sexta-feira, janeiro 18, 2019

LIVRO DE AUTOR e LIVRO DE MERCADO

I
«(...) hoje, século XXI, reflexo de uma sociedade anémica, apática e individualista, pragmática e tecnocrática, a militância literária desapareceu. As tertúlias semanais e os grupos literários unidos por uma ideia estética central desapareceu.»
II
«A entrada do livro nos hipermercados e a instalação da FNAC em Portugal, fenómenos da década de 90, operaram uma verdadeira democratização do livro, de timbre positivo, acompanhado de uma desintelectualização do mesmo, factual, acontecida com o determinismo de uma realidade histórica, nem positiva nem negativa, distinguindo de um modo definitivo livro de autor de livro de mercado.»
III
(...) em janeiro de 2009, efetuando o balanço literário do ano anterior para o Jornal de Letras, tivemos oportunidade de escrever que, dos cerca de 50 romances publicados entre setembro e dezembro, 40 seriam para ler uns capítulos, rasgar e deitar fora e 10 para ler e guardar na estante.
IV
«(...) o romance de mercado destina-se a ser usado (a expressão é esta: "usado", não usufruído) pelo leitor como cócegas para a alma, extraindo dele, sobretudo, não uma função estética (primeiro, último e eminente objectivo do romance como arte), mas uma função consolatória, identificando os retratos das personagens com os dos seus vizinhos, os antigos colegas da escola, os colegas de escritório, de armazém, de fábrica, contabilizando o bem e o mal que a vida lhes trouxe com a sua pessoal quantidade de bem ou mal social que individualmente ganhou ou perdeu.» 
V
«Provindas de três diferentes gerações, Rita Ferro, Rosa Lobato Faria e Margarida Rebelo Pinto despontaram na literatura dispensando todas as putativas convenções de uma história de 200 anos , publicando como obra feita o que tradicionalmente se designaria por texto bruto, gramaticalmente correcto, mas em estado de imperfeição estética.»
VI
«Nos textos destas três autoras habita o atual desespero íntimo português que nasce da ambição e do desejo de se ter e de se ser mais do que se tem ou se é e da suspeita de que, por mais que se tente, nunca se será reconhecido pelos outros como imaginamos que devíamos ser, isto é, os seus romances retratam em perfeição a plena ambiguidade da imagem de Portugal face à Europa rica como "bom aluno", aplicado, mas pobre, que, para passar por rico, precisa de esconder o algodão e ostentar a camisa de seda.»
--- MIGUEL REAL, O Romance Português Contemporâneo 1950-2010, Editorial Caminho, 2012.

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