Castelo de Penedono: fotografia tirada há cerca de dez anos
Ao jantar veio um naco de carne assada acompanhado de batatas loiras num molho castanho e espesso. Um arroz solto, tostado, apresentou-se em pequenas taças individuais. Uma alface de folhas lisas, rescendendo a horta, jazia na saladeira debaixo de rodelas de cebola branca, azeitonas e pimentos vermelhos como o sol no horizonte. Um vinho de Mêda em jarro de cristal fulgia como um luzeiro sobre a toalha branca.
Comia-se numa mesa rectangular a que se juntavam cadeiras de espaldar alto: o pai e a mãe nos topos, a filha e o convidado de cada um dos lados.
A sala era digna de um solar: lajedo no chão, granito nas paredes, grossas traves de carvalho no tecto, candelabros de ferro forjado, retratos de avós em cima de móveis de nogueira e uma escada de madeira que rangia na direcção dos quartos.
O leite-creme sumiu-se da travessa de loiça com os bordos pintados de flores, deixando ver no fundo uma cena bucólica em azul pálido. Vieram bagaceiras e cafés, charutos que o convidado recusou não se sabe bem porquê.
A mãe era uma senhora roliça, com muitas rugas, setenta anos bem medidos. O pai, que andava pela mesma roda, parecia uma personagem de Buñuel, talvez o Don Lope de Tristana, Amor Perverso. Só que este Don Lope tinha mulher em casa e a filha era mesmo filha, ainda que um bocado mais velha que a Catherine Deneuve do filme.
Isto passava-se em Penedono. Para quem não saiba, é terra que fica lá para as bandas de S. João da Pesqueira e Foz Côa, perto do Douro, à volta de um castelo medieval que parece um cenário de filme sobre cavaleiros da Távola Redonda. D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, um dos Doze de Inglaterra, saiu dali, num tempo de brumas e cavalarias, para ir defender a sua dama em terras dos Duques de Lencastre. Camões, pela boca do marinheiro Veloso, enaltece o feito no Canto VI d’Os Lusíadas – estrofes 43 a 69 para quem queira queimar os olhos com tão incerto episódio histórico.
Veio o serão. Don Lope gabava o novo rumo que o país finalmente ia tomar, os resultados eleitorais, o governo com uma maioria e um presidente. O convidado concordava por delicadeza, os olhos postos nas traves do tecto como quem pede o auxílio de Deus, trocando olhares com a filha e fazendo uma figa atrás das costas.
A filha ia bocejando, a semana de trabalho tinha sido dura, estava cansada e queria dormir. Subiu com a mãe as escadas rangentes.
Don Lope falava de economia e finanças, de política agrícola. Que havia, sim, um político em Portugal capaz de endireitar a nossa agricultura, assim o deixassem! Não só capaz de endireitar a agricultura como de restabelecer a segurança no país! Uma pouca vergonha o que se passava em matéria de segurança, a polícia sem autoridade, os tribunais contra a polícia, libertando os delituosos e atenuando-lhes as penas.
Parece que o político de Don Lope tinha lugar garantido como vice-primeiro-ministro! O convidado, por desfastio ou maldade, pedia mais um balão de bagaceira e lembrava-se de Alexandre O´Neill: Neste país em diminutivo… Respeitinho é que é preciso.
Foi por respeito que a mãe mandou a empregada preparar dois quartos. Não se tratava de um namoro de miúdos, afinal a filha até já tinha sido casada, mas há coisas que em certas casas e em certos momentos não são assumidas sem ponderação.
Enquanto falava com Don Lope o convidado recordava-se da primeira vez que viera a Penedono, em outros tempos e noutro histórico de afectos, já lá iam uns bons dez anos, talvez mais.
No piso de cima, dizia a mãe para a filha:
– Se ficarem na mesma cama, desfaçam a do outro quarto como se alguém tivesse lá dormido. A empregada não tem que saber, muito menos o pai.
O pai, Don Lope, aproveitava uma pausa na conversa para repousar os olhos. Era a sonolência que lhe costumava vir por volta das onze da noite, efeito da medicação, do vinho ou da diabetes ferina.
O convidado aproveitou para sair de mansinho. Encaminhou-se para as escadas e começou a subi-las, enquanto uma voz lhe atravessava a mente: “Penedono, meu amor”. Por mais que quisesse, não conseguia perceber de que tempo, próximo ou distante, provinha ela.