sexta-feira, novembro 30, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 10 )

Quando a luz do sol se extingue muito para lá da aldeia e da grande massa de água que tomou conta das terras, encontro-me quase sempre sentado na varanda da pensão da vila, a uns cinco quilómetros de distância do meu local de trabalho, e, folheando um livro ou percorrendo num caderno as notas que me habituei a tomar, não deixo de pensar na tristeza das gentes que me rodeiam e na falta de sentido das suas vidas. Homens e mulheres bem adiantados na roda dos anos, os olhos gastos de tudo o que viram e deixaram de ver, a memória submersa, arrastando-se pelo traçado rectilíneo da nova aldeia, violentamente limpa, sem encontrarem os caminhos da felicidade.
É esta a massa em que todos os dias afundo as mãos no meu trabalho de psicólogo ao serviço do empreendimento. Estou nestas funções há pouco mais de um ano, desde a altura em que se trasladaram os restos mortais das campas do cemitério e os habitantes da aldeia começaram a mudar-se para as casas novas.
Vi coisas que não vou esquecer tão cedo, como o caso daquele homem que recusou levantar os ossos da mulher. Não se lhe conseguiu arrancar uma palavra de remição, nenhuma fresta se abriu naquela alma por onde se pudesse lobrigar uma mágoa ou um motivo para o insólito procedimento, nenhuma ajuda se lhe conseguiu dar. É por isso que, muitas vezes, descreio daquilo que faço: anos e anos a encher a cabeça de teorias, a afinar conceitos, a idealizar o momento de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos, para, uma vez no terreno, não ser capaz de ajudar quem precisa.
Este homem foi o primeiro que, revoltado com as emissões diárias de propaganda a respeito dos benefícios do empreendimento, resolveu destruir o aparelho de televisão. Outros o seguiram. E, no entanto, bastava não ligarem os televisores ou deixarem de os sintonizar no respectivo canal para evitarem as promessas de progresso e felicidade com que os assediavam: uma nova aldeia com modernos equipamentos para toda a população, água em abundância para rega e produção de energia eléctrica, novas vias de acesso à região, melhor assistência médica. A destruição dos televisores foi alastrando de casa em casa numa espécie de automutilação sucessiva, como se os seus donos fossem incapazes de suportar ao pé de si, ainda que desconectados mas à distância de um distraído clique, aqueles aparelhos de onde poderia jorrar, a qualquer instante, o vómito abominável da falsidade. Acompanhei alguns destes casos. Não resolvi nenhum de forma aceitável.
Vou a caminho dos trinta e dois anos. Parece-me às vezes que sou ainda jovem, outras que já vi e vivi de mais. Não foi fácil chegar onde cheguei. Nunca conheci o meu pai, nunca me foi dito o seu nome, e da minha mãe não guardo mais que a vaga lembrança dos meus cinco anos de idade. Cresci agarrado às saias da minha avó, enquanto viveu. Depois ampararam-me e fui-me amparando. Fiz-me homem antes de tempo.
Um dia dei conta da solidão em mim e da nenhuma vontade em sair dela. Gosto de viver sozinho, nunca pensei em casar.
Agora que estamos no Verão costumo muitas vezes sair à noite. Atravesso a fronteira (outros caminhos, outros lugares) para ir cear aos restaurantes das cidades mais próximas do país vizinho, para tomar uma bebida num bar e, calhando, ter um encontro fugaz com alguém, longe do ambiente fechado da vila e da pensão onde resido, longe do meu local de trabalho, um desses encontros que duram um pedaço da noite e sempre me devolvem, no fim dos seus breves lampejos, à minha irrevogável condição de solitário. Regresso sempre à pensão a tempo de dormir umas horas, de tomar um duche, e às nove da manhã já estou no centro de apoio psicológico do empreendimento a fazer o meu trabalho.
Estas linhas são as primeiras de um diário que agora começo a escrever. Ainda que seja um diário sem datas, condenado a uma periodicidade irregular, ainda que, por isso mesmo, venha a ser tudo menos um diário, será uma forma de gravar os meus sentimentos, de me encontrar comigo, de acertar contas com a vida. Provavelmente falarei mais de aquilo que me rodeia e menos de o que em mim está. Tenho como certo que é pelos outros que passa o caminho para nós, e esta é apenas uma das muitas contradições que ainda não fui capaz de resolver.
D.E.