quinta-feira, outubro 29, 2009

A SURPREENDENTE E SEMPRE PROVEITOSA LEITURA DOS DIÁRIOS


Portalegre, 18 de Maio de 1953

Acabo de acompanhar ao cemitério, e de a fechar no seu caixão, a velha Lúcia, que me serviu durante quinze anos. Era casada, vivia com o marido e os filhos, e vinha todos os dias fazer-me o serviço de casa. Deixou-me há cerca de dois anos, por já não poder trabalhar. Vinha visitar-me de vez em quando, e continuava muito pegada a este casarão. Mulher dos velhos tempos, com um profundo sentido de honestidade, e dignidade na sua pobreza. Como eu lhe dava alguma coisa quando me visitava, acanhava-se de vir só por isso. Algumas vezes fui duro para com ela. Obrigava-a a levantar-se bastante cedo, fosse Verão ou Inverno, para me vir servir o pequeno-almoço à cama. Nos últimos tempos, sobretudo de Inverno, era-lhe isso penoso; e eu sabia-o, mas pouco a poupava. Estimava-a sinceramente, no entanto. Por sua vez, ela era-me profundamente dedicada, tinha-me um grande respeito, e até na morte falou em mim e na minha casa.


JOSÉ RÉGIO, Páginas do Diário Íntimo, Lisboa, IN-CM, 2004, p. 249.

quarta-feira, outubro 28, 2009

UM REFERENDO INJUSTIFICADO

A propósito da aguardada lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aparecem agora certos defensores da família e da moral apregoando a necessidade de submeter a referendo tal matéria legislativa.
Pretendo mostrar que tal não faz sentido. E por várias razões. Vejamos:
1. O casamento é um contrato civil que estabelece direitos e obrigações em relação às pessoas que nele intervêm. A vertente patrimonial, ou seja, o reconhecimento de um conjunto de bens que passam a pertencer ao casal, é aspecto da maior relevância no contexto legal da união civil. Sabemos as garantias que daí derivam, tanto por morte de um cônjuge, como por divórcio. O que demonstra o interesse do legislador em não deixar desprovidos de meios patrimoniais o cônjuge sobrevivo ou os que forem obrigados à separação.
2. O objectivo do casamento não é necessariamente a procriação. Embora ela seja uma sua consequência natural, a verdade é que a razão principal que leva duas pessoas a uma vida em comum é do domínio da afectividade e do companheirismo.
3. Sendo assim, não me escandaliza a união entre pessoas do mesmo sexo. O amor não corre no sentido único do sexo oposto. Ele pode existir entre dois homens ou duas mulheres com a mesma dignidade do amor heterossexual, reclamando a constituição de laços familiares estáveis e duradouros.
4. Prosaicamente é então necessário comprar ou alugar uma casa, adquirir mobília e alfaias domésticas, fazer as despesas de manutenção do lar, afectando-lhes um orçamento para o qual cada um dos membros contribuirá na medida das suas possibilidades.
5. Nesta união de facto não salvaguardada pela lei, o que poderá acontecer por morte de um dos membros do casal ou por separação? Para quem reverterá o património comum? Há garantias de que, no caso de morte, o que resultou dum esforço de ambos (casa, carro, todo um conjunto de bens) não seja herdado ou apropriado por um irmão, um pai, um filho duma união anterior? E no caso de separação, como se fará a partilha dos bens comuns?
6. As indefinições avançadas são de uma injustiça clamorosa. O Estado tem a obrigação de garantir os direitos dos cidadãos, e os cidadãos em união homossexual não podem ter um estatuto de menoridade.
Pelas razões enunciadas não se justifica um referendo. Não estão em causa princípios éticos ou morais, apenas direitos e garantias dos cidadãos. Há que legislar, e basta!
Sabe-se que o que choca muitos dos moralistas que agora levantam a voz é a extensão da figura do casamento à união homossexual, em especial pela apropriação que dela fez a Igreja Católica, ao ponto de a instituir como um dos sacramentos da sua religião.
Sabe-se igualmente que o folclore e a bizarrice dos casamentos heterossexuais tenderá a estender-se a certos casamentos realizados entre pessoas do mesmo sexo. O ridículo, porém, fica com quem o procura. A maioria dos que passarão pelo Registo Civil para oficializar as suas situações não se prestará certamente a cenas de véu e grinalda, ou troca de alianças, ou ostensivos beijos na boca no momento da solenidade. Quem quiser dar espectáculo que o dê. A maioria dos interessados só quererá ver reconhecido um direito fundamental da pessoa humana: o direito à felicidade. Só isso.

sábado, outubro 24, 2009

LE BON USAGE DES MALADIES

Leio no Diário Inédito de Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, 2008, p. 130:

Évora, 21 de Novembro de 1948

Tenho de o dizer. Há um tipo que além do sarampo e adjuntos da infância teve aos treze uma pleurisia, aos dezasseis um duplo foco pulmonar, aos dezassete outro do outro lado, depois uma ladainha de moléstias: (…) e por aí, até que aos trinta e dois lhe tiraram um rim. Pois apesar de o físico estar todo alugado por mazelas, foi ainda possível, aos trinta e três, arranjar uma vagazinha para uma sinusite.
Caramba, esse tipo sou eu!
- Certamente um caso de le bon usage des maladies, nos moldes reflexivos de Blaise Pascal.

quinta-feira, outubro 22, 2009

"O rompimento da fraternidade"


Tudo porque Deus aceitou de bom grado as ofertas de Abel, constituídas por artigos de origem animal, e não demonstrou apreço pelo que lhe oferecia Caim, simples produtos da sua actividade agrícola.

Valorizando o labor da pastorícia e rebaixando o dos trabalhadores da gleba, Deus dividiu os irmãos e os homens. Instalou o ciúme no coração de Caim, fez-se autor moral do crime.

A Bíblia é um livro tão rico, tão rico, que dele pode sair uma literatura inteira. Está lá tudo o que diz respeito ao homem: a miséria e a opulência, o amor e o ódio, a guerra e a paz, as grandes e as pequenas paixões das almas.

Nas margens de tudo isto ficam os padres pregadores em púlpitos arruinados, os inquisidores de fato e gravata, as vozes estrídulas da ortodoxia cega.

Leia-se em Camões:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza.

domingo, outubro 18, 2009

"A PONTE SUBMERSA"

O romance A Ponte Submersa, de Manuel da Silva Ramos, que hoje acabei de ler, remeteu-me para uma realidade que não tinha presente: a submersão, pela barragem da Aguieira, da aldeia de Foz do Dão, situada na confluência do Dão com o Mondego. Casas e ponte lá ficaram sob as águas da albufeira, em drama semelhante aos de Vilarinho das Furnas e Aldeia da Luz.
O livro, porém, é mais do que isto.

sexta-feira, outubro 16, 2009

ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO

Philippe Lejeune
Nos estudos de literatura autobiográfica formula-se por vezes a seguinte questão: o que é mais verdadeiro – a autobiografia ou o romance? Por outras palavras: há mais sinceridade nos escritos referenciais (autobiografias, memórias, diários), em que o autor, em seu nome, conta factos e experiências da sua vida, ou, de outra forma, é nos escritos de ficção (romance, novela, conto) que melhor se revela a intimidade do escritor?
Philippe Lejeune, professor e crítico francês nascido em 1938, pioneiro dos estudos de literatura autobiográfica, desvaloriza a questão. Autobiografia e romance são para ele duas faces da mesma moeda: o que aquela oculta, revela este. Chega assim à noção de espaço autobiográfico, um conjunto de textos referenciais e de ficção através dos quais o autor constrói, articuladamente, uma imagem de si.
Então poderemos talvez dizer que não é a escrita que se alimenta da vida, mas a vida e a personalidade do autor que são criadas pela escrita.

terça-feira, outubro 13, 2009

O HONROSO CARGO

O bairro dos mortos, como era conhecido pela rapaziada da minha rua, ergue-se num chão declivoso com a forma aproximada dum rectângulo. Está limitado a norte pela Rua da Bica do Marquês, a sul pela Travessa da Boa-Hora (a rua da praça), a oriente pela Rua de Dom Vasco, e a ocidente pela Calçada da Ajuda – a tal dos quartéis e dos cavalos a que se refere Baptista-Bastos nas Bicicletas em Setembro. Cavalos e cavaleiros, descendo a calçada, ao domingo, para o render da guarda no Palácio de Belém, recebiam da malta o apodo de capicuas: uma besta, uma sela, uma besta.
Chamávamos-lhe bairro dos mortos pelas placas toponímicas que identificam as ruas, todas respeitantes a militares falecidos em combate ou celebrizados por feitos heróicos que alegremente ignorávamos: Rua Comandante Assis Camilo, Rua Cabo Floriano de Morais, Rua Coronel Pereira da Silva, Rua Soldado António Costa, e outras.
O bairro era uma colecção de prédios monótonos e amarelentos, de fachadas tristes, as janelas entreabertas para o olhar viscoso das vizinhas, as ruas dormentes de alcatrão fendido e irregular. No centro das casas e das vias ficava (fica ainda) a Escola Primária nº 60, fundada, conforme informação lapidar, em 15 de Setembro de 1934, ano dois da famosa ordem constitucional que nos quis obedientes, respeitadores, de brandos costumes e orgulhosamente sós. Lembro-me de ler em Alexandre O’ Neill:
Neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso.
Verifiquei no domingo passado que, afinal, o bairro não mudara muito. Mais automóveis, menos carros eléctricos chiando nos carris da Rua da Bica e da Rua de Dom Vasco, gente mais composta assomando às janelas, agora com persianas de plástico e caixilhos de alumínio, mas, no fundo, o mesmo clima soturno, de fastio, sem um canto de jardim ou uma tira de relva, entrevendo-se apenas, em escassos pontos da sua área, uma nesga da língua azul do rio com o imprevisto dum barco e o arraial de silos nas margens da Palença.
Vem tudo isto por causa de uma carta cuja parte inicial aqui reproduzo:

Conforme poderá verificar pela cópia do alvará de nomeação afixado na Câmara Municipal foi nomeado para o honroso cargo de Escrutinador (secção de voto nº 5) da Assembleia de voto da freguesia de Ajuda que funcionará na Escola Primária nº 60 – R. Coronel Pereira da Silva.

Foi por esta singular convocatória que passei todo o domingo no bairro dos mortos, urdindo evocações poéticas e descarregando prosaicamente os cadernos eleitorais. Às nove da noite ainda contava votos. Fui-me deitar, cansado dos trabalhos do honroso cargo, sem saber quem ganhara e perdera naquele dia de eleições.

segunda-feira, outubro 05, 2009

A VIZINHA

Chegava a casa, ao fim do dia, cansado e triste. Sete horas de trabalho monótono diante do computador, a cabeça pendente sobre o teclado, os olhos doridos dos revérberos do ecrã.
Estacionava o carro num dos rectângulos marcados a tinta branca no chão da praceta, e dirigia-se ao prédio onde morava, uma torre insolentemente disparada aos céus como se quisesse sorver o infinito.
Subia no elevador até ao seu apartamento, o 8º F. Metia a chave na fechadura, dava quatro voltas, e lastimava o estrépito metálico que se soltava dela. Denunciava-o.
Era então que os passos de mulher irrompiam no andar de cima, perseguindo-o por toda a casa.
Jantava, arrumava a loiça. Sentava-se finalmente para ler um livro ou burilar um poema, e os passos que sentira na cozinha abatiam-se sobre a solidão da sua mesa de trabalho.
Abandonava a caneta, deixava-se tomar por uma lassidão que lhe mostrava uma mulher de sapatos de salto alto e pernas cheias, o ventre flácido, os seios desabados sobre o círculo grosso da cintura, o rosto rotundo num grande alarde de fealdade impune.
Ele nascera para cantar o perfume e a beleza do corpo, para viajar nos cabelos das mulheres quando neles se insinua o vento, para amar as tardes de sol e as promessas das manhãs de bruma. Mas esgotava-se nas rotinas dum escritório cinzento, prisioneiro dos sonhos, desassossegado em casa pelo assédio obsceno do andar de cima.
Toda a noite era perseguido pelo tropel selvagem da fealdade. Levantava-se exausto, horrorizado.
Não sabia se alguma vez encontraria o esplendor da beleza. Estava seguro, porém, de que nunca subiria ao 9º F.

O "confiteor" do artista

Natureza, feiticeira impiedosa, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Pára de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris.