domingo, junho 17, 2007

A SOBERBA IRONIA DE UM SORRISO

O primeiro sinal de que algo de estranho se passava com ela foi dado pelo desaparecimento dos livros, um conjunto de doze lombadas que desde sempre tinha ocupado lugar de destaque na biblioteca do casal. O marido deu pelo buraco negro aberto no miolo da estante e perguntou-lhe pelo paradeiro dos volumes. Ela respondeu que os tinha arrumado em outro sítio e não deu mais explicações.
Todos os livros desaparecidos, desde uma colectânea de poemas de amor a vários romances de autores contemporâneos, tinham-lhe sido oferecidos por ele nos momentos mais marcantes de um percurso amoroso entre o enamoramento e o matrimónio na igreja.
Ainda hoje o marido não conseguiu perceber por que motivo se decidiu ela pelo sumiço dos livros. Agita a memória desses tempos e não encontra um nexo, uma razão lógica, uma ideia explicativa para tão singular procedimento. Certo e seguro é que entre o casal havia silêncios maiores e mais pesados que todo o acervo de livros da biblioteca. Ele gastava o serão fumando cachimbo e folheando jornais; ela pintava ou moldava peças de barro num ateliê improvisado no sótão da casa.
Já então se entregava a um estilo de pintura aparentemente incompreensível, usando cores estranhas, aproveitando apenas uma metade da tela para exprimir a sua arte. Pintava essa parte e deixava em branco o resto, fosse a metade à esquerda ou à direita, a da parte de cima ou a de baixo. Por vezes dividia a tela pela diagonal e deixava correr os pincéis apenas em um dos triângulos formados. O contraste entre as metades, uma estranhamente pintada e a outra completamente vazia, deixava intrigados os amigos e familiares que ocasionalmente observavam os seus trabalhos.
Nas obras de cerâmica moldava rostos femininos com expressões de grande beleza, as bocas e os olhos serenos, mas depois de cozidas as peças deitava-as ao chão e fazia-as em cacos, para em seguida unir os estilhaços por meio de laboriosas colagens, umas correctas, outras propositadamente imperfeitas, introduzindo nos rostos disformidades e arestas que lhes fixavam indescritíveis traços de dor, indizíveis expressões de sofrimento.
Perante tais manifestações artísticas, o marido não permitiu que ela levasse os quadros e as obras de cerâmica à exposição de arte. Depois transigiu, mas pôs como condição a reposição na estante dos livros desaparecidos. A verdade é que os quadros e as peças de barro lá ficaram, longe dos olhos do público, enquanto os livros continuaram a morar em parte incerta.
Todos o dias, ao fim da tarde, o marido chegava a casa, tomava um banho, vestia roupa lavada, sorvia um vinho aperitivo e perguntava: O que é que há para jantar? Ela respondia quase sempre com uma ou duas palavras. Comiam em silêncio por entre o tinido dos talheres e o rumor das loiças.
Um dia, talvez desiludida por ninguém apreciar a sua arte, deixou de trabalhar no ateliê e passou a ocupar o tempo com inesperadas leituras, devorando livros que ninguém sabia de onde provinham, edições completamente desconhecidas, romances policiais sem crimes, histórias de amor onde os amantes não se beijavam uma única vez. O marido desconfiou daqueles livros cujos conteúdos perversos não auguravam nada de bom, e decidiu confiscá-los. Eram leituras perigosas, dessas que abalam as mentes frágeis das pessoas, em especial as mentes frágeis das mulheres.
Impedida de ler os seus livros, agarrou-se à escrita. Passou a ocupar as tardes e as noites sentada ao computador, compondo os textos mais extraordinários que é possível imaginar, textos onde em cada linha se elidiam letras, sílabas e palavras completas, de tal forma que o sentido dos mesmos ficava totalmente incompreensível, reduzido a uma amálgama de caracteres, a um exercício críptico de decifração impossível. Houve quem dissesse então que ela tinha um amigo a quem enviava esses textos e que esse amigo, sim, era capaz de os decifrar, e que por cada texto hermético que recebia lhe enviava outro onde os sentimentos se exprimiam de forma clara, e isso era o suficiente para ela depois refazer o seu e implantar sentido onde antes não existia. O marido não suspeitava de nada, mas um dia, percorrendo os arquivos do computador, deparou com uma escrita de arrebatadas expressões, com palavras carregadas de afectos, e achou por bem tomar uma atitude de homem.
Foi por esta altura que ela começou a mentir. Nunca até aí se atrevera a tão desmedida desfiguração da verdade. Sempre que era questionada sobre uma matéria e não queria ou podia responder com rectidão, tinha artes de tornear a pergunta, de exprimir uma meia verdade, nunca dando o não pelo sim ou o sim pelo não. Essa sua maneira de ser alterou-se completamente. Passou a mentir de forma tão sistemática e com tal competência que ela própria acreditava nas falsidades por si criadas. À noite, nos serões silenciosos, enquanto ele fumava cachimbo e folheava os jornais, ela que já não pintava, moldava, lia ou escrevia, limitava-se a trucidar a verdade em cada um dos seus gestos, em cada expressão do seu olhar, como se vivesse na dependência de uma droga e já dela não pudesse fugir.
Um dia, ao fim da tarde, quando o marido chegou a casa e perguntou, como era habitual, O que é que há para jantar?, ela não lhe deu qualquer resposta. Havia nos seus lábios a soberba ironia de um sorriso, uma desfaçatez sem limites que causavam perplexidade e dor. Então o marido, perante tão flagrante violação da normalidade, fez aquilo que, talvez em consciência, lhe competia fazer: telefonou para uma clínica psiquiátrica e pediu um internamento de urgência.

D.E.