Isabelle Huppert (Emma) no filme Madame Bovary (1991) de Claude Chabrol
Agora que ando a reler Madame Bovary, mais me convenço de que o raio da mulher era mesmo má! Tendo-se fascinado pelo requinte do baile de Vaubyessard (fascinação simbolicamente representada pela charuteira de seda verde que amorosamente guardava), gostando portanto de frequentar a alta-roda social e os seus bons modos, não se importou de abandonar a filha recém-nascida na casa de uma ama da pior condição – uma espécie de bruxa suja, miserável e, pelo que se percebe, consumidora regular de aguardente.
E, no entanto, Emma Bovary lia. Lia e tinha amantes, uma associação de gostos (ou uma relação de causa e efeito) frequentemente estabelecida na ficção naturalista de oitocentos. A Luiza d’ O Primo Bazilio também era leitora de novelas, o que vem reforçar aquela máxima que vi inscrita não sei em que livro ou revista: mulheres que lêem são perigosas!
Também me convenço de que O Primo Bazilio de Eça de Queiroz, em que já se viu uma imitação de Flaubert, é bem melhor do que o romance do mestre francês. Luiza, apesar de tudo, amava o marido; era vítima da criada Juliana, uma das mais notáveis personagens criadas pelo nosso grande romancista; tinha no seu círculo de amigos um conselheiro Acácio, figura muito mais interessante do que o jacobínico Homais; e quanto a refinamentos amorosos, bem, não sei se Léon ou Rodolphe alguma vez fizeram a Emma aquilo que Bazilio fez a Luiza em certa tarde de amor no “Paraíso”…
A terminar, uma pequena declaração: não concordo com a máxima citada. Acho que hoje em dia, mulheres perigosas são mesmo as que não lêem!
Tenho dito, e já me safei (espero).
E, no entanto, Emma Bovary lia. Lia e tinha amantes, uma associação de gostos (ou uma relação de causa e efeito) frequentemente estabelecida na ficção naturalista de oitocentos. A Luiza d’ O Primo Bazilio também era leitora de novelas, o que vem reforçar aquela máxima que vi inscrita não sei em que livro ou revista: mulheres que lêem são perigosas!
Também me convenço de que O Primo Bazilio de Eça de Queiroz, em que já se viu uma imitação de Flaubert, é bem melhor do que o romance do mestre francês. Luiza, apesar de tudo, amava o marido; era vítima da criada Juliana, uma das mais notáveis personagens criadas pelo nosso grande romancista; tinha no seu círculo de amigos um conselheiro Acácio, figura muito mais interessante do que o jacobínico Homais; e quanto a refinamentos amorosos, bem, não sei se Léon ou Rodolphe alguma vez fizeram a Emma aquilo que Bazilio fez a Luiza em certa tarde de amor no “Paraíso”…
A terminar, uma pequena declaração: não concordo com a máxima citada. Acho que hoje em dia, mulheres perigosas são mesmo as que não lêem!
Tenho dito, e já me safei (espero).
5 comentários:
Não te safaste, não! Espera por sexta feira! :) Emma não precisa de advogados; mas olha como era infeliz: desiludida com Charles, medíocre e desastrado em tudo, que só sabia abraçar em horas certas...ela queria mais, ir mais além dos sonhos e dos desejos...acreditava no paraíso, no "foram felizes para sempre". A sua arte do afecto é fraca; que podia ter aprendido no convento nessa época? Nem sabe ter afecto maternal, é verdade; acima de tudo vai seguindo os seus devaneios, alimentados pelas suas leituras romanescas. Tenta viver nos sonhos e a vida real é como se não existisse. Muito mais se poderia dizer e escrever, um nunca acabar de opiniões. Mas não é exactamente por isso que é um clássico?
Caríssimo Escrevedor:
Sem querer tomar o partido de Emma, pois não é disso que se trata, sinto-me no entanto na obrigação de tecer algumas considerações com base no teu texto, perdoa-me a franqueza, eventualmente demolidor para o sexo feminino, através das várias referências, que vão de repulsivas quanto aos actos e motivações de Madame Bovary a declaradamente eróticas no que a Luiza diz respeito.
Por isso também digo: não te safaste, não senhor!
Vamos então por partes:
- Em primeiro lugar, se tu achas que M.B. era mesmo má, estás, na minha opinião, a fazer o ensaio de cair na armadilha de Flaubert, pois me parece que este retrato de mulher mostra muito mais do que isso. Para mim, toda a panóplia de superficialidades de que ela se alimenta sem nunca se contentar, significam uma busca, uma permanente insatisfação, que é de muitos, que é inerente à natureza humana; que a maioria (também nós) nunca assume...; que contrasta com os que nada procuram (Charles, por exemplo).
- A cena da ama representa o mais comum para a época. Repara que ninguém se escandalizava... Mais chocante é a aversão, misturada com emoção maternal, que ela sente pelo impecilho que a filha constitui. Mas não é isto, por mais aberrante, de todos os tempos?
- Emma e Luiza, duas mulheres que têm em comum o facto de lerem... Perigosas? Comparadas com quem? Com os respectivos parceiros, ocasionais ou não? Já agora, se a tua referência quanto ao perigo que as mulheres que lêem constituem, for a mesma, onde a vimos foi no teu também citado Francisco Manuel de Melo: “não nega, contudo, as capacidades intelectuais femininas – é, até, dito que a mulher tem faculdades mentais em muitos aspectos superiores aos homens – o que as tornariam, por consequência, mais perigosas”, acrescentando o dito “Que Deus me guarde de mula que faz him e de mulher que sabe latim”. Deves lembrar-te da nossa sessão com o Fidalgo Aprendiz.
- Quanto à primazia de Luiza, ou de Bazílio, já agora, visto ser ele, julgo eu, o autor material dos eróticos preliminares, em relação às congéneres cenas de M.B., eu não teria tantas dúvidas! Mas isso sou eu, a quem causou algum embaraço (na época em que li o romance) um certo atrevimento picante do aprumado Eça!
Para terminar, Manuel, um conselho de alguém que não tem a tua bonomia: guarda-te também das mulheres que lêem!
Minhas Amigas,
Peço ajuda a Vladimir Nabokov, autor de "Lolita"(1955) e professor de Literatura:
"Emma é falsa, mentirosa por natureza: engana Charles desde o princípio, antes de cometer materialmente adultério. A sua vulgaridade intelectual não é tão evidente como a de Homais. Vive entre gente filisteia e é ela própria filisteia(...)"
--- O resto em Vladimir Nabokov,"Aulas de Literatura", Lisboa, Relógio de Água Editores, 2004, pp. 159 a 214.
Sobre o verdadeiro significado de filisteu/filisteia, ver na Bíblia Sagrada.
Não peças ajuda! Emma é assim. No mundo da época, no mundo em que se educou, esses valores tinham outras forças. Charles é um homem fraco. Emma é uma mulher da época, e não é tão forte quanto se possa dizer. Há que saber interpretar as épocas e as personagens, nessa época e nesses espaços. Queriam-se mulheres assim? Havia custos para isso. E que dizer dos homens???? Nada a dizer?
Se tudo correr bem, voltaremos a Madame Bovary na 6ª feira. As leituras plurais a que nos habituámos em grupo, longe, para a maioria dos participantes, das teorias “titânicas” e das vantagens e desvantagens dos “connoisseurs”, acrescentarão, talvez, mais algum peso ao amontoado de interpretações domésticas que o livro carrega consigo.
Mas não quero deixar de notar— para não voltar, aqui, a este tema— a quantidade de matéria inflamável que o nosso amigo Manuel tem vindo a acrescentar de cada vez (eventualmente de propósito e, se assim é, que figuras fazemos nós, que lhe respondemos!).
Temos portanto um “socorro” muito interessante: Vladimir Nabokov, professor e grande, indiscutível figura da literatura (russa, ou americana?); mas, atentemos— Flaubert é uma das suas leituras de adolescência e vejamos... Lolita, monumento literário, livro que ateia polémica através dos tempos, é, de acordo com alguns críticos, “um livro cruel sobre a crueldade”.
Tout court. Que venham os comentários ao “modus vivendi” de Madame Bovary. De onde vêm sabemos que bem aproveitadas foram as lições!
Agora cómico mesmo é chamar-lhe, o nosso respeitável Nabokov, filisteia!
Tem o facto a vantagem de nos levar a reflectir sobre as voltas da história, dos costumes e das assimilações e distorções da linguagem quanto ao significado das palavras. Palavras como filisteu, assim como saloio! Desta última sabemos nós bem as voltas. Para a outra, o que o próprio Antigo Testamento refere, integra-se num fenómeno de todos os tempos: aquele que conduz a que tudo o que é estranho, diferente do que a maioria aceita, tem tendência para ser rejeitado ou servir de bode expiatório— quer dizer, carregar com os defeitos que os dominantes abominam. Neste caso, historicamente, temos, na origem e abreviando, povos desconhecidos que invadem e conquistam zonas costeiras de Canaan (fixando-se ali pela faixa de Gaza actual). Eles são de origem indo-europeia, não têm nada em comum com a gente semita. Estamos pelo 2º milénio a.C. e o povo hebreu luta com os povos vizinhos para conquistar território, para ganhar a Terra Prometida... Provavelmente, estes filisteus tinham uma personalidade forte e era certo que não adoptavam os costumes semitas: comiam a sua febra porcina assada e não queriam saber de circuncisões nem dos preceitos sagrados: eram uns selvagens! Daí a serem identificados como grosseiros e ignorantes insensíveis, ia um pequeno passo. Depois devem ter passado à linguagem de influência judaico-cristã e foram castigados com mais uns quantos epítetos (inculto, de vistas estreitas, não valoriza a arte, as ideias e o intelecto, etc), que os dicionários não perdoam!
Pergunto: este conceito aproxima -nos de Madame Bovary?
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