quinta-feira, janeiro 31, 2013
quarta-feira, janeiro 30, 2013
FRAGMENTOS DE UMA CARTA
A carta missiva ou mandadeira (…) é uma mensageira fiel que interpreta o nosso ânimo aos ausentes (…)
FRANCISCO RODRIGUES LOBO, Corte na Aldeia
Minha Querida
Amiga,
Há muito que
não te escrevia. O tempo corre depressa, bem sabes, mais depressa do que as
ilusões que vamos construindo, e quando damos por ele está muito à frente de
nós, longe daquilo que pensámos e desejámos fazer. Das últimas cartas que te
escrevi, não tenho, de resto, boas recordações: foram cartas que ficaram sem
resposta ou a que só respondeste com meias palavras, discursos que deixavam
espaço para a dúvida e a incerteza. Aceitei essas cartas com bonomia, (…)
Se te
escrevo hoje, não o escondo, é porque ultimamente muito me têm falado de ti.
Dizem-me que estás diferente, que têm dificuldade em compreender-te, e, o que
mais me preocupa, que terias deixado de sorrir e renunciado talvez ao refúgio
do amor. Imagina, tu que sempre te deixaste guiar pelo coração, tu que
amavas, conhecias e sentias a voz solar da poesia: Paroles
de Jacques Prévert, lembro-me bem, Rappelle-toi
Barbara / Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là / Et tu marchais
souriante / Épanouie ravie ruisselante / Sous la pluie.
Não sei o
que se terá passado contigo, mas a acreditar no que me dizem acho que o caso é
sério e merece uma palavra minha. Por vezes, Minha Amiga, as coisas acontecem
de forma diferente da que esperamos. Nem tudo é como parece, nem todos os
sentimentos se desenvolvem como os imaginamos. Sei bem que (…)
quinta-feira, janeiro 24, 2013
quarta-feira, janeiro 16, 2013
terça-feira, janeiro 15, 2013
segunda-feira, janeiro 14, 2013
domingo, janeiro 13, 2013
EROS E SONHO
Ao João, leitor de D. H. Lawrence, que soube
sonhar
o sonho e o contou
Conhecias o flagelo do esquecimento,
a exígua memória
que habita a matéria dos sonhos, e por
isso os escreviasnum caderno que tinhas à cabeceira da cama. Foi assim
que pudeste falar do corcel do amor, priapo de asas
com que penetravas as húmidas cavernas da satisfação.
Deixavas-te levar na sela múltipla do seu dorso e sobrevoavas
planícies brancas que só existem na inocência
dos bons. Depois, ao rumor da noite, vias ondular o quimono
de seda duma gueixa, havia uma vibração de línguas
desafiando os equinócios da indiferença.
O poder iniciático cingia-te a fronte de miosótis,
caía no bosque do teu corpo a chuva agra e doce
do contentamento. Seguravas um livro, assim
como quem repousa a mão sobre um seio de mulher.
JOSÉ RAFAEL
quinta-feira, janeiro 10, 2013
quarta-feira, janeiro 09, 2013
FMI, QUATRO MIL MILHÕES
Até nem desgosto
da senhora. Mesmo vivendo no meio de bárbaros, consegue não perder o charme
parisiense tão presente em figuras públicas como Segolène Royal e Valérie
Trierweiler. Neste particular, nada que se compare às cansativas Sarah Palin ou
Hillary Clinton dos rebarbativos States.
Se outra razão não houvesse para a minha afeição, bastava o cuidado que põe no acordo
social em torno do célebre corte dos quatro mil milhões. Bem haja. Uma mulher
muito inteligente! E sensual, ainda.
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Álvaro de Campos, "Ode Marítima"
terça-feira, janeiro 08, 2013
HISTÓRIAS VERÍDICAS DE JOÃO ALBERGARIA - O Meu Caso com M.
– Mas se ele não serviu para as outras, como
pode servir para mim?
Os olhos dela, onde havia uma sombra
de verde, viravam-se para a luz do dia que entrava pela porta do restaurante.
Era o momento em que a conta chegava à mesa a anunciar o fim da conversa. Mais
uns minutos e voltaríamos ao escritório, duas ruas acima, a cumprir o período
de trabalho da tarde.
Não conseguia compreender o que é que
ela esperava de mim em cada um daqueles almoços de que tentava excluir, quase
sempre com êxito, os demais colegas. O técnico de contas, um homem de corpo volumoso
e personalidade miudinha, colava-se algumas vezes à nossa mesa, e a conversa
derivava, soturna, para coisas importantes e estranhamente sérias: obrigações
tributárias, reembolsos de IVA , taxas de importação de países terceiros e respectivas
imposições fiscais. Mas M., assim devo chamar-lhe, tinha artes de o afastar nos
dias seguintes: alegava outro horário de almoço e o homem conformava-se a repor
sozinho, numa mesa triste, o nível necessário da sua força de trabalho.
Nem sei dizer se M. chegava a ser
bela. Eu deixava-me arrastar pela serenidade sobressaltada do seu corpo, como
se não fosse uns vinte anos mais velho do que ela e ainda tivesse veleidades de
impressionar as mulheres com a minha conversa e o meu aspecto físico. Foi justamente
por essa altura que comecei a reparar nas minhas fotografias e a ver nelas,
talvez porque fixassem o instante fugidio e revelador, aquilo que o espelho se
negava a dizer-me: que estava irremediavelmente acabado, gasto como uma pedra
rolada. Além do mais vivia desiludido do
amor, como se fosse possível desiludirmo-nos de algo por que nunca
verdadeiramente passámos.
M. revelava-se em cada almoço mais confiante
e afectuosa. Contava-me coisas íntimas e surpreendentes que não ouso aqui
delatar, fazia-me queixas:
– Chegou a casa às quatro da manhã. E eu vou
aguentar isto?
Eu conhecia o homem, era cliente do
escritório, um marialva bem apessoado que demolia corações femininos e gozava à
tripa-forra as carnalidades vagabundas. A sua relação com M., de que resultara
um filho, fora precedida de dois casamentos fugazes. Dizia-se que foram as
mulheres que lhe puseram as malas à porta de casa, se é que não lhe chegaram a
pôr algo mais, mas fora dela. Se ele não serviu para as outras, como poderia
servir para M.? E dava comigo a espantar-me com a sabedoria daquela mulher que
numa simples interrogativa conseguia condensar todo o desafecto duma relação
conjugal, saindo da penumbra da incompreensão e vendo claro as ínfimas mas
reveladoras modulações do seu caso amoroso.
M. pretendia que eu lhe falasse de
mim. Mas que tinha eu para dizer que ela não adivinhasse, que narrativa poderia
fazer do meu caso que ultrapassasse em interesse o canto de sereia da sua
epopeia? Calava-me.
O técnico de contas, invejoso da nossa
intimidade, começou a espalhar coisas feias no escritório. Sempre detestei a
inveja dos homens em relação aos casos que envolvem mulheres. Mas havia algum
caso? Aí é que estava a questão.
Então tentei acabar com os almoços
a dois. Convidei colegas que
frequentavam habitualmente outros restaurantes, fiz-me desencontrado, comecei a
sair em serviço a partir do meio da manhã. Evitava-a. Mas um certo dia, M.
esperou-me à saída e chamou-me cobarde. Pisquei os olhos como quem vê, de
súbito, um grande clarão, e no dia seguinte já estava a almoçar com ela. Por
resguardo, mudámos para um restaurante discreto.
Num desses almoços, num momento menos
feliz em que M. me entrava pelos olhos como uma epifania, a minha mão ganhou
movimento próprio, fugiu-me do corpo e do controle da mente, poisando sobre a
sua em cujos dedos ondulavam anéis serpentinos e brilhantes. Foi um momento
mágico. Acho que a mão logo ganhou consciência do perigo em que se metia,
retraindo-se como uma lagarta quando se sente tocada. Porém, coisa espantosa,
já a mão de M. a retinha, aconchegando-a no calor da sua, passando-lhe uma
corrente eléctrica que me golfava sangue nas mais íntimas e secretas cavidades
do meu dispositivo amoroso. Vacilei.
Falei a M. na inconveniência da nossa
aventura. Eu era um homem estruturalmente sério e não tinha sequer
possibilidade de a acompanhar: estava velho e gasto. E foi então que ela se riu
de mim e me acusou das mais inconsequentes efabulações a seu respeito. Disse-me
que tinha o casamento em risco, era certo, mas que estava disposta a lutar por
ele. Que não alimentasse eu ideias, pois que amava o marido e não andava à
procura de novas experiências.
Aceitei o que me dizia. Este caso, ou
pseudocaso, foi o meu canto de cisne. Nunca mais olhei para uma mulher com
aquelas intenções que os homens tantas vezes têm de as tomarem como amantes.
Ainda bem que tudo acabou assim e que voltei à tranquilidade do meu trabalho e
dos meus pensamentos.
M. almoça agora todos os dias com C.,
um jovem estagiário de Contabilidade e Administração, engravatado e magro, mas alegre
e de muito boa figura. Não ouso pensar em nada de reprovável a respeito da amizade
que parece uni-los. Já os tenho visto a saírem, ao fim da tarde, no carro de M.,
algo que acharia estranho se eu não soubesse que moram ambos na mesma zona da
cidade. E ela anda mais feliz, e o seu desempenho profissional é agora
satisfatório, como ainda ontem me confidenciou o técnico de contas.
Deverá ter reequilibrado a sua
relação conjugal. Fico satisfeito. Isso
é fundamental para que qualquer mulher se possa sentir bem.
sábado, janeiro 05, 2013
DE COMO JOAQUIM MESTRE (1955-2009), ESCRITOR E DIRECTOR DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE BEJA, FOI PERSONAGEM DE MÁRIO DE CARVALHO
"Está Emanuel à porta da biblioteca
que, na cidade, é onde todos os caminhos vão dar, e examina com muita atenção
as colunas à entrada, feitas de livros de pedra empilhados, em harmónico
desequilíbrio. (…) Atrasadíssima chegou uma rapariga, (…) Um homem ainda novo,
de cabelo à escovinha e barba de três dias, ia a entrar, com dois pacotes de
papel pardo, que pareciam pesados.
– Doutor Joaquim Mestre! – gritou ela com uma risadinha. – Olhe que me prometeu
uma entrevista…
O homem voltou-se e sorriu, sem parar de subir os degraus:
– Amanhã logo se vê. Amanhã.
E desapareceu, portas vidradas adentro.
– Este há quase um ano que me vem dizendo “amanhã”… Ah, esta vida de
jornalista… – suspirou a rapariga."
(---- MÁRIO DE CARVALHO, Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, 2ª edição,
Caminho, 2003, p. 208.)
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