segunda-feira, outubro 24, 2011

O "JONGLEUR" DE ESTRELAS E O SEU JOGO

Já me desgostei da poesia de José Régio, chegando mesmo a crer que só no teatro e na ensaística, quiçá em alguma das suas ficções curtas, se manifestava o génio artístico do seu perfil de “contemporâneo capital”, como lhe chamou Eduardo Lourenço. Se é nos Poemas de Deus e do Diabo e em Biografia que melhor me encontro com a sua lírica, há sempre alguns poemas, fora daquelas obras, que não deixam de me entusiasmar. Este é um deles, e adivinhe-se porquê:

O jongleur de estrelas tem os pés de barro,
Tem as mãos de cinza…

Sobre os pés de barro salta no infinito,
Com as mãos de cinza movimenta os astros.

O jongleur de estrelas tem os olhos fixos,
Mas em todo o corpo nervos dinamistas.

Seus nervos dispersos dão um acorde único…
Não! seus olhos fixos é que olham mil pistas.

O jongleur de estrelas é mentira!: mente
Na retina fosca dos que julgam vê-lo.

O jongleur de estrelas não se vê de fora,
Por ser de mais belo!

Ora um dia, o dedo do Senhor, clemente,
Tocar-lhe-á, misericordiamente.

E o jongleur de estrelas há-de desfazer-se
Sobre os pés de barro, sobre as mãos de cinza…

Do jongleur de estrelas restam as estrelas,
E outros brincarão com elas!

JOSÉ RÉGIO, Livro Terceiro de As Encruzilhadas de Deus

terça-feira, outubro 18, 2011

A OLIVEIRA DE SARAMAGO

Fotografia tirada em 15/10/2011

Agora que está aí um romance inédito de Saramago, atrevo-me a dizer que a oliveira centenária sob a qual repousam as suas cinzas está a secar. Ou serei eu que não percebo nada de árvores?

domingo, outubro 16, 2011

O CÃO GREGO

Em Atenas, há poucas semanas

Em Lisboa, ontem


Encontrei-o na Alexandre Herculano, a preparar-se para entrar na manifestação, ainda os indignados não tinham chegado à sede do Partido Socialista e lançado contra a fachada rosa do edifício aquele clamoroso coro de assobiadelas. Vi-o depois, caninamente surpreendido com o pacifismo dos portugueses, junto à casa de D. Amália, em plena descida da Rua de S. Bento. O pessoal ia embalado, gritando palavras de ordem lixadas, dessas que dizem cobras e lagartos de governantes que trabalham esforçadamente para a salvação do país, e o canídeo abanava o rabo de contentamento.
– Mas este é o cão grego das manifestações! – disse uma rapariga morena, por sinal nada má, que ia à minha frente na manifestação, integrada num grupo Free Hugs. Aproveitou para me dar um forte abraço e tive de aceitar a carinhosa demonstração de mais duas jovens, esquivando-me a tais afectos quando se encaminhava para mim, com igual propósito, um rapaz magro e barbado que vestia uma t-shirt com uma gravura do Che Guevara.
Uma senhora da UMAR, já adiantada nos anos, deu uma bolacha ao animal e fez-lhe uma festa na cabeça. O bicho estranhou, como se visse o Partenon erguer-se de súbito em plena Rua de S. Bento. Habituado que estava a cargas policiais e ao gás lacrimogéneo de Atenas, devia custar-lhe a compreender aquelas demonstrações de afecto dos portugueses. E soltou um ladrido rouco, arrastado, gemente de indignação.
Disseram-me depois que tinha sido o primeiro a ultrapassar as barreiras da polícia e a instalar-se na escadaria do edifício do Parlamento. Pelas dez da noite ainda lá estava, segundo o meu informante, ladrando e abanando o rabo a cada medida aprovada pela assembleia popular. Parece que foi afastado pelo cordão policial, não sem que antes tenha lançado o dente à bota de um pobre polícia que acabara de perder os subsídios de Natal e de férias dos próximos anos.
Acham isto extraordinário? Eu não! Há tantos cães sentados nas bancadas do parlamento e nos cadeirões do governo, a lamberem as botas da troika e do seu títere Vítor Gaspar, que a atitude deste rafeiro é a coisa mais verosímil do mundo.
Acabo esta crónica à pressa. Estou de saída para a assembleia popular das 7 horas. Pelo sim, pelo não, vou levar um agasalho: pode ser que fique para a acampada.

sexta-feira, outubro 14, 2011

15 DE OUTUBRO

Lá estarei, até que a madrugada venha. É o exercício do meu direito à utopia!

"VOCÊ SABE LÁ O QUE É A VIDA" - Jerónimo de Sousa para Passos Coelho

A interpelação de Jerónimo de Sousa a Passos Coelho, hoje, no Parlamento, comoveu-me. Acho que só sabe o que é a vida quem anda todos os meses a contar os tostões, a ver se o dinheiro chega para a alimentação, para a escola das crianças, para a renda de casa ou para a amortização do crédito à habitação. Atrevo-me a dizer que eu não sei o que é vida. Passos Coelho, no entanto, diz que sabe, conforme resposta dada ao líder comunista.
Já tivemos vários mentirosos a chefiar o governo. Este é mais um.

sexta-feira, outubro 07, 2011

AS GARÇAS

Por enquanto só os melros, as rolas e os pardais se avistam sobre o espaço verde da praceta. Mas já não falta muito para que as garças apareçam de novo. Brancas e luminosas, com o seu porte belíssimo, atravessam os espaços entre prédios como se voassem nas larguezas da lezíria. Será preciso que chegue Dezembro, ou Janeiro, quando o rio sobe e os campos naturalmente se alagam.
Espero por elas como quem acredita no dia que vem.

quarta-feira, outubro 05, 2011

DISCURSOS


“Há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos.”
– Em 9 de Março de 2011, discurso de tomada de posse para o segundo mandato, na vigência do governo de José Sócrates.

“Estamos todos confrontados com uma situação que exige vários sacrifícios. Provavelmente, os maiores sacrifícios que esta geração teve de fazer.”
– Em 5 de Outubro de 2011, discurso de comemoração da implantação da República, na vigência do governo de Passos Coelho.

terça-feira, outubro 04, 2011

RÉGIO E "OS THIBAULT"

Será que José Régio não leu Os Thibault de Roger Martin du Gard com a profundidade que a obra em princípio reclamaria?
Numa entrada de 13 de Dezembro de 1958 do seu diário, encontramos o seguinte:
Diz-me um rapaz de Lisboa que o José Gomes Ferreira dizia de A Velha Casa: “Mas aquilo é Os Thibault…”.
Se A Velha Casa é ou não Os Thibault vou tentar agora tirar a limpo. Entre ontem e hoje já avancei em cinquenta páginas do primeiro volume, e não me parece obra para se deixar de lado.
Régio, no entanto, diz-nos:
Comecei (…) Les Thibault; e também os pus de parte, sem chegar a concluir o primeiro volume. Li fragmentos do segundo, e desisti. Recomecei este mês, neste ano, a leitura da obra, mas começando pelo volume L´été de 1914. Se puder lerei depois os restantes.
E logo depois:
Enfim, quase tudo me desgosta no pobre do meu Martin du Gard! Não mais escreveria eu uma linha n´ A Velha Casa, se acreditasse (como o Gomes Ferreira e, provavelmente, outros) que a minha obra não é senão uma réplica portuguesa, em menor, daquela penosa construção sem qualquer fagulha de génio…
O nosso escritor bem pode ter-se desgostado desta escrita sem fagulha de génio, mas lá que insistiu na sua leitura, insistiu. Alguma razão deveria ter para tal persistência.