Gosto muito de cama, disse ela, a meio de uma conversa banal sobre um romance
de Philip Roth. Distraído como andava, ele começou por pensar que se tratava da
fala de alguma personagem, ali trazida à conversa para mais viva representação
da trama romanesca. Mas não, logo percebeu que não era possível, que a amiga falava
na própria voz, e, como homem sério não tem ouvidos, fez-se desentendido, tricando
o caju e escorrendo a cerveja, enquanto o pianista martelava um “Summertime” angustiado
e frouxo por entre espirais de fumo que
morriam nos exaustores cravados no tecto.
Estava cansado e com vontade de dormir. Passara a tarde de sábado em
Cascais, numa tertúlia vagamente literária, a que se seguira um jantar pacato com
um amigo. Depois, fizera a viagem de comboio até Lisboa, as luzes da margem
escorrendo para o rio com o perfil luminoso da velha ponte ao fundo, e agora ali estava, duas e tal da manhã, com uma
cerveja fria na mesa em frente de uma mulher quente que lia Philip Roth e
gostava muito de cama.
Há muito que estaria em casa se o telefone não tivesse tocado pelas dez
e tal. Sim, estou em Lisboa, acabei de sair do comboio no Cais do Sodré. Que
coincidência, retorquiu ela, eu estou na Brasileira, é só subir um pouco. De
aqui a dez minutos, então, anuiu ele.
Andava muito ocupado com a escritura de um romance. Já ia em trinta e
duas páginas, nunca tinha chegado tão longe, mas começava a baralhar-se com os desígnios das
personagens e os contornos da história, como se a vida nunca lhe tivesse ensinado
nada e nada conseguisse tirar dela para encher as suas fracassadas ficções.
Queria contar a história de dois amantes, mas não percebia nada de tal matéria.
O escritor só fala do que conhece, diz-se, e todas as relações amorosas lhe
tinham passado ao lado, como se apenas as tivesse vivido nas margens do rio (torrencial)
do amor, sem nunca chegar a meter os pés na água. A negação de Heraclito. O
telefonema da amiga quase lhe soube bem, quem sabe se não seria um empurrão
para conseguir sair da melancolia letárgica em que o seu romance se encontrava.
A amiga não era má de todo. Bons seios, boas pernas, um rosto
razoavelmente conservado à custa de muito cremes hidratantes e especiosos
esteticismos. Poderia vê-la até como uma mulher sensual, naquela acepção mais óbvia
da palavra, se ele não andasse tão arredado de vertigens sensualistas e mais
dado a arroubos contemplativos da beleza pura. E lá foi falando de Philip Roth,
que mal conhecia, dos seus romances e ensaios, grande virtude e prova de inteligência
é conseguirmos falar de livros que nunca
lemos.
Ainda tentou desviar a conversa com
impertinentes referências ao romance psicológico, à lírica barroca, à poesia
licenciosa de Catulo e às odes de Horácio. Ela julgou que estava a topá-lo, Philip
Roth ali à mão, e passou ao ataque: gosto muito de cama. Ele esmerdou-se, palavra que não deve vir no
dicionário Houaiss mas de que qualquer jongleur
do amor conhece bem o sentido.
O gajo é parvo, pensou ela, ou então já não aguenta uma noite com uma
mulher. Olhou para o relógio largo que usava no braço direito, fechou a pequena
cigarreira prateada, ajeitou a saia verde orlada de preto, sacudiu o colar,
afagou o peito como se buscasse no gesto uma ínvia compensação de algo, e fez
questão de pagar a conta. Fui eu que convidei, disse.
Saíram do piano bar. Ele acompanhou-a ao parque de estacionamento,
apanhou um táxi e rumou a casa. Apetecia-lhe dormir, descansar até altas horas
de domingo. À sua maneira, também ele gostava muito de cama.
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