úrico a vogar em maré alta, pedras nos rins, e, por isso, já com um episódio de cólica renal com direito a urgência hospitalar. Cavalheiro à beira dos sessenta, parecia que não quebrava um prato, mas a fazer fé na informante, D. Capitolina da Conceição, senhora muito dedicada às obras de caridade do centro paroquial, andava a partir a loiça toda com uma tal Sofia dos Prazeres, empregada do seu escritório de contabilidade e assessoria fiscal, mulher de boas carnes e olhos vivos, quarenta e cinco anos de idade, e, julga-se, muito carente de homem e de todos os deleites que a espécie costuma proporcionar. Por isso D. Joanina vituperava:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E alternava as expressões insultuosas com ameaças duras, impróprias de quem vive os mistérios da fé e marca presença em todos os retiros de formação cristã:
- Faço-lhe um feitiço, ponho-lhe os cornos, lixo-lhe a vida…
Enfim, coisas que se dizem. Não acreditemos na sinceridade de tudo o que ouvimos, palavras que a cólera debita, humores atrabiliários a que é preciso dar o devido desconto. Será?
Temos então D. Capitolina da Conceição, senhora mais séria não pode haver, a língua a verter o veneno no ouvido de D. Joanina. Soubera-o por uma prima que trabalha no dito escritório, mulher honestíssima, incapaz de uma falsidade, e que a esta lhe dissera a empregada da limpeza, que exerce o seu mester, como todos os oficiais desta arte, a horas em que o pessoal do escritório já saiu, ou ainda não entrou, coisa perfeitamente natural, imagine-se como seria problemático limpar o pó aos computadores em pleno tráfego de dados, com os programas abertos e em laboração.
- Dê-me licença por favor, minimize aí esse programa, fique um bocadinho à espera que tenho de passar o pano no teclado.
Enquanto limpa e não limpa, podia desarranjar-se o trabalho informático: um inadvertido delete, um indesejado enter, e seria preciso começar tudo de novo, voltar ao menu do programa, seleccionar a opção, introduzir os dados, gravá-los, premir teclas e afagar o rato, sabe-se lá os custos de tais complicações, o tempo que se perderia para as superar.
Pois parece que naquele fim de dia nem todo o pessoal tinha saído. O Amador mais a Prazeres estavam enrolados no gabinete da gerência às beijocas e aos apalpanços, maneira de falar da citada empregada da limpeza, desculpemos-lhe a linguagem bárbara pois ninguém lhe paga para falar bem, apenas para limpar o pó e passar o chão a pano.
D. Joanina pensou deixar o marido. Contudo, uma decisão tão drástica não seria tomada sem antes se aconselhar com o senhor prior, com o sacristão, com uma ou outra senhora das obras de caridade. Provavelmente iria para casa da irmã, mulher que nunca casara e agora, com a idade, estava a necessitar de uma companhia. Havia de se governar, não podia era viver com a infâmia, ela que o trazia num brinquinho, as camisas de vasto pano sempre engomadas, impecavelmente brancas, até parecia milagre daqueles detergentes da televisão, as calças limpas e vincadas, os casacos, as gravatas, os sapatos, tudo numa beleza. E os mimos ao jantar?, maionese de pescada de Vigo, bifes com molho de natas, sobremesas de chocolate. Na cama é que era o diabo: não a puxava o desejo para as delícias da carne , devia ser da menopausa e dos afrontamentos, e o homem ainda por cima estava cada vez mais gordo, aquilo não dava jeito nenhum.
D. Joanina vai falar com o senhor prior.
- Minha filha, obedece a teu marido e não contribuas para o desmoronamento do santo matrimónio. Se ele te despreza ama-o ainda mais, a ovelha tresmalhada voltará ao redil, infinita é a bondade do Senhor, insondáveis são os seus desígnios, grandes são os pecados dos homens, maior o perdão de Deus, ámen.
D. Joanina vai falar com uma senhora das obras de caridade do centro paroquial.
- Do que ele precisa sei eu, é que lhe calce uns patins o mais depressa possível, homens não faltam, velhos e mal-agradecidos, não são nada sem nós. Se o meu me fizesse uma coisa dessas ia logo a andar. Mas também não sei quem é que queria pegar naquilo, só se fosse pelo dinheiro, já não dá uma para a caixa.
D. Joanina vai ainda falar com outra senhora.
- Um marido faz muita falta, minha querida. Depois de um pode vir outro pior. Já não estamos em idade de andar a mudar. Vai ver que aquilo passa. Continue a tratá-lo com afecto, tudo se há-de compor. Faça umas orações a Santa Teresinha, a Nossa Senhora, ou melhor ainda a Santo Expedito das causas justas e urgentes, e não se meta em bruxarias, não, não fale com o sacristão, é um atrevido sem vergonha, se soubesse o que ele já tentou comigo… Só que não conseguiu nada, sou uma mulher séria, de um só homem, a mim não me toca nem num cabelo. Estar de bem com o Senhor é uma coisinha muito boa, Deus nos livre do pecado.
Ficou confusa com as palavras dos conselheiros. E se não fosse verdade?, se tudo não passasse de um engano e nada de ofensivo tivesse sido feito pelo esposo? Nunca se queixara dele, sempre parecera pessoa de uma só cara, mas a realidade é que não a procurava há muito tempo, adormeciam de costas voltadas, estava completamente desinteressado. Mesmo um homem na mudança da idade havia de dar algum sinal de si. Só que não dava, andava a governar-se por outro lado. Ultimamente era muito exigente com a roupa interior, tinha mandado comprar cuecas novas, de linha moderna, artigo de primeira qualidade, bem difícil de encontrar em medida tão avantajada como a sua. E enquanto se alongava nestas conjecturas, o ciúme mordia-lhe o estômago como uma úlcera brava. A pouco e pouco dissipavam-se as dúvidas, apagavam-se os ses e os mas. Não há fumo sem fogo. E repetia para si:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E vai aconselhar-se com o sacristão, homem seco de carnes, cinquenta anos, ainda vigoroso, um sorriso insinuante. Palavra atrás de palavra, a conversa a descair para a desgraça, trocam-se as voltas ao tema. Foi na sacristia, encostada ao arcaz, sob a imagem de Santo Expedito, taumaturgo das causas justas e urgentes, imagem trazida de França por uns peregrinos de Lurdes, ali deixada por não haver nicho vacante na nave da igreja. Era à hora em que devia estar na cozinha a preparar o jantar do marido, que logo chegaria a casa com a costumeira fome, cansado do dia de trabalho no escritório de contabilidade e assessoria fiscal, regurgitando débitos e créditos, retenções na fonte, demonstrações de resultados, descontos de letras, receitas financeiras correntes, estornos, acréscimos e diferimentos, extractos bancários, juros acumulados, amortizações e reintegrações. Mas hoje teria de esperar, paciência, já estavam fechadas as portas da igreja, não passaria daquele dia, causa justa e urgente, ali encostada ao arcaz da sacristia, sob o olhar esbugalhado do santo empunhando a cruz milagreira com a palavra latina hodie, que quer dizer hoje e não amanhã, incrédulo e infinitamente pesaroso com aquilo que via, o distúrbio da alma e a fraqueza da carne, o engano, a traição, tão atormentado como no dia em que se deparou com o corvo maligno a tentar desviá-lo dos caminhos de Deus. E, sacrilégio supremo, o sacristão paramentado como se fosse ajudar à missa, e a pecadora repetindo incessantemente numa litania ímpia aquele cúmulo de palavras contra o legítimo esposo:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu….

D.E.

quinta-feira, agosto 17, 2006

MARGARIDA DE NAVARRA ( Angoulême, 1492 - Tarbes, 1549 )

LEITURA DO HEPTAMERÓN DE MARGARIDA DE NAVARRA, um conjunto de setenta e duas pequenas novelas escritas entre 1540 e 1549 segundo o modelo do Decameròn de Boccaccio. Não é fácil ler em francês do século XVI, mas devo dizer que veio em meu auxílio uma excelente tradução de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, Editorial Estampa, 1976.
Margarida foi uma mulher extraordinária. Irmã de Françisco I, rei de França, desposou em segundas núpcias Henrique d´Albret, rei de Navarra, pequeno território a norte dos Pirinéus ocidentais que se manteve independente depois da anexação do Reino de Navarra por Fernando de Aragão, em 1511, vindo a ser incorporado na Coroa de França em 1589. A formação cultural de Margarida e a grande abertura que demonstrou às correntes de pensamento do Renascimento, fizeram-na simpatizante da Reforma e protectora de poetas e artistas do seu tempo. A sua escrita prenuncia o aparecimento de importantes figuras femininas das letras francesas dos séculos XVII e XVIII, como Madalena Scudery e Madame Lafayette, numa altura em que o romance e a novela eram ainda considerados géneros literários menores.
As setenta e duas novelas do Heptaméron abordam temas sociais e humanos como as relações entre sexos, a virtude e o vício, clérigos lúbricos, maridos enganados e triângulos amorosos.
Escrevia dentro da liteira durante as demoradas viagens que fazia pelo sul de França. Fica-nos assim esta imagem de uma rainha deslocando-se com o seu séquito de cidade em cidade, de castelo em castelo, matando o tédio da viagem não em fúteis entretenimentos de sociedade, mas escrevendo sobre a índole humana, o eterno amor e as paixões da alma.

D.E.

quarta-feira, agosto 16, 2006

A GEOMETRIA DOS AFECTOS

Lídia tem carnes brancas com pequeninos sinais nos braços e no peito. Usa cabelo curto, castanho claro, tem sobrancelhas finas, escassa é a mancha de pêlos no vértice do corpo. As pernas são longas, pinta as unhas dos pés com um verniz arroxeado e prende uma fina corrente de prata no tornozelo. Os seios cabem na concha duma mão. Os olhos emanam uma luz entre o castanho e o verde, as narinas são frementes, sequiosas de ar. Os dentes superiores estão separados à frente por uma fenda de gracioso efeito, dentinhos de mentirosa, digo a brincar, e sob a linha dos lábios dissimula no queixo uma pequena cova visível apenas quando a alegria se expande no rosto. As orelhas estão perfuradas nas cartilagens superiores, atravessadas por argolinhas cintilantes de diferentes tamanhos.
Depois de apaziguado o desejo, Lídia costuma rir como uma criança. Morde-me os dedos dos pés, faz-me cócegas, ou então recita sonetos de Baudelaire e eu fico a ouvi-la até me atordoar de espanto. E beija-me muito, mesmo quando já não está à espera de amor e apenas aguarda que se esgote o tempo do nosso encontro.
Gosto de vê-la vestir-se quando terminamos. A primeira peça que põe é o sutiã. Prende-o com a parte de trás virada para a frente, os olhos orientando a perícia dos dedos, rodando-o depois para a posição correcta, ajustando-o aos seios, passando em seguida as alças pelos ombros, primeiro a alça direita, depois a esquerda, sempre por esta ordem. A roupa íntima que usa é desprovida de rendas e transparências ousadas, roupa despretensiosa, cores vivas, Eva e a serpente no tecido das calcinhas, duas maçãs mordidas nas conchas do sutiã. Enfia os braços e a cabeça na camisa que não chegou a desabotoar, depois a camisola, deixando para último as peças que cobrem a parte do corpo abaixo da linha da cintura. Calça-se, despede-se com um beijo e sai primeiro para não sermos vistos juntos.
Gosto de Lídia e da alegria do seu amor, mas devo dizer que senti alguma inquietação quando a nossa relação começou. Por duas razões: Lídia é a melhor amiga de minha mulher e é casada com um colega meu, por sinal o mais dedicado dos colegas. Mas o tempo, esse velhinho lúbrico, encarregou-se de resolver os meus cuidados. Nunca senti que os nossos amores perturbassem a amizade que continua a existir entre todos. Lídia beija a minha mulher com a mesma naturalidade com que se deita comigo, conversam muito as duas, dizem segredos uma à outra, riem, brincam, como só entre amigas costuma acontecer e é tão bonito de se presenciar. Eu e o marido de Lídia sempre nos estimámos reciprocamente, sendo de completa harmonia a vida de ambos os casais.
Um aspecto, porém, nunca deixou de me intrigar: é quando, a meio da tarde, nem eu sei de minha mulher, nem Lídia parece saber de seu marido, ausentes dos locais de trabalho, os telefones desligados, só dando sinal de vida à hora de jantar, os dois ao mesmo tempo, em enigmática sincronia. À minha inquietação reage Lídia com naturalidade: há-de aparecer, diz-me.
O mesmo se passa com o marido de Lídia quando venho de estar com ela. Há-de aparecer, digo eu, disfarçando o embaraço, confesso.
E é assim que faço por acreditar que tudo está bem entre nós: entre mim e Lídia, entre Lídia e minha mulher, entre mim e minha mulher, entre Lídia e o seu marido. Só ainda não percebi o que está mal nas horas da tarde em que minha mulher e o marido de Lídia desaparecem. Ou talvez perceba, mas não queira admitir. São infinitos os lances do amor, há sempre alguns que nos surpreendem. Talvez eu não esteja preparado para os entender na sua enorme diversidade e me recuse a ver o que está diante dos olhos. É um defeito meu, uma fragilidade, uma inaptidão para lidar com situações complexas, como a que pressinto neste trapézio de que faço parte, quadrilátero convexo, dois ângulos iguais, dois lados paralelos, os elos fortes do polígono, elas, linhas que regem e dissimulam, para deleite de todos, a geometria dos afectos.
 

terça-feira, agosto 08, 2006

A VOLTA


Neste domingo vi-os passar em Alverca. Iam a caminho de Loures, onde tinham uma prova de montanha não sei de que categoria na serra de Montemor – Montemor Delta das cartas topográficas militares, as coisas que descobrimos quando nos pomos a mexer na névoa da memória – e logo se meteram por estradas de Caneças, Amadora e Queluz, da boca do rio ao conjunto monumental da Praça do Império, até à meta. Praça do Império, 1940, Exposição do Mundo Português, foi o meu pai que me ensinou… A memória é como um novelo de lã: é só puxar a ponta do fio. E puxando lembrei-me do Alves Barbosa e do Ribeiro da Silva. Não, não eram do Benfica nem do Sporting; eram do Sangalhos e do Académico, modestas agremiações desportivas que lançavam nas estradas, em competição, o melhor sangue de Portugal. Sim, havia Fátima, havia o fado, havia o futebol – era o país dos três efes! – mas esta era uma festa que não pagava tributo a César. Era o povo unido, muito tempo antes de ser dado como vencido. O povo que hoje se senta nas salas de cinema a mastigar pipocas e agoniza diante dos ecrãs dos televisores em alegrias espúrias. E eu, criança, de calções e boné, vendo-os chegar ao sprint no alcatrão da esperança, bebendo o amarelo da camisola e a luz de todas as cores. Por isso neste domingo não me contive e fui para a estrada assistir à passagem dos ciclistas. Uma paleta de pintor atravessando a canícula da tarde. E, coisa difícil de explicar, dei o flanco à emoção, a vista turva de água, até passarem os carros de apoio, os ciclistas em dificuldade, as ambulâncias, o carro-vassoura, e, por fim, na cauda do sonho, o cortejo sonâmbulo dos que foram obrigados a encostar à berma para dar passagem, aborrecidos com a demora a que os sujeitaram, atrasados para a praia ou para a ronda dos hipermercados, as vidinhas a escoarem-se, céleres, a poucas horas do início das telenovelas, dos concursos, dos espectáculos da vida real nos horários nobres de todas as televisões.
Vinha já a subir no elevador, de regresso a casa, quando me lembrei dos versos de Alexandre O´Neill:

O homem que pedala, que ped´alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.


É O Ciclista. Mas isto são já outras histórias. Ou talvez não.

D.E.

domingo, agosto 06, 2006

6 DE AGOSTO DE 1945



Ele (Eiji Okada): Em Hiroxima tu não viste nada... nada.
Ela (Emmanuelle Riva): Eu vi tudo… tudo.

Defendamos a memória da tragédia recordando Hiroxima meu amor (1959) de Alain Resnais e Marguerite Duras. Podemos não ter visto nada em Hiroxima, mas sabemos que o crime existiu. Uma forma de dizer que vimos tudo.

D.E.

sexta-feira, agosto 04, 2006

4 DE AGOSTO DE 1578

Batalha de Alcácer Quibir (gravura)
Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
E O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
Fernando Pessoa, D. Sebastião, in Mensagem

terça-feira, agosto 01, 2006

CASO Nº 47

CAVALHEIRO DE 38 ANOS, SEXUALMENTE IMPOTENTE, BOA CONDIÇÃO SOCIAL E ECONÓMICA, PROCURA SENHORA FRÍGIDA, AINDA JOVEM, PARA RELAÇÃO DE CONVÍVIO. ASSUNTO SÉRIO. RESPOSTA AO TELEFONE Nº …
Ela acabara de ler o anúncio no jornal da manhã naquela página onde se publicitam serviços de massagens eróticas, vibradores certificados com a marca CE, pomadas cuja aplicação regular faz aumentar o membro fálico em pelo menos dois centímetros e meio, além da oferta pessoal de uma grande variedade de serviços: jovens universitárias que se propõem alegrar a vida monótona de casais, loiras e morenas desinibidas que vão a hotéis, homens dotados que recebem em casa com discrição absoluta. Sorriu. Por uns instantes ficou pensativa, tirando os óculos de ler que poisou sobre a secretária. Depois ergueu os olhos na direcção de um calendário de parede, compulsando a sucessão dos dias da semana: quarta-feira um congresso, quinta um seminário, sexta à tarde aulas na faculdade. E foi então que se pôde ver, com a luz artificial que jorrava do tecto a bater-lhe no rosto, como era bela. Chamou uma assistente de confiança e pediu-lhe para recortar o anúncio. Em seguida levantou-se, dirigiu-se a um móvel de arquivo em cujas gavetas, entre separadores, se guardavam diversos dossiês. Aproveitemos agora que está de pé para lhe apreciarmos a figura: estatura mediana, cabelos curtos, pernas bem torneadas, braços longos, volumes generosos no relevo do busto. Trinta anos, talvez. Vemo-la voltar à secretária com um dossiê na mão. Deixemo-la a ler.
Vamos encontrá-la uns dias mais tarde à mesa dum restaurante rumoroso, à hora do almoço, conversando com um sujeito bem apessoado que parece ser um pouco mais velho. Se não fosse a sobreposição de vozes e o tinido das loiças, os brados que os empregados lançam para a cozinha, poderíamos ouvir melhor a matéria da conversação. Percebe-se no entanto que falam do anúncio, que ele é o cavalheiro de trinta e oito anos impotente e de boa condição social e económica, e que tem lugar ali, naquela hora, o encontro agendado pelo anunciante. É preciso que se conheçam melhor. Deixemo-los falar à vontade, tanto que devem ter para dizer um ao outro, tão delicada que deve ser a substância do diálogo.
Para um casal se conhecer, um fim-de-semana à beira-mar pode ser uma excelente oportunidade. Mesmo em situação tão especial como esta em que ele se assume como sexualmente impotente e ela se dá como declaradamente frígida, pelo menos assim parece, de outra forma não teria respondido ao anúncio. Mas tratando-se em ambos os casos de pessoas sérias, animadas de honestos propósitos, como entretanto se apurou e desde já fica lavrado em acta para que conste, tudo deverá correr da melhor forma. Tenhamos fé.
A reserva no hotel foi feita para duas noites: de sexta para sábado e de sábado para domingo. É a hora de jantar. Um jantar de duas pessoas que, apesar das limitações assumidas ou apenas conjecturadas, parecem já sentir uma certa atracção recíproca pode muito bem começar com uma entrada de ostras acompanhadas de Murganheira bruto branco, vinho espumante natural excelente para deglutir marisco e peixe de todas as espécies. Depois virá um prato de salmão fumado com espargos verdes em molho tártaro. Terminará em beleza com uma sobremesa de manga salpicada de vinho doce malvasia. Tudo escolhido por ela, até parece uma ementa erótica. É então que passearão pela orla da praia. Talvez dêem as mãos, coisa natural entre um homem e uma mulher que começam a estimar-se, e provavelmente subirão para o quarto já depois da meia-noite. Antes ainda tomarão no bar um batido de chocolate gelado.
O que poderá ser dito sobre a noite deste casal? Que nenhuma angústia os assediará no momento em que, despindo as roupas, se prepararem para ir para a cama. Ele não terá de lhe provar nada, nenhum medo de falhar o desempenho sexual lhe toldará, obsidiante, a serenidade da noite. Poderá beijá-la e palpar-lhe os seios, coisa que até um homem impotente, cremos, é capaz de fazer com gosto. E ela não pedirá nada que ele não lhe possa dar. Talvez se comprima de encontro aos músculos do seu corpo e aspirando o perfume de homem adormeça tranquilamente num abraço de estátua. Mas não se insista nestes pormenores íntimos. Respeitemos a privacidade de cada um.
Sabe-se que no dia seguinte, sábado, a manhã ia adiantada e o casal não descia para tomar o pequeno-almoço. Meio-dia, uma hora, duas, duas e tal, e da recepção telefonam para o quarto informando que a sala de refeições ia encerrar dentro de meia hora, perguntando se desciam para almoçar. Mandaram subir o almoço ao quarto. E só de lá saíram já noite fechada, para comerem umas sandes e beberem um sumo, voltando de imediato ao aposento terminada que foi a frugal refeição.
Não se pense ser fácil de entender uma situação como esta. Um homem sexualmente impotente e uma mulher que, segundo parece, é frígida fechados num quarto de hotel há trinta e seis horas, apenas uma curta saída para comerem umas sandes, sem que se conheça motivo especial que ali os detenha. Tanto tempo fechados e um fim-de-semana com tanto sol. Só pensam em cama, Nem põem os pés na praia, Bem boa é ela e tem cara de quem gosta – isto são comentários dos empregados da recepção, triste gente que não sabe o que diz e só pode conjecturar, embora tenha havido quem, para não falar à toa, fosse encostar o ouvido à porta do quarto, colhendo da deselegante investigação confirmações absolutas, certezas inamovíveis, verdades de fazer brilhar os olhos.
É certo que sairão do quarto sobre as quatro da tarde de domingo, depois de a responsável pela limpeza ter telefonado a pedir a desocupação, pois tinha de preparar as instalações para os novos hóspedes que chegariam nessa noite. Peço imensa desculpa mas façam o favor de sair. Era pessoa educada, dá para perceber, não tem nada a ver com os colegas da recepção, trabalhadores de hotelaria sem formação profissional, situação inadmissível num estabelecimento de quatro estrelas, ainda por cima com tantos clientes estrangeiros. Sairão pois um pouco comprometidos, arrastando as bagagens, esgalgados, olheiras como vírgulas no discurso de longas horas. Passarão pela recepção para fazerem o check out sob o olhar ávido dos empregados que irão observá-los minuciosamente, invejando o sortudo, e a ela comendo-a com os olhos, procurando descobrir-lhe as peças da roupa interior sob a transparência do vestido, carregando as baterias das fantasias para uso oportuno, que pode ser já nessa noite quando voltarem a casa e se depararem na cama com a mulher de carnes flácidas ou menos favorecida pela formosura. O que um homem infeliz tem de fazer para cumprir com os deveres conjugais… Vê-los-emos ainda passarem pelo restaurante e pedirem uns bifes, preparando-se para abater a fome do dia, que a outra fome, de meses ou anos, não sabemos ao certo, já houve quem dela encontrasse alívio.
É segunda-feira. Podemos vê-la agora no seu gabinete de trabalho com o fim-de-semana ainda na memória. Está sentada à secretária diante do ecrã do computador. Mexe nas teclas, dá uma ordem de impressão. Extrai da impressora a folha que vai servir de frontispício a um dossiê que acaba de abrir e onde se pode ler:

FACULDADE DE PSICOLOGIA CLÍNICA

DRA. SANDRA CLÁUDIO

DEPARTAMENTO DE INVESTIGAÇÃO APLICADA
EM
IMPOTÊNCIA SEXUAL MASCULINA

TERAPIA
ATRAVÉS DE
ENVOLVIMENTO SEXUAL
COM OS PACIENTES

EXPERIÊNCIAS BEM SUCEDIDAS:

CASO Nº 47


Durante alguns minutos faz algumas anotações nas páginas do dossiê. Passa as mãos pelos cabelos, desenha um sorriso entre a melancolia e a satisfação. Talvez esteja um pouco confusa, com os sentimentos ligeiramente desordenados. Em seguida consulta a agenda de mesa e é quando repara que terá de almoçar mais cedo: tem uma sessão de terapia marcada para as três da tarde.


D.E.