Ir para o seguinte endereço:
www.parnaso_e_olvido.blogs.sapo.pt
quarta-feira, maio 16, 2012
segunda-feira, maio 07, 2012
NO PIANO BAR
Gosto muito de cama, disse ela, a meio de uma conversa banal sobre um romance
de Philip Roth. Distraído como andava, ele começou por pensar que se tratava da
fala de alguma personagem, ali trazida à conversa para mais viva representação
da trama romanesca. Mas não, logo percebeu que não era possível, que a amiga falava
na própria voz, e, como homem sério não tem ouvidos, fez-se desentendido, tricando
o caju e escorrendo a cerveja, enquanto o pianista martelava um “Summertime” angustiado
e frouxo por entre espirais de fumo que
morriam nos exaustores cravados no tecto.
Estava cansado e com vontade de dormir. Passara a tarde de sábado em
Cascais, numa tertúlia vagamente literária, a que se seguira um jantar pacato com
um amigo. Depois, fizera a viagem de comboio até Lisboa, as luzes da margem
escorrendo para o rio com o perfil luminoso da velha ponte ao fundo, e agora ali estava, duas e tal da manhã, com uma
cerveja fria na mesa em frente de uma mulher quente que lia Philip Roth e
gostava muito de cama.
Há muito que estaria em casa se o telefone não tivesse tocado pelas dez
e tal. Sim, estou em Lisboa, acabei de sair do comboio no Cais do Sodré. Que
coincidência, retorquiu ela, eu estou na Brasileira, é só subir um pouco. De
aqui a dez minutos, então, anuiu ele.
Andava muito ocupado com a escritura de um romance. Já ia em trinta e
duas páginas, nunca tinha chegado tão longe, mas começava a baralhar-se com os desígnios das
personagens e os contornos da história, como se a vida nunca lhe tivesse ensinado
nada e nada conseguisse tirar dela para encher as suas fracassadas ficções.
Queria contar a história de dois amantes, mas não percebia nada de tal matéria.
O escritor só fala do que conhece, diz-se, e todas as relações amorosas lhe
tinham passado ao lado, como se apenas as tivesse vivido nas margens do rio (torrencial)
do amor, sem nunca chegar a meter os pés na água. A negação de Heraclito. O
telefonema da amiga quase lhe soube bem, quem sabe se não seria um empurrão
para conseguir sair da melancolia letárgica em que o seu romance se encontrava.
A amiga não era má de todo. Bons seios, boas pernas, um rosto
razoavelmente conservado à custa de muito cremes hidratantes e especiosos
esteticismos. Poderia vê-la até como uma mulher sensual, naquela acepção mais óbvia
da palavra, se ele não andasse tão arredado de vertigens sensualistas e mais
dado a arroubos contemplativos da beleza pura. E lá foi falando de Philip Roth,
que mal conhecia, dos seus romances e ensaios, grande virtude e prova de inteligência
é conseguirmos falar de livros que nunca
lemos.
Ainda tentou desviar a conversa com
impertinentes referências ao romance psicológico, à lírica barroca, à poesia
licenciosa de Catulo e às odes de Horácio. Ela julgou que estava a topá-lo, Philip
Roth ali à mão, e passou ao ataque: gosto muito de cama. Ele esmerdou-se, palavra que não deve vir no
dicionário Houaiss mas de que qualquer jongleur
do amor conhece bem o sentido.
O gajo é parvo, pensou ela, ou então já não aguenta uma noite com uma
mulher. Olhou para o relógio largo que usava no braço direito, fechou a pequena
cigarreira prateada, ajeitou a saia verde orlada de preto, sacudiu o colar,
afagou o peito como se buscasse no gesto uma ínvia compensação de algo, e fez
questão de pagar a conta. Fui eu que convidei, disse.
Saíram do piano bar. Ele acompanhou-a ao parque de estacionamento,
apanhou um táxi e rumou a casa. Apetecia-lhe dormir, descansar até altas horas
de domingo. À sua maneira, também ele gostava muito de cama.
quinta-feira, maio 03, 2012
CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (11)
Sinto que passaste por mim como um pequeno rio
de que apenas ouvi o murmúrio, ou como a música
dum coreto distante trazida no bojo dos ventos
em entrecortados soluços. Nunca soube nada de ti,
nem das ciências inexactas do amor. Sei, no entanto,
que me enchias o tempo duma alegria breve,
eternizada de cada vez que chegavas a casa
com a singela disposição dos teus modos
no sorriso do olhar e da voz, no anel da tua cintura
que o fogo-fátuo da minha carne nunca tangeu
na plenitude. Por isso escrevo o poema deste tempo
de reencontro com o que nunca fui, nesta sala
povoada de livros, pó e algumas sombras,
no prazer quase mórbido da tua ausência.
de que apenas ouvi o murmúrio, ou como a música
dum coreto distante trazida no bojo dos ventos
em entrecortados soluços. Nunca soube nada de ti,
nem das ciências inexactas do amor. Sei, no entanto,
que me enchias o tempo duma alegria breve,
eternizada de cada vez que chegavas a casa
com a singela disposição dos teus modos
no sorriso do olhar e da voz, no anel da tua cintura
que o fogo-fátuo da minha carne nunca tangeu
na plenitude. Por isso escrevo o poema deste tempo
de reencontro com o que nunca fui, nesta sala
povoada de livros, pó e algumas sombras,
no prazer quase mórbido da tua ausência.
"CAPITÃES DA AREIA"
Do filme de Cecília Amado
Museu do neo-realismo em Vila Franca de Xira
Romance
engajado e militante duma literatura que influenciou decisivamente o
neo-realismo português, conforme pode ser apreendido na célebre polémica de
1939, nas páginas da “Seara Nova”, entre José Régio e o jovem Álvaro Cunhal. Já houve quem notasse a correspondência de “Esteiros”
de Soeiro Pereira Gomes (publicado em 1941), um romance de meninos operários,
com a narrativa dos meninos da rua de Salvador da Bahia: Gineto no Ribatejo e
Pedro Bala na região nordestina do Brasil. Homens que
nunca foram meninos ou meninos que sempre foram homens, a contraditória disjuntiva
que exprime uma opressão social e política que teve lugar de ambos os lados do
Atlântico. Por isso é bom ler Jorge Amado no ano do seu centenário e tentar conhecer
o neo-realismo português cujo romance inaugural – “Gaibéus” de Alves Redol – se
publicou em 1939, dois anos depois de “Capitães de Areia”.
quarta-feira, maio 02, 2012
ENSAIO SOBRE A CUPIDEZ
Loja Pingo Doce da Av. Almirante Reis, de portas fechadas e sob aparato policial, à hora em que desfilavam os manifestantes do 1º de Maio.
As cenas reais bem poderiam
pertencer a um romance que Saramago nunca escreveu, mas que seria no género de
“Ensaio sobre a Cegueira” ou “Ensaio sobre a Lucidez”: uma turba ávida,
descontrolada, lançando-se sobre as prateleiras dos supermercados para
beneficiar de um desconto de metade do preço nos produtos adquiridos. Na
voragem cúpida, levam o que precisam e o que não precisam, porque o importante
é atingir o valor mínimo que dá direito ao desconto. Os gerentes dos
supermercados exultam, os clientes grunhem e a polícia é chamada para serenar
os ânimos.
E assim queimam um dia de
descanso, que daria para passear ou ir ao cinema, em longas filas de espera
para os talhos e peixarias, roubando dos carrinhos dos competidores produtos já
esgotados nas prateleiras, envolvendo-se em desacatos, soltando impropérios, carregando
as bagageiras dos automóveis para logo voltarem de olhos baços ao rodízio
consumista.
O gerente duma loja de Sintra,
entrevistado pela televisão, dizia que os clientes tinham respondido
positivamente ao aproveitarem a boa oportunidade de negócio que se lhes
deparara. E pelo negócio lá se foi o ócio, pela picanha e pelo uísque de 12
anos perderam um feriado, trocaram o ar fresco e luminoso do dia pelas luzes
das lojas e o delírio dos escaparates.
Tudo isto enquanto o
primeiro-ministro dizia tranquilamente, numa assembleia do seu partido, que os portugueses deveriam preparar-se para
níveis de desemprego ainda mais altos, para maior austeridade. Esta gente que irá suportar mais desemprego tem
a austeridade de que precisa e no poder os governantes que merece. É sabido que
nas próximas eleições vão tirá-los de lá, não por convicções políticas, mas por
simples ganância: porque lhes foram aos ordenados e ao preço do bife. Se o merceeiro Alexandre Soares dos Santos viesse
a candidatar-se, teria fortes probabilidades de ganhar.
Subscrever:
Mensagens (Atom)