Em Germinal, durante a greve dos mineiros,
e em As Vinhas da Ira, quando na mira
dos lucros acrescidos da mecanização se dá a expulsão dos rendeiros das suas
terras, as decisões transmitidas pelos agentes dos proprietários são sempre feitas
em nome da companhia, entidade
distante, invisível e incorpórea na qual, como diz uma personagem de Steinbeck,
não há a possibilidade de se dar um tiro. Esta ideia do capital anónimo – um
monstro de muitos braços cuja cabeça não é conhecida – está presente em várias
passagens dos primeiros capítulos de As
Vinhas da Ira. Veja-se a fala de um dos rendeiros obrigado a sair da terra
que era trabalhada pela sua família há duas gerações: « – O tipo que veio
falava com a doçura de um pastel de nata. “Vocês têm de sair. A culpa não é
minha”. “Então”, disse eu, “de quem é a culpa, que eu vou dar cabo do sujeito?”
“É da Companhia Shawnee de Terras e de Gado. Eu apenas recebi ordens.” “Quem é
a Companhia Shawnee de Terras e de Gado?” “Não é ninguém. É uma companhia.”» E
no romance de Zola há algo de semelhante quando a comissão de greve vai
dialogar com o director da mina, Philippe Hennebeau, dizendo-se este um mero
servidor da companhia que lhe paga o salário, não dispondo de poder para satisfazer
as exigências dos mineiros. Entre um e outro romance decorrem cinquenta e cinco
anos, a emergência de uma guerra mundial e a primeira grande crise do
capitalismo moderno. Os principais traços das relações entre patrões e trabalhadores
mantêm-se porém inalterados.
quinta-feira, janeiro 31, 2019
sábado, janeiro 19, 2019
sexta-feira, janeiro 18, 2019
LIVRO DE AUTOR e LIVRO DE MERCADO
I
«(...) hoje, século XXI, reflexo de uma sociedade anémica, apática e individualista, pragmática e tecnocrática, a militância literária desapareceu. As tertúlias semanais e os grupos literários unidos por uma ideia estética central desapareceu.»
II
«A entrada do livro nos hipermercados e a instalação da FNAC em Portugal, fenómenos da década de 90, operaram uma verdadeira democratização do livro, de timbre positivo, acompanhado de uma desintelectualização do mesmo, factual, acontecida com o determinismo de uma realidade histórica, nem positiva nem negativa, distinguindo de um modo definitivo livro de autor de livro de mercado.»
III
(...) em janeiro de 2009, efetuando o balanço literário do ano anterior para o Jornal de Letras, tivemos oportunidade de escrever que, dos cerca de 50 romances publicados entre setembro e dezembro, 40 seriam para ler uns capítulos, rasgar e deitar fora e 10 para ler e guardar na estante.
IV
«(...) o romance de mercado destina-se a ser usado (a expressão é esta: "usado", não usufruído) pelo leitor como cócegas para a alma, extraindo dele, sobretudo, não uma função estética (primeiro, último e eminente objectivo do romance como arte), mas uma função consolatória, identificando os retratos das personagens com os dos seus vizinhos, os antigos colegas da escola, os colegas de escritório, de armazém, de fábrica, contabilizando o bem e o mal que a vida lhes trouxe com a sua pessoal quantidade de bem ou mal social que individualmente ganhou ou perdeu.»
V
«Provindas de três diferentes gerações, Rita Ferro, Rosa Lobato Faria e Margarida Rebelo Pinto despontaram na literatura dispensando todas as putativas convenções de uma história de 200 anos , publicando como obra feita o que tradicionalmente se designaria por texto bruto, gramaticalmente correcto, mas em estado de imperfeição estética.»
VI
«Nos textos destas três autoras habita o atual desespero íntimo português que nasce da ambição e do desejo de se ter e de se ser mais do que se tem ou se é e da suspeita de que, por mais que se tente, nunca se será reconhecido pelos outros como imaginamos que devíamos ser, isto é, os seus romances retratam em perfeição a plena ambiguidade da imagem de Portugal face à Europa rica como "bom aluno", aplicado, mas pobre, que, para passar por rico, precisa de esconder o algodão e ostentar a camisa de seda.»
--- MIGUEL REAL, O Romance Português Contemporâneo 1950-2010, Editorial Caminho, 2012.
quinta-feira, janeiro 17, 2019
quarta-feira, janeiro 16, 2019
432-202
Sempre que
vejo imagens do parlamento britânico, admiro aqueles bancos corridos, com
estofos de um verde esmeralda, onde se sentam com abnegação os rígidos lawmakers da mais velha democracia do
mundo. Não há computadores nem telefones, não há mesas (salvo as que estão ao
centro da sala), e as notas tomam-nas os parlamentares sobre os joelhos em
simples blocos ou folhas soltas. Computadores, telefones e mesas para escrever
são luxos de parlamentos como o português onde, extraordinariamente, os
deputados não são info-excluídos e sabem proteger a boca com a mão quando comunicam
por telefone os seus estados de alma. Em Westminster, a navegação na Internet, as
folhas excel e os demais programas e programinhas ficam para os amanuenses de
serviço; os parlamentares entregam-se à arte nobre da oratória e, imagino,
marcam as presenças manualmente, assinando em livro de ponto, sem necessitarem
de passwords que acabam sempre por ser conhecidas, potenciando sortilégios de ubiquidade
e outros fenómenos raros.
Gostei do score e fico à espera dos próximos capítulos.
E que dizer de John Bercow, o espectacular speaker?
domingo, janeiro 13, 2019
sexta-feira, janeiro 11, 2019
DA UTILIDADE DA POESIA E DA OBRA DE ARTE EM GERAL
RUY BELO (1933-1978), desenho obtido no sítio Correio do Porto
Ruy Belo, no
“Breve Programa para Uma Iniciação ao Canto” que antecede Transporte no Tempo (1973), diz isto: «Ao escrever, e
independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de
que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um
dia nasci para nela morrer um dia para sempre.» Uma vaga consciência, diz o poeta, o que só poderá ser entendido como
uma manifestação de humildade. Lemos num dos poemas de Transporte no Tempo: «Odeio este tempo detergente / um tempo
português que até utilizou / os
primeiros acordes da quinta sinfonia de beethoven / como indicativo da voz do
ocidente». Alguns dos poetas que defenderam “a arte pela arte”, fizeram-no pela
pureza e autonomia dessa mesma arte, não duvidando do poder, que lhe é
inerente, de transformar os homens e as sociedades. A arte pode e deve falar de
tudo, só não é admissível que seja instrumentalizada ao serviço de políticas,
religiões e credos em geral. «A arte é, não serve», disse o presencista Adolfo
Casais-Monteiro, não andando longe de Mário Dionísio quando proferiu, em 1958,
na conferência Conflito e Unidade da Arte
Contemporânea, as seguintes palavras: «A grande lição é esta: não se pode resolver criar uma nova arte. Nem
planificar um sonho sem o caricaturar. Querer racionalizar a criação artística
é impedi-la. É querer ordenar o inordenável, prever o imprevisível, fazer florir
por métodos exteriores, planificações, artifícios, o que só vive de imprevisto,
de surpresa, de inviolável liberdade.» E aqui está até onde nos leva Ruy Belo.
Dêmos-lhes então a palavra quando, no mesmo texto, fala do poeta: «Falo do
homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada
ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o
silêncio que há no vento, no mar, nos campos.»
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