terça-feira, junho 28, 2011

INESPERADAMENTE A MEIO DA TARDE

Acabo de ler na introdução de José Manuel Mendes a “Encontros com Fernando Namora” as seguintes citações de Cesare Pavese (1908-1950):

1/. “A única alegria neste mundo é a de começar”;

2/. “Nada se acrescenta ao que ficou para trás, ao passado. Recomeçamos sempre”.

Fez-me bem. Atiro-me ao trabalho com renovada alegria.

quarta-feira, junho 22, 2011

REYNO DE BABYLONIA

Inspirada no tema e nos emblemas duma obra do jesuíta flamengo Hermano Hugo, também com influências da novela A Preciosa de Sóror Maria do Céu, a narrativa moral REYNO DE BABYLONIA GANHADO PELAS ARMAS DO EMPYREO, de Sóror Magdalena da Glória (pseudónimo: Leonarda Gil da Gama), foi publicada em Lisboa no ano de 1749.

Sóror Magdalena da Glória nasceu em Sintra em 11 de Maio de 1672. Professou com dezasseis anos no Convento da Esperança de Lisboa, da regra de S. Francisco, tendo falecido em provecta idade por volta de 1760.

A seguir se transcreve um resumo da narrativa, feito por este escriba em 2008 no quadro de um trabalho sobre Literatura Portuguesa do Período Barroco.

Tudo se passa num vale confuso da antiga Babilónia (o mundo terreno, lugar de pecado), onde um Príncipe, fiho do Supremo Emperador (Deus Todo Poderoso), põe os olhos apaixonados numa formosa aldeã de nome Angélica (a Alma). Longe de corresponder ao sentimento do seu amante, Angélica mantém-se indiferente, gozando os prazeres mundanos, o que desgosta profundamente o Príncipe. Este envia-lhe diversos membros da sua corte com o intuito de a demoverem de tão ingratos propósitos: fiéis conselheiras (as Virtudes), um embaixador (o Anjo da Guarda) e até um ancião muito respeitado e valoroso que era o mais importante dos seus vassalos (Santo Agostinho).
Ao longo do assédio que lhe move o Príncipe, Angélica tem momentos em que parece inclinar-se para ele, e outros, menos felizes, em que persiste nas vaidades de Babilónia. Manifesta-se então o ciúme do amador, doído por não encontrar correspondência em tal paixão, vendo a sua amada a ceder às tentações de falsos conselheiros (os anjos revoltados) que lhe enalteciam os prazeres dos cinco sentidos. Pretende o Príncipe castigá-la, pois tinha poderes para tal, mas, infinitamente bom e apaixonado, está sempre disposto a conceder-lhe o perdão.
Entre avanços e recuos, rasgos místicos e recaídas no erro, debate-se Angélica com a sua própria inconstância. São trazidos ao leitor exemplos de mulheres que nunca negaram o seu amor ao Divino Amante: Santa Luzia, Santa Rosa de Lima, Santa Catarina de Alexandria, Santa Clara.
O Príncipe, que nunca deixou de seguir a inconstante aldeã, consegue no final que ela se lhe entregue. Emendada a profia dos descaminhos, desfeitos os fumos da vaidade, Angélica une-se com o Príncipe (Jesus Cristo), subindo com ele ao trono do Empíreo.

Se estas tivessem sido as leituras de Emma Bovary…

domingo, junho 19, 2011

"MADAME BOVARY"

Isabelle Huppert (Emma) no filme Madame Bovary (1991) de Claude Chabrol

Agora que ando a reler Madame Bovary, mais me convenço de que o raio da mulher era mesmo má! Tendo-se fascinado pelo requinte do baile de Vaubyessard (fascinação simbolicamente representada pela charuteira de seda verde que amorosamente guardava), gostando portanto de frequentar a alta-roda social e os seus bons modos, não se importou de abandonar a filha recém-nascida na casa de uma ama da pior condição – uma espécie de bruxa suja, miserável e, pelo que se percebe, consumidora regular de aguardente.
E, no entanto, Emma Bovary lia. Lia e tinha amantes, uma associação de gostos (ou uma relação de causa e efeito) frequentemente estabelecida na ficção naturalista de oitocentos. A Luiza d’ O Primo Bazilio também era leitora de novelas, o que vem reforçar aquela máxima que vi inscrita não sei em que livro ou revista:
mulheres que lêem são perigosas!
Também me convenço de que O Primo Bazilio de Eça de Queiroz, em que já se viu uma imitação de Flaubert, é bem melhor do que o romance do mestre francês. Luiza, apesar de tudo, amava o marido; era vítima da criada Juliana, uma das mais notáveis personagens criadas pelo nosso grande romancista; tinha no seu círculo de amigos um conselheiro Acácio, figura muito mais interessante do que o jacobínico Homais; e quanto a refinamentos amorosos, bem, não sei se Léon ou Rodolphe alguma vez fizeram a Emma aquilo que Bazilio fez a Luiza em certa tarde de amor no “Paraíso”…
A terminar, uma pequena declaração: não concordo com a máxima citada. Acho que hoje em dia, mulheres perigosas são mesmo as que não lêem!
Tenho dito, e já me safei (espero).

segunda-feira, junho 13, 2011

PENEDONO, MEU AMOR

Castelo de Penedono: fotografia tirada há cerca de dez anos

    Ao jantar veio um naco de carne assada acompanhado de batatas loiras num molho castanho e espesso. Um arroz solto, tostado, apresentou-se em pequenas taças individuais. Uma alface de folhas lisas, rescendendo a horta, jazia na saladeira debaixo de rodelas de cebola branca, azeitonas e pimentos vermelhos como o sol  no horizonte. Um vinho de Mêda em jarro de cristal fulgia como um luzeiro sobre a toalha branca.
    Comia-se numa mesa rectangular a que se juntavam cadeiras de espaldar alto: o pai e a mãe nos topos, a filha e o convidado de cada um dos lados.
    A sala era digna de um solar: lajedo no chão, granito nas paredes, grossas traves de carvalho no tecto, candelabros de ferro forjado, retratos de avós em cima de móveis de nogueira e uma escada de madeira que rangia na direcção dos quartos.
    O leite-creme sumiu-se da travessa de loiça com os bordos pintados de flores, deixando ver no fundo uma cena bucólica em azul pálido. Vieram bagaceiras e cafés, charutos que o convidado recusou não se sabe bem porquê.
    A mãe era uma senhora roliça, com muitas rugas, setenta anos bem medidos. O pai, que andava pela mesma roda, parecia uma personagem de Buñuel, talvez o Don Lope de Tristana, Amor Perverso. Só que este Don Lope tinha mulher em casa e a filha era mesmo filha, ainda que um bocado mais velha que a Catherine Deneuve do filme.
    Isto passava-se em Penedono. Para quem não saiba, é terra que fica lá para as bandas de S. João da Pesqueira e Foz Côa, perto do Douro, à volta de um castelo medieval que parece um cenário de filme sobre cavaleiros da Távola Redonda. D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, um dos Doze de Inglaterra, saiu dali, num tempo de brumas e cavalarias, para ir defender a sua dama em terras dos Duques de Lencastre. Camões, pela boca do marinheiro Veloso, enaltece o feito no Canto VI d’Os Lusíadas – estrofes 43 a 69 para quem queira queimar os olhos com tão incerto episódio histórico.
    Veio o serão. Don Lope gabava o novo rumo que o país finalmente ia tomar, os resultados eleitorais, o governo com uma maioria e um presidente. O convidado concordava por delicadeza, os olhos postos nas traves do tecto como quem pede o auxílio de Deus, trocando olhares com a filha e fazendo uma figa atrás das costas.
    A filha ia bocejando, a semana de trabalho tinha sido dura, estava cansada e queria dormir. Subiu com a mãe as escadas rangentes.       

    Don Lope falava de economia e finanças, de política agrícola. Que havia, sim, um político em Portugal capaz de endireitar a nossa agricultura, assim o deixassem! Não só capaz de endireitar a agricultura como de restabelecer a segurança no país! Uma pouca vergonha o que se passava em matéria de segurança, a polícia sem autoridade, os tribunais contra a polícia, libertando os delituosos e atenuando-lhes as penas.   
    Parece que o político de Don Lope tinha lugar garantido como vice-primeiro-ministro! O convidado, por desfastio ou maldade, pedia mais um balão de bagaceira e lembrava-se de Alexandre O´Neill: Neste país em diminutivo… Respeitinho é que é preciso.   
    Foi por respeito que a mãe mandou a empregada preparar dois quartos. Não se tratava de um namoro de miúdos, afinal a filha até já tinha sido casada, mas há coisas que em certas casas e em certos momentos não são assumidas sem ponderação.
    Enquanto falava com Don Lope o convidado recordava-se da primeira vez que viera a Penedono, em outros tempos e noutro histórico de afectos, já lá iam uns bons dez anos, talvez mais.
    No piso de cima, dizia a mãe para a filha:
    – Se ficarem na mesma cama, desfaçam a do outro quarto como se alguém tivesse lá dormido. A empregada não tem que saber, muito menos o pai.
    O pai, Don Lope, aproveitava uma pausa na conversa para repousar os olhos. Era a sonolência que lhe costumava vir por volta das onze da noite, efeito da medicação, do vinho ou da diabetes ferina.
    O convidado aproveitou para sair de mansinho. Encaminhou-se para as escadas e começou a subi-las, enquanto uma voz lhe atravessava a mente: “Penedono, meu amor”. Por mais que quisesse, não conseguia perceber de que tempo, próximo ou distante, provinha ela.  
 

sexta-feira, junho 03, 2011

CASAMENTO DA MORTE








































Dizia um nosso grande cortesão, que havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do diabo, casamento da morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o velho.

D. Francisco Manuel de Melo
Carta de Guia de Casados


Ela dava aulas na faculdade, lia Foucault, tinha a cabeça cheia de filosofia e o corpo muito feito a satisfações metafísicas, a fenomenologias frenéticas, a ontologias gritantes. Ele limitava-se a passear os olhos por romances, por um ou outro livro de poesia, e tentava uma vaga investigação literária num trabalho académico de improvável mérito.
Como é que tudo começou? Ninguém pode dizer ao certo o princípio das coisas! Se fosse possível saber onde se levanta o vento, em que região do mar se forma a onda, em que recesso da alma desponta o amor – então o homem seria um lago de águas paradas, não haveria a emoção da vida nem o milagre da dúvida, estaria condenado ao mais pardo dos conformismos existenciais, sujeito a um determinismo tirânico, abominável e destruidor.
Na primeira noite que passaram juntos a coisa não correu mal de todo. Quando entraram na alcova, ela fechou um livro que estava aberto sobre a cama, no qual se viam grandes sublinhados a lápis castanho, tirou os óculos, a camisa e as calças, deixou brilhar o mármore dos seios e a promessa segura do triângulo púbico, e ele agiu como se lhe lesse, sem perceber, uma página densa de Heidegger. A parada era alta, mas lá se safou.
Na noite imediata foi como se lhe recitasse um poema mal decorado. Falhou nas estrofes preliminares, conseguiu recompor-se a meio do texto, e acabou no limiar duma indisposição grave, o coração a galope nas arcadas do peito.
Foram assim as duas primeiras noites. Nas que se seguiram é que foi pior. Ela queria Foucault, Deleuze, Derrida, e ele mal lhe conseguia ler um capítulo de Régio, um poema de Sophia, um artigo do JL dos mais ligeiros.
O amor pelas leituras, no entanto, parecia feito de uma liga forte. Ao fim do dia, antes de se meterem pelo Calhariz e subirem a Rua da Rosa a caminho do segundo andar do prédio em que ela morava, bebiam imperiais na Trindade e passeavam no Chiado de mãos dadas. Uma vez, uma senhora idosa que ia para a missa da tarde na Igreja dos Mártires gabou aquela ternura que via entre pai e filha, algo a que já não se assistia num tempo tão dado a conflitos geracionais. Uma amiga não menos carregada de anos que a acompanhava, mais preparada, contudo, para as realidades do século, pediu-lhe que não dissesse asneiras e ficasse calada. A senhora caiu em si e benzeu-se com veemência, rezando mentalmente a Santo Expedito por todos os que neste mundo se desviam do caminho certo.
O tempo foi passando. Na maior parte das noites não havia filosofia que viesse em seu auxílio. Ela mostrava-se compreensiva, lia e sublinhava encostada ao espaldar da cama, enquanto ele dormia, passeando por sonhos em que entravam pastoras da arcádia, toques de flauta e amores castos.
Sentiu o cheiro da morte numa madrugada de Primavera assustadora e quente. Ela lera os filósofos até tarde, os olhos correndo as páginas como se as quisesse meter dentro de si. Da rua vinha o ruído da malta dos copos, peregrinando de bar em bar. Ele estivera ao computador, escrevendo umas linhas frouxas, e a inevitabilidade do diálogo filosófico crescia como a sombra da noite. Os primeiros embates ultrapassou-os de forma satisfatória, só depois veio o mais complicado. Ela fixava-se num texto de Blanchot sobre Foucault e sexualidade, sabendo ele que quem fala em barcos quer embarcar. Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!, disse o poeta. Ele sentiu saudades de outros tempos e de outros cais onde embarcara, e deixou-se ir na corrente como quem se entrega. Acabou destroçado do excesso, um comprimido de emergência debaixo da língua. Filosofias…
Foi então que se lembrou de ter visto e fotografado no campus universitário de São Paulo, nas paredes de uma qualquer faculdade, uma inscrição a que agora dava completo sentido:

FOUCAULT É A MORTE DA FILOSOFIA!
DELEUZE E DERRIDA TAMBÉM!

Gostava muito dela, mas não aguentou o alto nível do debate filosófico em curso. Nunca mais poderá esquecer o andar velhinho da Rua da Rosa, a alcova semeada de livros, a roupa íntima espalhada pelo chão e o ruído que subia da rua até alta madrugada. Às vezes, por muito que custe, é preciso aprender com os clássicos. Casamento da morte…