sábado, dezembro 25, 2010

domingo, dezembro 19, 2010

DEVERES

(Clicar na imagem para aumentar)
Ontem, navegando no ciberespaço, entrei numa página do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em que se me deparou esta informação. Estamos completamente expostos – é difícil que alguém interessado não consiga sempre descobrir alguma coisa daquilo que andamos a fazer.
De qualquer maneira, foi bom, para me lembrar dos deveres. Garanto que não deixarei de entregar em 2011 o número de páginas que Bolonha reclama. Sessenta estão escritas e aprovadas. Já não falta tudo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

EXCERTOS (4)

A primeira vez que falei com o marido de Flora foi numa manhã fria de Janeiro nas instalações do mesmo banco onde dois meses antes eu me encontrara acidentalmente com ela. O homem estava com dificuldades numa operação que tentava efectuar na caixa automática, procurando evitar a fila de espera que se formara para o balcão de atendimento. Ajudei-o, e foi então que me apresentei como tendo conhecido a sua falecida mulher. Olhou-me desconfiado, as sobrancelhas projectadas sobre as armações dos óculos, e eu tive a sensação de ter sido terrivelmente inepto na forma como lhe fizera aquela revelação.
Concluída a operação, olhou-me como quem procura perceber as minhas intenções – os lábios finos, de cujos cantos irradiavam umas lastimosas comissuras, nervosamente cerrados. Saí do banco com ele, acompanhando-o em conversa de ocasião ao longo da avenida que ia descendo a caminho da sua casa.
Lembro-me de que estávamos no período duma campanha eleitoral qualquer. Passava pela avenida um carro com instalação sonora que debitava decibéis de confiança na nação e nos candidatos a seus representantes. À medida que fomos caminhando, percebia que o homem se descontraía, avançando num diálogo que apesar de tímido me parecia isento de qualquer reserva. Assim, quando passámos à porta do café foi de comum acordo que entrámos e nos sentámos numa mesa.
Disse-me que vivia sozinho há dois anos e meio, desde que tomara a iniciativa de sair de casa. Primeiro, durante alguns meses, fora viver para uma casa de porteira dum prédio vizinho, um desses minúsculos apartamentos que existem no último piso dos edifícios, uma espécie de mansardas viradas para o declive dos telhados; depois para um apartamento desafogado que foi mobilando a seu gosto. Foi breve a nossa conversa dessa manhã, mas voltámo-nos a encontrar uns dias mais tarde, e aí já longamente falámos de diversos assuntos e também da nossa situação comum que era a de ambos nos encontrarmos a viver sozinhos, eu separado da minha mulher, ele numa espécie de viuvez .
Omiti o facto de ter em meu poder o diário de Flora. Eu não podia informá-lo da sua existência sem perceber com que tipo de pessoa estava a lidar, que constituição psicológica era a sua, se aguentaria as revelações nele contidas. Tinha-o visto muito choroso, completamente de rastos, no funeral da ex-mulher. Não queria causar-lhe maior dor, embora me custasse guardar um escrito que não me pertencia e do qual, até pela sua forma de enunciação, ele era o único destinatário.

domingo, dezembro 05, 2010

RAUL BRANDÃO E O GABIRU

Raul Brandão com a esposa, D. Maria Angelina - retrato de Columbano

Este homem tinha mulher, uma casa no campo, fazia a vindima e vendia o seu vinho como qualquer proprietário rural. Na correspondência com Teixeira de Pascoaes – que também era produtor –, há avisos sobre este negócio incerto, sempre sujeito às oscilações do mercado e às suas obscuras regras: Olhe que o vinho, com grande admiração minha – e porque neste país nunca há lógica – está a subir! Eu fiz a asneira de vender o meu por 600,000 réis – mas o meu caseiro já o vendeu por 720,000 e vizinhos por 900,000!!! É uma febre. Porquê não percebo! Acautele-se.
Em “Húmus”, porém, não é o vitivinicultor que fala, mas o homem esmagado pelo mistério da vida e da morte, pela presença ou pela ausência de Deus, pelo sentido último das coisas. Não há na literatura portuguesa outro livro como este – um misto de novela, diário e reflexão filosófica, um painel de inquietantes personagens de onde se destaca o Gabiru.
O Gabiru não é como as velhas D. Penarícia, D. Leocádia ou D. Biblioteca que moem vidas mesquinhas timbradas de invejas e aleivosias. O Gabiru mistura, resolve, extrai sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente.
“Húmus” é o livro de um eu dividido e a consciência disso. O Gabiru é a descoberta do outro, o estilhaçamento de um ser – como na heteronímia pessoana ou no eu múltiplo de Régio.
Todos somos legião, todos estamos cheios de Gabirus capazes do melhor e do pior. A dificuldade, às vezes, é descobri-lo.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

EXCERTOS (3)

Estava-se em 1975, corriam no ar os frescos eflúvios da liberdade. Flora seguia essa onda em que se descobria mais verdadeira e mais mulher. Vibrava com os lances revolucionários que se jogavam nas ruas em manifestações e comícios, acreditando que a vida e o amor eram coisas belas, tão belas como um voo de gaivota ou um dia de chuva com arco-íris. Como podia amarrar-se a um casamento com alguém que já não amava? Consumada a ruptura, foi com o seu novo amor que participou pela primeira vez na manifestação do 1º de Maio, em 1976, e a partir daí não mais deixou de descer à rua no dia da festa dos trabalhadores.
Do então namorado e futuro marido (passaram a viver juntos a partir de Fevereiro de 1977), há referências no diário aos estudos que ambos faziam em cursos nocturnos: ele na universidade, ela na escola secundária onde tirava o décimo segundo ano.
Antes de terem arranjado casa, encontravam-se ao final da tarde no apartamento dum amigo que se ausentara para França, num terceiro andar de um vetusto prédio do Alto de Santa Catarina. Naquela altura ainda estava por escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e a história dos amores dum poeta com uma criada de hotel – amores também daqueles lugares, com o Adamastor ao lado e o Tejo ao fundo. De amor eram os encontros de Flora com o namorado – aparecem agora em livro, está visto que já não há nada de novo para contar.
Ela achava-o um homem sensual, e era delicada e terna quando iam para a cama. Porém, por volta de 1980, num dos seus primeiros momentos de desencanto, o coração já falava outra língua. Página vinte e dois do diário:

Não foi paixão. Não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Porque estava fragilizada, cegou-me a tua luz, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Como o náufrago que vê passar uma tábua à tona de água, Flora tê-la-á agarrado à espera de ver chegar o barco salva-vidas. Nenhum náufrago, se tiver sorte, fica pela tábua de salvação. Ela é um meio, e não um fim. A enganadora paixão de Flora foi um meio de se libertar de um grande mal que lhe oprimia o coração.