quinta-feira, março 23, 2006

POLITICAMENTE INCORRECTO

GEORGE SAND, desenho de ALFRED DE MUSSET


George Sand foi o pseudónimo literário de Amandine Lucie Aurore Dupin, francesa nascida em Paris, vivente entre 1801 e 1876.

Alfred de Musset, poeta e dramaturgo romântico, um dos seus famosos amantes, é o autor do desenho que nesta página se reproduz. Outro seu amante, não menos famoso, foi Chopin, uma ligação que durou perto de dez anos.

É significativo que esta escritora, autora de um grande número de romances de diversos subgéneros literários – histórico, iniciático, epistolar, de crítica social – tenha tido necessidade, para se afirmar no mundo da literatura e do jornalismo, de usar um pseudónimo masculino.

George Sand é um exemplo de mulher bem sucedida, que viveu do que escreveu, profissional da escrita numa sociedade conservadora onde o papel da mulher estava confinado ao lar e à reprodução familiar.

Em 1848, ano da queda do rei Louis-Philippe e do início da Segunda República francesa, George Sand deixou-se tentar pela política. Mas depressa se desiludiu, retirando-se para o campo e começando um novo ciclo de produção romanesca de inspiração rústica.

Não é por mera casualidade que lembramos esta mulher na semana em que se agitaram as águas da nossa política em torno da iniciativa legislativa sobre a fixação de quotas para mulheres nos cargos políticos elegíveis.

E perguntamos: precisam as mulheres que lhes dêem a mão para entrarem na Assembleia da República ou nos órgãos autárquicos? Temos a ideia de que se elas desejassem uma participação mais activa na vida política há muito que o teriam conseguido. Dominariam hoje as estruturas dos partidos e os órgãos do poder da mesma forma que já dominam, ou estão em vias de dominar, as carreiras universitárias e a investigação científica, o jornalismo, a vida literária e artística. E isto por várias razões: porque são mais fortes e inteligentes do que os homens, mais determinadas e laboriosas, e porque não há fatalidade biológica ou condicionamento de educação que as impeça, se assim quiserem, de chegar onde chegam os homens. Só que elas manifestam pela política essa saudável anorexia que as afasta dos jogos do poder. As mulheres são um anti-poder, é assim que as vemos. Até porque não nos parecem edificantes muitas das experiências de poder político no feminino.

Significa isto que tudo está bem e nada é preciso fazer? Nem pensar! Infelizmente, ainda persistem na sociedade actual os condicionamentos e discriminações que levaram Amandine Dupin a adoptar o pseudónimo George Sand. Só que o problema não se resolve com quotas ou qualquer outra medida administrativa. É uma questão de reforma de mentalidades que só a educação pode gerar. É um trabalho de gerações a ser feito por homens e por mulheres.

Por isso votamos contra o projecto legislativo neste comentário. Comentário político. Politicamente incorrecto.



D.E.

quinta-feira, março 16, 2006

PINTAR A ALMA



Que há de comum nestes dois retratos?

Um, de D. Sebastião, é obra de Cristóvão de Morais com data de 1571. O outro, de Antero de Quental, é de Columbano Bordalo Pinheiro e foi pintado em 1889. Três séculos separam a factura das duas obras: do período maneirista ao naturalismo do século XIX. Mas o que de certa forma as unifica é o poder que ambas demonstram de, através dos olhos, revelarem a alma dos retratados.

Do jovem D. Sebastião fica-nos esse sentimento de grande vingador e defensor da Cristandade, o olhar insolentemente belo e desafiador, sonhador de heroísmos e feitos cavaleirescos. De Antero de Quental, a imagem de um velho lutador à beira da desistência, o desespero por um país que recusava modernizar-se, ele que fora a figura mais luminosa da Geração de 70 e lucidamente identificara nas Conferências do Casino as causas da decadência dos povos peninsulares.

Sempre se soube ler nos olhos das pessoas. Com a arte dos grandes mestres também é possível ler nos olhos dos retratos.

D.E.

quinta-feira, março 09, 2006

WERTHER NO CHIADO



Custou-me muito a deixar de fazer uso da casaca azul que vestia no dia em que dancei com Charlotte pela primeira vez; mas, na verdade, estava já incapaz. Mandei, porém, fazer outra igual, assim como o colete e os calções amarelos. Conquanto este novo vestuário não me produza o mesmo efeito, espero, com o tempo, que hei-de vir a ter-lhe a mesma amizade.

Carta do jovem Werther, de 6 de Setembro de 1772, ao seu grande amigo Wilhelm.
“Werther” de Goethe




Davam-no como louco. Vestido de fraque, com uma rosa flamejando na lapela, movia-se todos os dias entre a Baixa e o Chiado, suscitando escárnios e perplexidades, olhares piedosos, curiosidades mórbidas. A razão de assim se apresentar, em fato de cerimónia, era explicada pelo povo da seguinte maneira: o homem do fraque era um eterno noivo; tinha ficado pendurado à porta da igreja à espera de uma noiva que, entretanto, decidira desistir do casamento. E de tal forma se deixara perturbar pela insólita situação que nunca mais largara o trajo do funesto dia.

Devo dizer que nunca acreditei nessa explicação. Não me parecia possível alguém poder enlouquecer por tão singelo contratempo. E deplorava esse pendor popular para reduzir a vida e as paixões dos homens a uma cenografia de convenções e momentos solenes sem os quais a felicidade não existe. Para mim, o homem do fraque tinha todo o aspecto de ser uma pessoa superior, dessas que não se deixam abater com facilidade. E depois, assim dito, sem mais, que significado tem um casamento? Podiam falar de uma paixão não correspondida ou dos infinitos desconcertos do amor, mas não, o que a vox populi destacava era o cerimonial das núpcias, esse lugar de vaidades onde tantas vezes não mora o verdadeiro sentimento amoroso. Se o homem do fraque assim se apresentava, impecavelmente vestido, subindo o Chiado com o seu passo certo e modos delicados, por alguma razão seria mas não certamente por essa que lhe atribuíam.

É verdade que muitas vezes não lhe corria bem o passeio. O relacionamento com os passantes era difícil, tinha os seus momentos críticos. A Lisboa cinzenta daquele tempo não condizia com o desvario perfumado da sua imagem: tinham dificuldade em aceitá-lo tal como era. Uma tarde, vi eu, ainda o Fernando António não estava sentado na cadeira da Brasileira e mal se podia respirar na Rua António Maria Cardoso, junto à estátua do poeta António Ribeiro Chiado, no sítio onde hoje se abre a garganta do metro, um grupo de rapazes dirigiu-lhe umas palavras provocatórias. Perdeu a compostura, e os insultos saíram-lhe em catadupa. Isto acontecia quase todos os dias: um fraque não podia passear em paz na Rua Garrett, carreiro de autómatos engravatados metidos em fatos de medida de lanifícios da Covilhã.

E foi assim que dia após dia, quando me cruzava com ele na rua e dava conta dos comentários jocosos que faziam à sua passagem, ia crescendo a minha admiração pela sua figura refinada, pela coragem com que enfrentava o bosque de criaturinhas acéfalas das ruas da Baixa e do Chiado. Tornou-se o meu ídolo. Para o ver passar comecei a lançar mão de perigosas estratégias, como inventar justificações para chegar atrasado ao escritório e fazer pausas a meio da tarde para tomar café, direitos não contemplados no meu contrato de trabalho. Arrostava então com as admoestações do chefe e aos poucos ia desorganizando toda a minha vida profissional. Não me concentrava no trabalho, errava os lançamentos nas fichas de inventário, confundia clamorosamente as existências de mercadorias. Ansiava todo o dia pela hora da saída para me plantar à porta da Brasileira e vê-lo chegar para tomar café. Que distinção e modos correctos, achava-o um ser de um mundo diferente. Acima de tudo, fascinava-me o pressentimento de haver por detrás daquele homem uma extraordinária história de vida. Para a conhecer daria tudo. E não era uma vulgar curiosidade a tomar conta de mim: já naquele tempo me habituara a discorrer sobre o sentido da vida e a felicidade dos homens.

Por diversas vezes, na rua, tentei dirigir-lhe a palavra, um mero cumprimento que lhe permitisse identificar-me como pessoa capaz de aceitar a sua maneira de ser, de o respeitar nas suas singularidades comportamentais, mas nunca consegui fazer-me notar. Parecia ter o olhar cravado num ponto distante, só reagia se alguma provocação lhe era directamente dirigida.

Aconteceu que entrando um dia na Livraria Bertrand à procura de um manual de Contabilidade para aprofundar e melhorar os meus saberes profissionais, tentando assim recuperar da má imagem formada a meu respeito pelos meus patrões, vejo o homem do fraque a pagar no balcão da caixa um livro acabado de retirar de uma prateleira. Era o Werther de Goethe, edição da Guimarães Editores desse ano de 1970. Sabia que aquele romance alemão, publicado em 1774, narrava as desventuras amorosas do jovem Werther, artista e leitor de Homero, num conjunto de cartas por ele escritas a um grande amigo durante os anos de 1771 e 1772. Confesso não ter valorizado, de imediato, nem o acto de compra do livro, nem a escolha daquele autor do romantismo alemão. Tinha a intuição de que o homem do fraque era uma pessoa culta, habituada a lidar com as grandes obras literárias, portanto pareceu-me perfeitamente natural que frequentasse as livrarias e lesse Goethe. Mas nessa noite, deitado no meu divã à espera da chegada do sono, a terrível espertina a tomar conta de mim, comecei a ver o que até aí não ousara sequer considerar: a escolha do Werther não era uma simples coincidência ou uma inclinação meramente literária. A história daquele romance deveria ter alguma coisa a ver com a vida do homem do fraque. Fiquei tão excitado com a minha descoberta que já não consegui dormir.

No dia seguinte cheguei cedo ao escritório, tendo provocado no meu chefe um sorriso de satisfação. Renunciei à pausa para o café, a meio da manhã, aguentando-me acordado à custa do consumo imoderado de cigarros. Naquele tempo ninguém ligava aos malefícios do tabaco, fumar fazia bem à saúde e confortava o ego dos pobres mortais. A minha cabeça vogava num nimbo deletério de fumo, o meu chefe tossia, enchia o lenço de escarros copiosos, mas nem se importava. Ainda não estavam definidos a figura e os direitos do fumador passivo; ainda nenhuma empresa, nem mesmo na América, tinha sido processada pelos arrasadores cancros de pulmão causados aos seus funcionários pela liberdade de fumar em áreas laborais. Portanto, fumava-se com todo o à-vontade, apenas era costume pedir licença às senhoras, mero procedimento cortês, nada mais do que isso. O chefe tinha boas razões para estar satisfeito comigo: estava a cumprir o horário, os lançamentos brotavam da ponta da caneta e cobriam o branco da fichas de inventário em ritmo satisfatório.

Terminei em apoteose de produtividade o período laboral da manhã. O chefe, entusiasmado, até me convidou para ir almoçar, amabilidade que agradeci sem poder aceitar, pois tinha outros planos para o escasso tempo da minha hora de almoço. Dirigi-me à Livraria Bertrand antes da uma da tarde, hora de encerramento de todo o comércio do Chiado com a natural excepção de restaurantes, cafés e similares. Conhecia aí um caixeiro meu vizinho, com quem não tinha afinidades especiais, mas que me podia ajudar naquilo que pretendia. Havia reparado que o homem do fraque, objecto de troça em toda a Rua Garrett, era bastante considerado na Livraria Bertrand. No dia em que o vi adquirir o Werther, recebeu do citado caixeiro, à saída, um cumprimento tão atencioso que me pareceu muito para além da cortesia formal devida pelo comércio aos seus clientes. Aquele homem podia ajudar-me a descobrir a história do homem do fraque. Fui falar com o caixeiro, um sujeito de meia-idade que havia estudado no seminário, com fama de latinista e de conhecer gente da sociedade. Às minhas inquirições, respondeu assim:

Pois quer o meu amigo que lhe fale sobre o senhor doutor, o que se passeia de fraque no Chiado, faço-o com gosto, sim senhor, é cliente desta casa há algum tempo, seis ou sete anos, quando tinha escritório de advogado na Boa-Hora era aqui que adquiria as edições jurídicas, um grande escritório, digo-lhe, tinha vários colegas a trabalhar com ele, e comprava obras literárias, revistas especializadas, foi pena ter deixado de exercer a advocacia, na barra do tribunal não havia outro, discurso fácil, nenhum juiz lhe fazia o ninho atrás da orelha, sabia da poda como ninguém, a grande causa dos seus problemas foi Charlotte, peço-lhe o grande favor de não espalhar isto que lhe conto, faço-o por amizade, somos vizinhos, e já vejo que é um jovem inteligente, analista dos géneros humanos, lá diziam os antigos homo sum et nihil humani a me alienum puto, sou homem e nada do que é humano considero alheio, pois essa senhora é que lhe estragou a vida, é filha de um diplomata alemão, casada com um jovem diplomata colega do pai, sabe como é a carreira diplomática, um dia estão em Lisboa a gozar este sol ameno de que os nórdicos tanto gostam, no outro já estão no Cairo ou em qualquer esconso do Mundo a destilar suores, o marido de Charlotte estava longe, colocado temporariamente numa perigosa missão onde não era de bom conselho fazer-se acompanhar da família, o senhor doutor trabalhava para a Embaixada Alemã, tinha relações muito estreitas com todo o pessoal diplomático, foi assim que foi convidado para uma recepção na embaixada onde conheceu Charlotte, que bela mulher, ao contrário da nórdica típica esta tem os olhos negros, os cabelos são azeviche puro, pois bastou vê-la para ficar apaixonado, perdidamente, com o seu fraque de cerimónia e uma rosa na lapela também não passou despercebido a Charlotte, então, abyssus abissum invocat, um abismo atrai outro abismo, começaram a sair juntos, a passear no Chiado ao fim das tardes, é claro que não havia nada de mais, Charlotte amava o marido embora não ficasse indiferente ao charme e à inteligência do senhor doutor, diziam os latinos procul ex oculis procul ex mente, ou seja, longe dos olhos longe do pensamento, mas não era verdade, pois aqui aplicava-se outra grande máxima latina, omnia vincit amor, o amor vence tudo, mesmo longe Charlotte tinha sempre o marido no pensamento, mas apreciava aquela amizade tão saborosa que sentia pelo senhor doutor, amizade?, sei lá o que é, chamemos-lhe amizade para simplificar as coisas, está-me a perguntar como é que estou ao corrente de tudo isto?, talvez não saiba que a nossa livraria é fornecedora da Embaixada Alemã, temos relações com todo o pessoal, há coisas que transpiram com facilidade, mas dizia eu, enquanto Charlotte via a relação com o senhor doutor como uma amizade colorida, ele deixava-se dominar pela nuvem negra da paixão, paixão impossível, mórbida, repare que não larga o fraque, estava assim vestido quando a conheceu, e depois descobriu a semelhança entre o seu caso e o do jovem Werther, se já leu o romance lembrar-se-á de que o infeliz amador não largava a casaca do dia do baile em que dançou com Charlotte, no romance também assim se chamava o objecto da paixão desmedida, é então que dá em adquirir tudo o que fosse edição do romance de Goethe, estou a falar não só das diversas edições da Guimarães, as que se encontravam no mercado, mas também as que saíam na língua original e até em outras línguas, sei disto porque fazia o favor de me consultar, aconselhava-se comigo sobre as lojas de livros antigos, sei que encontrou numa loja do Bairro Alto uma edição francesa de 1854, tradução de Saint-Beuve, como estava alvoraçado nesse dia em que topou com o raro exemplar, está a ver a situação, um pouco doentia, não lhe parece?, e assim encheu uma estante de diferentes edições do Werther, deu-se então o caso do marido de Charlotte regressar a Lisboa após terminar a sua missão, pois pensa o meu amigo que acabou a convivência?, desengane-se, o marido estava ao corrente de tudo, sabia como a mulher gostava da companhia do senhor doutor, ainda lhe agradeceu o apoio prestado na sua ausência, ficaram grandes amigos, trazia para lhe oferecer uma edição raríssima do Werther descoberta num alfarrabista de Roma durante uma visita que fizera ao Vaticano, I Dolori del Giovine Werther, de 1883, edição milanesa da editora Sonzogno, e imagina o meu amigo que se entregou Charlotte, a partir de então, à convivência exclusiva com o seu amado esposo?, em renovada lua-de-mel?, nem pensar, para onde eles iam ia o senhor doutor atrás, afectos triangulares, é coisa que dá para pensar, o pior foi o caso começar a ser falado, Lisboa é uma aldeia, e foi o marido que acabou por pedir a Charlotte para se distanciar daquela amizade, nenhuma imposição, apenas um pedido, tudo gente civilizada como está a ver, Charlotte falou com o senhor doutor, fez-lhe ver que aquela paixão não levava a nada, deixou de o receber, e agora anda aí pelo Chiado como o meu amigo vê, não sei onde vai acabar aquilo…

Tão bem me tinha corrido a manhã de trabalho que nem pensava poder borrar toda a pintura durante o período da tarde. Erros sobre erros, desatenções. Não deixava de pensar no homem do fraque e em tudo o que me contara o caixeiro. Às quatro horas o chefe chamou-me ao gabinete do patrão e falou desta maneira:

Vou dizer-lhe uma coisa, aqui diante do dono desta casa para que não restem dúvidas da minha determinação, se o senhor insiste em não se aplicar no trabalho, se vem para aqui pensar na sua vida particular, nos amigos, na namorada, nos romances que lê ou no futebol, se não ajuda a puxar este grande carro que é a nossa casa comercial, comércio por grosso e a retalho, comissões e consignações, agências em todas as cidades da Metrópole e do Ultramar, então é melhor que não trabalhe para nós, empregos e empregados não faltam aí, vá para funcionário do Estado, não se ganha tanto mas trabalha-se muito menos, venha amanhã se vier com vontade de dar o litro, de contrário é melhor que não volte a aparecer, hoje não aceito mais o seu trabalho, pode sair que vou dar ordem para lhe descontarem as horas da tarde.

Que podia fazer um pobre vendedor da sua força de trabalho, sem o amparo de sindicato ou comissão de trabalhadores, perante o poder avassalador do grande capitalismo comercial? Só obedecer, não havia outra solução. Dei comigo a subir a Rua Garrett, com um nó na cabeça, a caminho do eléctrico.

Cheguei a casa. Comecei de imediato a ler o Werther adquirido na livraria à hora de almoço. Nunca tinha lido o romance do princípio ao fim. O que dele sabia não passava das referências habitualmente feitas em antologias, histórias de literatura ou artigos de jornais. Mas lendo-o e relendo-o, carta após carta, até ao desfecho narrado pelo editor, via como os romances são afinal o espelho da vida real. Este, como se sabe, é autobiográfico, tirado da própria vida de Goethe, mas ressurgia então no Chiado, em outras vidas iguais. E uma coisa me começou a preocupar: no romance, o jovem Werther suicida-se com um tiro de pistola na cabeça, única saída encontrada para a paixão impossível que lhe oprimia o coração. Onde chegaria o homem do fraque no seu delírio de amor? Sobressaltei-me tanto que passei outra noite sem dormir. Precisava de chegar ao Chiado, no dia seguinte, o mais cedo possível. Era urgente estar com o homem do fraque à hora do primeiro café na Brasileira. Entre as nove e as dez era quando ele aparecia, esperaria o tempo que fosse necessário. Bem me importava o escritório, já tinha decidido não voltar a pôr lá os pés, tinha era de falar com o infeliz apaixonado, fazer-lhe ver o perigo que corria se acaso a sua história, por capricho dos deuses, fosse uma repetição da história do pobre Werther. Ainda havia tempo para arrepiar caminho.

Durante toda a manhã aguardei a sua chegada sentado na Brasileira. O homem do fraque não apareceu. Ninguém o viu desfilar à tarde nos passeios do Chiado.

Calcorreei alvoraçado a planura das ruas da Baixa, subi e desci o Chiado não sei quantas vezes, aventurei-me nas vielas do Bairro Alto, desci à Rua do Alecrim, Largo Barão de Quintela, Cais do Sodré, Largo do Corpo Santo, meti-me pela Vítor Cordon, dei a volta por todo o perímetro do antigo espaço conventual de S. Francisco, entrei em cafés e restaurantes, subi à Trindade, fui ao Largo do Carmo... estava escrito no livro do tempo que ainda teriam de passar três anos e alguns meses para aí se renderem os velhos senhores do burgo… Mas do homem do fraque, nem sombra.

Ao terceiro dia sem lhe descobrir o rasto comecei a ficar preocupado. Temia cada vez mais um acto de desespero do desditoso apaixonado. Dei em ler as necrologias, as notícias dos jornais. Estes só falavam daquilo que queriam, havia coisas de que queriam falar e não os deixavam, mas um suicídio, para mais sendo de gente da alta sociedade, era notícia a que se daria algum relevo, assim pensava eu… De suicídios, porém, só dei conta de um artigo do “Diário de Notícias” lamentando a infelicidade dos suecos, esses nórdicos habituados a pôr termo à vida com a maior das naturalidades, certamente, perorava o articulista, por não disporem de um sistema social e político tão justo e equilibrado como o de Portugal...

Não me contive e fui procurar o meu vizinho caixeiro da Livraria Bertrand. E recebi uma notícia extraordinária: o homem do fraque tinha fugido com Charlotte. A bela alemã, que nunca fora indiferente aos encantos do seu enamorado, tinha trocado um casamento cinzento por uma paixão que finalmente podia explodir de luz e de cor. Há dois dias que a Embaixada estava em alvoroço, os negócios e interesses da Alemanha em Portugal tinham passado para segundo plano. Todo o pessoal da embaixada não fazia outra coisa senão tentar localizar os fugitivos. Fiquei espantado e ao mesmo tempo senti uma grande tranquilidade tomar conta de mim. Passeei durante o resto do dia pelas ruas da Baixa e do Chiado com a alegria própria de quem acaba de se aliviar de um pesado fardo.

E pensava como a vida real é afinal bem diferente daquilo que nos servem os escritores nos seus romances e novelas.



D.E.

quinta-feira, março 02, 2006

" MARTÍRIO DE S. SEBASTIÃO ", PAINEL PROTOMANEIRISTA PINTADO POR GREGÓRIO LOPES (1536) PARA A CHAROLA DO CONVENTO DE CRISTO EM TOMAR


O mártir está atado à coluna sobre o plinto de mármore. Já três setas lhe entraram nas carnes. A cabeça – circundada por um duplo halo – cai-lhe para a banda esquerda, mas nenhum sinal de dor se reflecte na fenda da boca e os olhos ainda não se fecharam por completo sob a cortina das pálpebras.

Atentemos nos dois sagitários que ocupam o primeiro plano do painel. Só um deles, o que vemos à direita em uniforme militar quinhentista, assesta a sua arma sobre o corpo do mártir. O besteiro que está à esquerda parece apontar na direcção do verdugo do arco. Seria assim um protector do supliciado.

Das três setas que lhe trespassam o corpo, uma só por sorte não atravessou o coração, o que representaria morte imediata por falência do aparelho circulatório. Outra está alojada na região do rim, um órgão vital, embora subsista incólume o rim direito e esse seja fisiologicamente suficiente para assegurar as funções depurativas próprias destes órgãos. A última entrou-lhe pela zona lateral do tórax, só por milagre não terá causado danos no pulmão. Não admira pois que após estas setas e mais as que se seguiram sem que delas pudesse o artista dar testemunho, se tenham convencido os carrascos da morte de Sebastião.

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Sebastião era militar do exército romano no tempo dos imperadores Diocleciano e Maximiano. Corriam severos aqueles anos do final do século III, já se sentia vacilar o poder de Roma, e Diocleciano perseguia os prosélitos da fé cristã em todos os cantos do seu vasto Império. Veja-se que até à cidade de Olisipo, na distante província da Lusitânia, chegava a mão do implacável perseguidor: o martírio dos irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia, ousados violadores dos éditos imperiais que proibiam a religião cristã. Sebastião, voltemos a ele, era um bom soldado. Tão bom e apreciado pela hierarquia militar que lhe foi atribuído o comando da primeira coorte imperial. A ingratidão de Sebastião, no entanto, não podia ter sido maior. Convertido ao cristianismo, aproveitou-se da sua posição de comando para catequizar os subordinados, subvertendo a disciplina castrense e prejudicando a religião oficial do Estado. E foi mais longe: tirando partido da sua posição e influência, converteu Nicóstrato e sua mulher Zoe, destacados cidadãos romanos; levou para a fé cristã Tranquilino, pai de Marco e Marcelino, mártires que viriam a merecer a graça da canonização; converteu também Cláudio, outro cidadão que pertencia à nata da sociedade de Roma, assim como as suas duas filhas. Foi por este cúmulo de acções, e pelo mais que a História não regista mas de que se suspeita, que Sebastião sofreu o martírio tal como vemos agora na obra do artista.

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Detenhamo-nos então no painel. O besteiro protector de Sebastião, que vemos orientar a arma na direcção do archeiro seu colega, não apresenta o mesmo uniforme militar. Pelo trajo que usa e pela grossura do porte, comparando com os retratos da época, parece-se mesmo com o senhor D. João III, rei de Portugal, possível doador da obra para a charola do Convento de Cristo. Nessa qualidade, como era então usual, podia ser representado na pintura. D. Manuel, por exemplo, aparece como rei mago em vários retábulos de que foi doador. Por que razão não havia D. João III de figurar no painel como defensor do mártir? Tal representação teria a força de um voto. E a verdade é que, por graça concedida ou simples coincidência, viria o Rei a ter como sucessor no trono o seu desejado neto D. Sebastião, assim baptizado por ter nascido a 20 de Janeiro de 1554, dia do ano consagrado aos festejos do santo.

Reparemos agora nas mãos de Sebastião – duas mãos direitas. A mão direita verdadeira está sobre a cabeça, o braço preso à coluna. A outra mão direita, a falsa, pois no seu lugar deveria estar a esquerda, surge por trás do corpo ao nível da cintura. Não tenhamos dúvidas, é uma mão direita que ali se mostra – a ser a esquerda não nos daria o polegar e o indicador na primeira linha da representação.

Ora não é crível que um artista de tão alto gabarito, pintor régio de D. João III, formado na oficina de mestre Jorge Afonso, conhecedor das fulgurações das artes flamenga e italiana, se tenha enganado no desenho como um simples principiante. Grande era a arte deste mestre. Só em Tomar passou ele três anos de intenso labor, em plena maturidade criativa, realizando painéis para a charola do Convento de Cristo: além de “Martírio de S. Sebastião”, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, pintou o painel “Senhora dos Anjos”, que repousa no mesmo museu, estando ainda no local primitivo os painéis “S. Bernardo” e “Santo António Pregando aos Peixes”. E para o altar-mor da Igreja de São João Baptista, templo então dependente da Ordem de Cristo, realizou o artista o retábulo de que restam as peças “Degolação” e “Apresentação da cabeça de S. João Baptista”. Se um pintor desta craveira dá em trocar os dedos de uma mão de tal forma que a mesma passa de sestra a destra, alguma razão teria para o fazer…

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E entramos na segunda parte da história de Sebastião. Julgado morto pelos seus algozes, o corpo cravado de setas, foi deixado na praça pública como exemplo, para que se soubesse de que forma o poder imperial castigava a deslealdade. Mas pela noite passou pelo local uma pobre viúva, de nome Irene, que vendo aquele corpo inanimado, ainda com um sopro de vida, o recolheu e tratou.

Milagre ou mero resultado dos esforçados cuidados de Irene, Sebastião sarou. A seguir, vem a parte mais surpreendente da história: Sebastião decide apresentar-se a Diocleciano e reafirmar a sua fé cristã, declarando-se disposto a continuar a campanha de conversões, o que não agradou, como é de calcular, ao imperador. Daí que tenha ordenado a sua detenção imediata, mandando-o açoitar até à morte. E aqui está um paradoxo iconográfico que não sabemos como explicar, pois Sebastião não morreu das setas mas sim a golpes de chicote, e tal martírio raramente se vê representado nas imagens devotas.

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Narrativa hermética, esta que o artista nos dá. Não só pelos dedos trocados, em que alguém já pretendeu ver uma referência à relíquia de S. Sebastião, um rádio do braço direito, saqueada por Carlos V de uma igreja de Roma, em 1527, e oferecida ao seu cunhado D. João III . A representação de duas mãos direitas, sendo a mão uma extensão do braço, teria um forte poder invocativo de tão importante relíquia. Mas também pelos múltiplos planos de difícil decifração em que se desdobra o painel para além do óbvio sacrifício de Sebastião.

Uma coisa, no entanto, é clara: conta-se aqui uma história de intolerância religiosa. O evidente martírio de Sebastião, mas também o fanatismo de sinal contrário que se figura no plano do painel à direita do archeiro quinhentista. É visível que ocorre aí uma imolação pelo fogo: dois mártires estão presos aos mastros sobre a fogueira, alguém levanta uma cruz em direcção a eles, e uma grossa coluna de fumo sobe nos ares. Um auto-de-fé. Em 1536, ano da possível execução da obra, foi introduzida a Inquisição em Portugal. O artista não desperdiçou a oportunidade de testemunhar o momento histórico.

Facilmente se passa de perseguido a perseguidor. É só deixar andar a roda do tempo. Uns anos mais tarde, em pleno delírio inquisitorial, já não poderia o artista fazer uso de tamanha liberdade criativa. Veja-se esta passagem das “Constituições Sinodais”, de 1565, divulgada pelos bispados portugueses a propósito da representação das “santas imagens”:

“…que as imagens sejão esculpidas, ou pintadas com muita decência, & que não contenhão, ou representem, cousas vãas, supersticiosas, ou aphocrifas, ou que dem (sic) ao povo occasião de erro, ou escandalo (…), que não incluam pessoas particulares vivas, ou defuntas, e que se conformem com os Mysterios, vida & milagres dos originais, que representarão, & assi na honestidade dos rostos, perfeição dos corpos, & ornato dos vestidos."
D.E.