quarta-feira, janeiro 30, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (11)

Há três noites que Josué tem o mesmo sonho. Um sonho mais entre os muitos que costumam assediá-lo e com os quais se habituou a discernir o sentido obscuro e profundo das premonições.
Vai num barco de passageiros que navega as águas de um rio sob um céu azul por onde correm nuvens grossas e claras, a luz do sol atravessando-as como se fossem lentes, caindo em fogo sobre o dorso da terra. O rio às vezes é largo até não se verem as margens (um lago?); noutras, estreita-se tanto que quase não dá para continuar. Josué não se lembra da cara de nenhum dos companheiros de viagem, mas tem bem presente o reflexo de prata dos peixes enfrentando o ímpeto da corrente carregada de barro e limos. Não sabe para onde segue o barco, que destino demanda o inverosímil arrais.
A certa altura, Jonas aparece-lhe na margem segurando a cana de pesca, abrigado do sol sob o frágil rícino. Acena-lhe do barco, mas ele não o vê. Parece uma sombra. Apenas o fio de nylon lançado sobre o desassossego dos cardumes refulge à luz poderosa do dia.
Quando as margens se aproximam, vêem-se esteiros que se metem pelo corpo da terra, serpenteando entre montes, brumosos canais por onde o barco nunca se aventuraria a singrar.
À entrada de uma dessas línguas de água surge a figura de Ester, ainda jovem, debruçada numa espécie de varanda sobre a superfície do rio ou do lago, vestindo umas calças justas, os cabelos molhados como se tivesse acabado de sair do banho, os seios espetados sob a camisa leve e transparente, a pele muito branca. Ester também não responde ao aceno que ele lhe dirige, e, no entanto, não é um corpo de sombra como Jonas. Talvez seja ele, afinal, a verdadeira sombra. Por isso, por mais que procure chamar a atenção dos amigos que encontra, nunca o poderão atender os que estão do outro lado do sonho. Mas dá consigo a falar com Jacob, entretanto saído não sabe de onde, roxo e estropiado tal como ficou no transe da sua morte por electrocussão, a língua inchada saindo-lhe pela fenda da boca, os dedos negros como paus de carvão, os olhos baços, os cabelos em desalinho. Fala com ele, um mesmo código de linguagem fluindo entre ambos, um lento diálogo de sombras.

Josué está sentado no gabinete do psicólogo no centro social do empreendimento. Conta-lhe o sonho. O homem, ainda jovem, escuta-o com atenção. Depois de várias sessões de terapia, vencida a desconfiança inicial, sente-se agora à vontade com o terapeuta que lhe destinaram. É uma criatura simpática, de falas e modos delicados que, sem dúvida, procura ajudá-lo. Repara-lhe nas unhas das mãos, bem cuidadas, onde fulge o vago brilho de uma película de verniz. Tem ademanes curiosos, inusitados num homem, mas os olhos, os lábios e o formato do rosto são-lhe estranhamente familiares. Parece conhecê-lo há muito tempo.

No cabo do sonho Josué vê chegar Salomé, muito decaída, tal como era dias antes da sua morte. Junta-se a si e a Jacob e conversam os três como se não houvesse entre eles diferença de estado ou condição. Já então tinha desembarcado não sabe bem em que cais. Na margem do rio ou do lago desaparecera há muito a figura de Ester.

A sessão de terapia chega ao fim. Agora é o psicólogo que fala:
“Os sonhos têm janelas de onde é possível ver a realidade.”
E acrescenta:
“Sonho tantas vezes com a minha mãe, de quem mal me lembro, que é como se ela nunca me tivesse deixado.”
Josué recebeu o cartão com a data e a hora da sessão seguinte, guardando-o na frágil carteira de plástico. Saiu para a luz da manhã que desabava sobre a geometria das ruas. Doía-lhe a cabeça.
D.E.