quinta-feira, novembro 24, 2011

O FADO

Agora que o fado se candidata a património imaterial da humanidade, vale a pena ler este texto escrito por José Régio há mais de setenta anos:


Várias são as modalidades do fado, conforme o meio em que se desenvolve: Assim, há o fado dos lupanares, das tabernas, das alfurjas; o fado de salão, de palco, de retiro, de coreto de rancho popular estilizado; o fado das alfamas e mourarias de Lisboa; dos luares do Mondego e becos da Alta Coimbra; das revistas chulas do Porto ou dos cegos das feiras dos subúrbios. Assim, há o fado que arrota e o que põe água de cheiro, o que soluça e o que satiriza, o que pode refrescar a literatura e o que a envilece, o que vai barra fora em terceira classe, guardado numa caixa de guitarra como no coração dum búzio saudoso, e o que se embarca em discos ou navega em ondas sonoras enviadas pelas emissoras. Assim há o fado às vezes execrável e o fado às vezes tocante, – um e outro característicos através das suas várias modalidades. Mas seja como for, entre muitas manifestações da nossa alta literatura culta e essa manifestação primária que é o fado (tão primária nas suas formas mais espontâneas como no risível pedantismo ingénuo das mais aperaltadas) – não há nenhum abismo senão o da expressão artística e mentalidade do autor. A fonte de inspiração é a mesma; e muitas vezes os motivos são os mesmos: paixão do solo pátrio, vontade de aventuras, desgosto das injustiças sociais, exibicionismo da desgraça, amor filial e amor maternal, sede de piedade, “saudades de tudo” [verso de António Nobre], penas de amor de toda a casta.

JOSÉ RÉGIO, no ensaio António Botto e o Amor, 1938.

quarta-feira, novembro 23, 2011

"A CATÁSTROFE" - Eça de Queirós

A situação descrita no texto de Eça de Queirós não está longe da que hoje se vive no nosso país. De quem é a culpa? Há seis meses era, segundo a maioria dos portugueses, de um mau governo e de excessos por ele cometidos. O mau governo foi-se embora, mas os sacrifícios exagerados que o mesmo pedia – e que, recorde-se, foram recusados por todos os partidos da oposição, do CDS ao BE – são hoje maiores e de mais desigual incidência do que aqueles que então pretendiam impor-nos.
A hipocrisia política refugia-se agora na crise internacional, na acção dos mercados e na necessidade de o governo implementar reformas para salvar o país, ou seja, cumprir as regras severas que nos foram ditadas com vista não a garantir o desenvolvimento económico ou a retoma do emprego, mas para que os credores possam ter o seu dinheiro de volta, com juros, dentro do prazo combinado.
Penso não haver dúvida de que estamos sob ocupação estrangeira – daí ter chamado Eça e A Catástrofe à colação –, governados por um ministério colaboracionista, de certa forma semelhante ao de Vichy em França durante a Grande Guerra.
É o estado de necessidade, dirão, como na França de 1940. É verdade, mas não foi por isso que deixou de aparecer De Gaulle e a luta da Resistência. Então era o poder militar alemão, agora é o poder económico dos mercados e, de novo, o poder da Alemanha, já não militar, simplesmente económico e político, querendo manter uma moeda forte e uma liderança acéfala contra os interesses da maioria dos povos da Europa.
As medidas que estão a ser tomadas e as que ainda acabarão por chegar configuram a catástrofe queirosiana. O país perdeu a independência e não creio que a retome tão cedo, a não ser que haja um golpe de conjurados como o de 1640.
É por isso que sou pela greve geral de amanhã. Sei que no imediato não vai resolver nada e, provavelmente, até agravará os sacrifícios por que estão a passar as classes mais desfavorecidas. Compreendo que muitos irão trabalhar com medo de represálias ou por não poderem dar-se ao luxo de perder um dia de salário. Compreendo isso e também a posição dos que, apesar de tudo, não deixarão calar a revolta . Quando se dá um murro de desagravo na cara de alguém há sempre o risco de se partir os dedos. Porém, não é por tão pouco que se deve ficar de mãos nos bolsos.

sábado, novembro 19, 2011

AS GARÇAS

Hoje, ao fim do dia, no relvado da praceta. Vieram cedo, este ano.

DESCOBRIMENTO DA ILHA DA MADEIRA, ANO 2011

Eminentes os oiteiros, & profundos os valles, em sua desproporção, guardavão arquitectura rigorosa & agradavel; (...).

D. Francisco Manuel de Melo, Epanaphoras, "Descobrimento da Ilha da Madeira, Anno 1420"

quinta-feira, novembro 03, 2011

UM POSTAL DE BRUGES

Recebido hoje.

VOU LENDO

Efectivamente, aquele chá parecera a Swann algo de precioso, tal como a ela, e o amor tem tanta necessidade de encontrar uma justificação para si mesmo, uma garantia de duração, em prazeres que, pelo contrário, sem ele o não seriam e com ele terminam, que, quando saíra às sete horas para ir a casa vestir-se, durante todo o trajecto que fez no seu coupé, não podendo conter a alegria que aquela tarde lhe causara, repetia para si mesmo: “Seria muito agradável ter assim uma pessoazinha, em casa de quem se pudesse achar essa coisa tão rara que é um bom chá.” Uma hora depois recebeu um bilhete de Odette e reconheceu logo aquela grande letra, em que um fingimento de rigidez britânica impunha uma aparência de disciplina aos caracteres informes que porventura teriam significado para olhos menos prevenidos a desordem do pensamento, a insuficiência da educação, a falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera-se da cigarreira em casa de Odette. “Se se tivesse esquecido também do coração, não deixaria que o recuperasse.”

MARCEL PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, volume I, Do Lado de Swann, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 236.