segunda-feira, dezembro 26, 2005

A HISTÓRIA DE JOSÉ

Diz-se que foi o Anjo do Senhor que lhe apareceu em sonho, ordenando-lhe a fuga para o Egipto - facto extraordinário ou mera manifestação do inconsciente, nunca saberemos ao certo. Sabe-se sim, por um conhecido autor, que José trabalhava como carpinteiro nas obras do Templo de Jerusalém, serrando barrotes e aplainando tábuas, empunhando as ferramentas do mester com a destreza própria de operário qualificado.

Era a hora do meio-dia e tinha acabado de deglutir o frugal farnel que lhe permitiria repor os níveis mínimos da sua força de trabalho. Uma ligeira modorra tomou-lhe conta do corpo e da mente, terá dormido por breves instantes, mas aquilo que ouviu em seguida foi quando já estava absolutamente desperto, que nem poderia ser de outra forma, uma vez que na falta de sindicato ou comissão de trabalhadores que olhasse pelos direitos do operariado, a pausa para almoço estava reduzida ao tempo estritamente necessário à apressada ingestão dos alimentos, não sobrando para sestas, por muito breves que elas fossem. O que José ouviu foi algo que o sobressaltou profundamente.

Naquele tempo reinava na Judeia o cruel Herodes, um títere do Império Romano que era odiado pelo seu povo e por toda a gente de bem. Herodes era um doente terminal, desses que estão mais para a banda de lá do que para o lado da vida, e isso fazia-o ainda mais perverso e agarrado ao poder, como se bastasse a sua vontade para se perpetuar como rei e senhor. Convenceu-se de que em Belém, cidade que ficava no caminho para Hebron, tinha nascido um menino que as profecias diziam ser o novo rei dos Judeus. Havia indícios preocupantes do nascimento recente desse novo líder: uns magos que tinham vindo do Oriente, talvez das terras férteis da Mesopotâmia, a reboque de uma enigmática estrela; o desassossego de pastores e campónios que meteram pés a caminho para o adorar, e gentes anónimas que eram portadoras de estranhas notícias e indesejados presságios.

Voltemos ao que José ouviu. Nos muros do Templo de Jerusalém, que Herodes mandara reconstruir - talvez por isso lhe tenham dado o cognome de “o Grande” - conversavam três soldados sobre a operação que lhes tinha sido determinada para essa noite: cercar toda a cidade de Belém, entrar nas casas, nem era preciso mandado de busca, e tomar os meninos de idade inferior a três anos, matando-os como frangos, por degola. Não compreendiam os soldados os motivos de tão rara operação, se era determinação do reino da Judeia ou ordem imperial que tivesse chegado da longínqua Roma, mas uma ou outra proveniência pouco lhes interessava, porque o que releva das ordens castrenses é o seu cabal cumprimento e nunca a discussão sobre de qual ou quais instâncias elas procedem. Assim agia Herodes para defender a putrefacção do seu mísero trono: a matança dos inocentes.

Tinha José, com Maria sua esposa, um filho varão de tenra idade, de nome Jesus, que vivia com a progenitora em Belém. José exercia o seu mester de carpinteiro em Jerusalém, como já se disse, obrigado a viver separado da família pelas funções de pai alimentador, pois já naquele tempo era grande o flagelo do desemprego, sendo necessário ir procurar trabalho longe do local de residência. Imagine o leitor, especialmente se é pai, como ficou José ao ouvir a conversa dos incautos militares. Receando pela vida do filho, tomou de imediato o caminho de Belém, nem apresentou o pedido de demissão ao seu superior hierárquico, perdendo a féria da semana que bem falta lhe fazia, e foi juntar-se à família. E tomaram os três o caminho do Egipto, que a crer pelo que se conta devia ser terra de liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, lugar de acolhimento de refugiados e perseguidos das tiranias.

(Situações dramáticas como esta já ocorreram em muitos lugares. Atente-se no exemplo de Portugal, país que também já teve ao longo dos séculos os seus Herodes, embora com nomes distintos, o que levou muitas famílias a fugir para outros Egiptos em busca de liberdade, embora esses Egiptos se chamassem França, Itália, Inglaterra. Mas isto é um pequeno aparte, que não nos deve fazer perder o fio condutor da nossa história. Por isso mesmo é que está entre parêntesis.)

Continuemos pois com a história do carpinteiro José, da sua dedicada esposa Maria e do menino Jesus, cujo nascimento abalou o mórbido Herodes e o levou a praticar os actos execrandos que nunca lograrão apagar-se da memória dos homens. O tal Anjo do Senhor, revelação em sonho ou simples manifestação freudiana do inconsciente, terá dito a José: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto! Fica lá até que te avise. Porque Herodes vai procurar o Menino para O matar.” Ou terá sido José que ouviu a conversa dos soldados e vai dar no mesmo. E aí temos a família a salto pelos carreiros do Sinai, a mãe e o menino cavalgando a jumenta, José à arreata, os pés causticados pelas areias do deserto. Enquanto em Belém foi aquela sangueira de que nos falam os testemunhos escritos, Raquel e outras mães chorando os seus filhos, os pobres inocentes degolados pela tropa. Mas o menino Jesus tinha sido salvo.

Não se pergunte, que não saberemos responder, o que terá feito a família durante os dias amargos do exílio. Talvez José tivesse encontrado trabalho em alguma pequena oficina, em algum modesto estaleiro, que as grandes obras públicas como as pirâmides de Gizé, a Esfinge, os sistemas de drenagem de águas e de irrigação há muito que tinham sido concluídas naquele país. O trabalho não era tão abundante como no tempo de Moisés, em que por maior que fosse a caterva de hebreus sempre havia ocupação para mais um. Imagine-se o prejuízo causado à economia egípcia pelo Êxodo… E talvez Maria tivesse arranjado um lugar de empregada doméstica, limpando o pó dos móveis, cozinhando, cuidando de algum idoso, embora seja difícil admitir que conseguisse conciliar a profissão de serviçal com a cria do menino, sempre carente dos cuidados maternais, as mamadas, a muda das fraldas. Talvez tivesse encontrado um bom patrão que lhe permitia levar a criança para o local de trabalho… O que se conta, veja-se Mateus, versículo 2-19, é que tendo morrido Herodes apareceu de novo em sonho a José o Anjo do Senhor. E disse-lhe: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e volta para a terra de Israel, pois já estão mortos aqueles que procuravam matar o Menino”. Mas pode também ter acontecido que entre a comunidade emigrada de judeus a notícia da morte de tão grande senhor se tenha espalhado de forma natural. Afinal o Egipto não estava assim tão distante da Palestina, e mesmo naquele tempo as notícias corriam céleres.

E assim temos José e a família retornando à terra pátria. Só que, por morte de Herodes foi o seu reino retalhado pelos três filhos. Herodes Filipe ficou com as terras a leste da Galileia, a Traconítide e a Decápole; Herodes Ântipas herdou a Galileia e a Pereia; enquanto o cruel Arquelau, tão cruel que o Imperador Augusto se viu na obrigação de o banir, recebeu os teritórios da Judeia, Samaria e Idumeia. Por precaução, não fosse Arquelau dar continuidade à perseguição movida pelo pai, não voltou a família à Judeia, tendo-se fixado na Galileia, em Nazaré, nas proximidades do lago Tiberíades.

(Veja-se ainda aqui o caso de Portugal. Muitas vezes ao longo da História houve neste país homens que seguiram o caminho do exílio. Garrett, por exemplo, fugiu dos absolutistas, sujeitando-se a viver em Inglaterra e em França, mas regressou com o exército liberal que desembarcou no Mindelo; Alegre, outro poeta, andou homiziado por Argel e outras esquinas do mundo, tendo retornado após a revolução democrática; o Manuel João, operário da CUF que ninguém conhece, safou-se para a Alemanha quando a PIDE lhe apertava o cerco, mas voltou em 27 de Abril. Uns regressaram de avião, como o Álvaro, outros de comboio ronceiro, como o Mário, que naquele tempo ainda nem se falava de TGV. O Manuel João, que ninguém conhece, veio de automóvel, num velho OPEL. Saiu de Colónia no dia 25 à noite, por isso só chegou a 27, quando a festa ia já adiantada. Serve este excurso para dizer que os exilados tendem sempre a voltar à terra que os viu nascer. Abandonam tudo no momento certo, quando ouvem a voz do Anjo do Senhor ou quando é a sua própria voz que os chama. Aconteceu com José e a sua família, aconteceu por todo o lado com todos os que tiveram de fugir dos pequenos e grandes Herodes do nosso mundo. Mas tudo isto, se calhar, são notas sem importância para a nossa história, digressões parentéticas não essenciais, coisas que vêm à cabeça do escrevente desejoso de preencher páginas. Vamos mas é fechar o parêntesis.)

Não há muito mais a dizer sobre a história de José. Em breve morreria, amargurado por não ter podido salvar os outros meninos, ele que sabia, não pelo Anjo do Senhor que lhe sonegou a informação, mas por ter escutado a conversa dos militares, que se ia dar em Belém uma matança de inocentes. O Anjo do senhor procedeu mal, até os anjos se enganam, a não ser que não tivesse sido informado pelos seus superiores hierárquicos da monstruosidade que se preparava. Se estivesse ao corrente, se calhar teria ido avisar também os outros pais, evitando dessa forma tamanha tragédia. Mas parece que a sobrevivência de Jesus era mais importante do que a dos outros meninos de Belém.

A partir de aqui o protagonista da história é o próprio Jesus, rei dos Judeus sem ceptro e coroa, que tanto pavor causou a Herodes e aos tiranos do seu tempo. Esse condutor de homens, desinquietador de consciências, militante ousado das causas da liberdade, filósofo da paz, deixou marcas na memória das gentes.

É por tudo isto, também pela razão de opressores e oprimidos não terem ainda desaparecido da face da Terra, que apetece gritar:

VIVA JESUS!

ABAIXO OS HERODES DO MUNDO!


D.E.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

HOMENAGEM AO GRANDE POETA MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE 15/09/1765 - 21/12/1805 NOS DUZENTOS ANOS DA SUA MORTE

...

Escuta o coração, Marília bela,
Escuta o coração, que te não mente.
Mil vezes te dirá: '' Se a rigorosa,
Carrancuda expressão de um pai severo,
Te não deixa chegar ao caro amante
Pelo perpétuo nó, que chamam sacro,
Que o bonzo enganador teceu na ideia
Para também no amor dar leis ao mundo;
Se obter não podes a união solene,
Que alucina os mortais, porque te esquivas
Da natural prisão, do terno laço
Que com lágrimas e ais te estou pedindo?
Reclama o teu poder, os teus direitos,
Da justiça despótica extorquidos;
Não chega aos corações o jus paterno,
Se a chama da ternura os afogueia;
De amor há precisão, há liberdade.
Eia, pois, do temor sacode o jugo,
Acanhada donzela; e do teu pejo,
Destra iludindo as vigilantes guardas,
Pelas sombras da noite, a amor propícias,
Demanda os braços do ansioso Elmano,
Ao risonho prazer franqueia os lares.
Consista o laço na união das almas;
Do ditoso himeneu as venerandas,
Caladas trevas testemunhas sejam;
Seja ministro o amor e a terra templo,
Pois que o templo do Eterno é toda a terra.
Entrega-te depois aos teus transportes,
Os opressos desejos desafoga,
Mata o pejo importuno; incita, incita
O que só de prazer merece o nome.''

( Excerto do poema ''Epístola a Marília´´
também conhecido pelo verso inicial ´´Pavorosa ilusão da Eternidade´´)


II.mo e rev.mo sr. bispo inquisidor geral. - Constando-me que n´esta côrte e reino giravam alguns papeis impios e sediciosos, mandei averiguar quem seriam os auctores d´elles, e encontrei que de uma parte dos mesmos era o seu auctor Manuel Maria de Barbosa du Bocage, o qual vivia em casa de um cadete do regimento da primeira armada, André da Ponte, que é natural da ilha Terceira: mandei proceder contra um e outro e á apprehensão nos seus papeis, e não se achando o sobredito Manuel Maria, se encontrou sómente o André da Ponte, que foi preso e apprehendidos os papeis, entre os quais se achou um infame, impio e sedicioso, que se intitula ''Verdades duras'', e principia:

''Pavorosa illusão da eternidade''

e acaba por

''Opprimir seus iguais com o ferreo jugo''

como consta do auto da àchada, que acompanha a conta que me deu o juiz do crime do bairro Andaluz, a quem eu havia encarregado esta diligencia. Do mesmo auto verá v. exª os mais papeis e livros, impios e sediciosos, que se apprehenderam ao dito André da Ponte, os quaes remetto inclusos com a devassa a que mandei proceder para averiguação da verdade, e as perguntas que se fizeram aos ditos Manuel Maria de Barbosa du Bocage, que passados alguns dias também foi preso a bordo de uma embarcação em que hoje ia fugido no comboio para a Bahia, e André da Ponte do Quintal da Camara. Remetto também a declaração que me fez da cadeia o dito Manuel Maria de Barbosa du Bocage, para que esse santo tribunal lhe dê o peso que merecer. V. exª me insinuará o mais que quer que eu faça sobre estes dois réus, os quaes conservo na prisão, esperando a restituição d´estes papeis, logoque forem examinados por esse santo tribunal pela parte que lhe toca. Deus guarde a v. exª. Lisboa, em 7 de novembro de 1797.= DIOGO IGNACIO DE PINA MANIQUE.

(Extraído de Simão José da Luz Soariano,
''História da Guerra Civil e do estabelecimento do Regime Parlamentar em Portugal'',
Lisboa, Imprensa Nacional, 1879)

terça-feira, dezembro 20, 2005

A PALAVRA MÁGICA




Ia para três meses que só se lhe deparavam contrariedades, factos insólitos, perturbantes ocorrências que o deixavam angustiado e cada vez mais carente da sua dose diária de ansiolíticos.

Começara por adormecer ao volante, na auto-estrada, entregando a delicada chapa do carro à massa bruta dos railes, o corpo dorido e os nervos em alta, uma passagem obrigatória pela urgência hospitalar. Ainda mal refeito deste acidente, foi notificado para comparecer na repartição de finanças a fim de ser inquirido sobre a sua declaração anual de rendimentos, um complexo de rendas prediais faltosas, direitos de autor sonegados, excêntricas deduções à colecta e reveis pagamentos por conta. Depois, como não conseguia acrescentar uma linha à obra que tinha entre mãos, um romance filosófico sobre a angústia do Homem perante a morte, recebeu uma carta dos editores denunciando o contrato-promessa de edição com as correspondentes penalizações. Foi então que apanhou um avião para Londres para passar um fim-de-semana com a namorada, que fazia um doutoramento em Finanças na Universidade de York, mas encontrou-a apaixonada por um professor americano de Política Internacional que era um fervoroso prosélito de George Bush e escrevia nos jornais sobre o perigo das armas de destruição maciça nos países do eixo do mal. Regressado a casa da forma que se pode imaginar, tinha à sua espera a notícia da fixação, pelo tribunal, da pensão de alimentos que era devida ao agregado familiar do primeiro casamento. Mas o pior ainda estava para acontecer: assediado sexualmente pela empregada, uma ucraniana de sangue quente que fazia três horas diárias de serviço doméstico, não resistiu às investidas eslavas e quando menos esperava estava a contas com a máfia russa, da qual era membro destacado o marido da voluptuosa serviçal.

Foi então que se deu a leituras para se distrair ou granjear inspiração, mas não logrou passar da página cinquenta e quatro de As Intermitências da Morte, precisamente daquele ponto em que entra em cena a máphia, assim mesmo com ph, pelas desagradáveis sensações que tal palavra lhe suscitava. Ainda procurou na livraria os aerogramas do Lobo Antunes, obra que lhe parecia de leitura amena, mas como se havia esgotado o estoque e estava atrasado o envio de nova remessa, entregou-se aos escritos de Rui Zink num livro de bela capa que repousava, havia alguns meses, num lugar aprazível da estante.

Começou por ler o poema de Carlos Drummond de Andrade que serve de epígrafe, e meteu-se em seguida pelo bosque das palavras, árvore após árvore, à descoberta da palavra mágica. Acredite-se ou não, há em todos os livros uma palavra mágica, uma espécie de brinde, jóia pura que premeia o leitor arguto e descobridor. É assim como o Raio Verde do pôr-do-sol de Júlio Verne, a última luz que o astro exala antes de se meter no mar, e que recompensa o observador mais persistente, o que de forma mais apaixonada o procurou. O livro chama-se justamente A Palavra Mágica, uma festa de magias e de lugares de assombro. Com tanta infelicidade que nos últimos tempos lhe fazia o molde dos dias, a dolorida expressão das horas e dos minutos, nem queria acreditar no que tinha nas mãos, na sorte que finalmente se tinha acercado de si nas palavras felizes daqueles contos. A palavra mágica havia de estar por ali, era só encontrá-la e mudar o curso da vida.

Como andava às voltas com as filosofias da vida e da morte, deteve-se com especial atenção no conto intitulado Pavilhão do Futuro, lugar que, numa inominada expo, todos acabamos por visitar, mesmo que tenhamos de esperar tempos longos em longas filas, mesmo sabendo que uma vez aí entrados nunca de lá sairemos para conhecer outros pavilhões. Bem podemos ter bilhete válido para o tempo completo do certame, livre-trânsito para irmos a todo o lado, que o Pavilhão do Futuro é sempre a nossa derradeira visita. E quanto mais se adentrava no texto e fazia por o interpretar, mais se convencia de que a palavra mágica teria de morar nas linhas daquele conto. Não acreditava que ela fosse a que o autor especiosamente indicava no final do livro, pois é sabido que neste particular os escritores procuram sempre despistar os seus leitores, dando-lhes dúbios sinais, tornando assim mais difícil, mas também mais gratificante, a descoberta da verdadeira palavra mágica.

Viveu feliz a aventurosa demanda. Se encontrou ou não o que procurava é questão que só poderá ser respondida pelos desenvolvimentos subsequentes da sua vida: - Parece que se reconciliou com os editores, a quem entregou a versão final da obra contratada. E a doutoranda de York, refeita do arrebatamento de que padeceu, retornou doutorada ao seu primitivo amor. É verdade que a antiga mulher, confortada com o império das decisões judiciais, nunca deixou de exigir, nas datas combinadas, as prestações pecuniárias atribuídas por lei, e que, para obviar a um processo judicial com uma muito provável acção de penhora, se viu obrigado a negociar com o chefe da repartição de finanças um plano de pagamento da sua dívida fiscal. Mas a máfia deixou de o apoquentar, devido à oportuna detenção do cioso marido da empregada doméstica. E esta, grata pela prodigalidade dos afectos patronais, que nem a obsessão criminal lograra diminuir, prosseguiu com zelo no desempenho das suas funções, nunca se queixando ou sequer reclamando aumento de salário, apesar do acréscimo de trabalho que passara a ter com a chegada da patroa.
E tudo isto, muito provavelmente, por obra e graça da palavra mágica.


D.E.

terça-feira, dezembro 06, 2005

ALFARROBEIRA

Não se percebia bem o que se passava com elas. Se havia defeito, desvio, vício ou perturbação que de forma isolada ou por efeito conjugado sustentassem tão singular comportamento: levavam as tardes metidas na biblioteca, chupando o pó dos livros, gastando a luz dos olhos, enquanto os colegas frequentavam a praia ou se divertiam na amenidade das salas de cinema climatizadas. Apaixonadas pelas leituras da História, tinham começado por dissecar os cartapácios do Serrão, os calhamaços do Mattoso, até se baterem com a escrita arrevesada dos cronistas, desejosas das fontes e das notícias em primeira mão. Absorvia-as a Chronica de El-Rey D. Affonso V, de Rui de Pina, que liam numa edição antiga, fascinadas pela figura do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra.

Caras de anjo em corpos apetitosos de mulher. E no entanto, não se lhes conheciam namorados, amigos, homens com quem saíssem ou convivessem. Viviam fechadas sobre si, como numa ilha, entregues aos estudos. Os colegas machos que assim as viam embrenhadas em tão aturado labor, acostumados a pisar o terreno mole da brincadeira, tiravam-lhes as medidas e despiam-nas com os olhos, que mais não conseguiam, descorçoados com tamanho desperdício. E como estavam numa faculdade de letras e num curso de estudos clássicos, houve até quem viesse dizer, mais por despeito que por convicção, que havia segredos de Safo na ilha de Lesbos daquelas meninas. Mas não entremos por aí.

Para além das leituras, gostavam de trabalhar no terreno, de visitar os locais onde se tinham dado os grandes acontecimentos históricos. Procuravam os marcos do tempo, respiravam os ares impregnados de memória. É verdade que sempre se sente algo de indizível, uma recepção de singulares energias, quando se está fisicamente presente nesses lugares marcados pela memória dos homens. É verdade que a História tem essa dimensão de sonho e de paixão. Mesmo assim, não era compreensível que duas belas raparigas, em pleno viço, não puxassem um pouco para o lado animal do corpo e tanto se deixassem prender pela vertente etérea do espírito. Mas por mais interrogações que o seu comportamento suscitasse, de uma coisa não havia dúvidas: é que tinham ficado muito mais estranhas, mais fechadas, passando ainda mais tempo na biblioteca, desde aquele dia em que rumaram a Alverca em demanda do local da Batalha de Alfarrobeira.

Diziam uns, que algo de grave se teria passado nessa deslocação: assalto, ameaça, roubo, tentativa de violação. Para quem vivia em Telheiras, Alverca afigurava-se um perigoso bairro suburbano. Diziam outros, que não. Que tudo era devido à proximidade dos exames: perfeccionistas como eram, andavam obcecadas com o estudo das matérias. Foi a professora de Civilizações Clássicas, com quem alguns alunos comentaram o desvario comportamental das colegas, que esclareceu: para além da História, tinham começado a dedicar-se à leitura de tratados de numerologia e escritos esotéricos. Ela mesma, que estava a preparar uma tese de doutoramento sobre a filosofia de Pitágoras, lhes tinha dado, a seu pedido, orientação bibliográfica nessas áreas. No entanto, não soube explicar por que razão se tinham passado a interessar por aqueles estranhos saberes.

O caso parecia sério. Tinham deixado os anódinos cronistas, cujos escritos, que se saiba, nunca fizeram mal a ninguém, para se atolarem em perniciosos esoterismos, em enganosas leituras, das quais se sabe sempre como se entra, mas nunca como se sai. E houve logo quem lembrasse, a propósito, os conhecidos malefícios causados em mentes mais frágeis por livros tão nocivos como o Manual do Exorcista, O Livro de S. Cipriano, O Código Da Vinci ou o Elucidário, este, segundo consta, ditado pelo espírito de Paulo de Tarso. Era imperioso avisar as famílias, alertar para o arriscado declive em que ameaçavam resvalar. Aquelas raparigas precisavam de respirar outros ares! Uma colega de turma que as acompanhava desde os tempos da escola secundária resolveu dar uma ajuda. Passou a frequentar a biblioteca, avaliou bem o que liam, ponderou, e na altura própria convidou-as para uma noite de festa numa discoteca da 24 de Julho. Ladies night, assim se chamava o evento. Surpreendentemente aceitaram o convite.

O que se soube depois foi algo de ainda mais surpreendente.

Na 24 de Julho, o bar aberto às ladies, o espírito das bebidas a tomar conta das mentes, as palavras a soltarem-se em catarse, veio à conversa o assunto da deslocação a Alverca.

Procuravam a ribeira de Alfarrobeira, em cujas margens se deu, como é sabido, o trágico recontro entre a hoste do Infante D. Pedro e a tropa do seu sobrinho e genro, o jovem rei D. Afonso V. Não foi fácil dar com a ribeira, que agora corre em leitos artificiais, encanada na zona das portagens sob o manto asfáltico da auto-estrada. Por lá andaram a deitar os olhos para as hortas e para os armazéns dos operadores logísticos, foram até à fábrica da cerveja. Os camionistas que circulavam na estrada e viam aqueles nacos de mulher buzinavam e mandavam-lhes bocas do alto das cabinas. Não dando com a ribeira, voltaram atrás. Desceram em direcção à rotunda, e junto à rede que veda um terreiro onde se acumula uma panóplia de decrépitos materiais de construção, ouviram, num estrépito de metal e água, o coaxar das rãs. Olharam através da malha da rede a superfície quase estagnada da água, uma capa de lodo verde numa vala de paredes cimentadas. A visão era desoladora, mas um pouco adiante o curso líquido ganha o leito natural de areia e seixos, mete-se pela cortina dos canaviais e, bordejando as hortas, passa a estrada nacional na direcção do Tejo. Era aquilo a ribeira de Alfarrobeira.

Isto acontecia a 20 de Maio de 2004. Deram conta, então, de que tendo a batalha ocorrido em 20 de Maio de 1449, tinham passado justamente 555 anos sobre a fatídica data. E estavam a dia 20, múltiplo de 5; e no mês de Maio, mês 5. Por sinal até era Quinta-feira, e os relógios indicavam as 5 horas da tarde. Entenderam aquela singular conjunção de cincos como um sinal de indisfarçável sentido numerológico. Tanto mais que do túnel que passa sob a auto-estrada vinha saindo em revoada um bando de corvos grandes e lustrosos. Poisaram as aves na placa central da rotunda e começaram a andar sobre a relva bamboleando a massa sólida dos corpos. Contaram 55 corvos, coisa extraordinária, que até dá para duvidar, pois como é que é possível fazer uma contagem segura de animais tão irrequietos, que ora avançam, ora volvem atrás, quando se vai contar um já outro que foi contado está em lugar diferente, para já não falar dos que resolvem esvoaçar de um sítio para outro, complicando a tarefa dos contadores? Estes 55 corvos pareciam ser já fruto de alguma perturbação. O mais extraordinário é que elas garantiam ter ouvido o tropel das cavalarias e o vozear guerreiro das peonagens, o fragor das armas entrechocando-se, os silvos das frechas despedidas das bestas. Foi uma dessas frechas que matou o Infante D. Pedro, o coração trespassado, morte imediata, sem tempo para a confissão, valeu-lhe a absolvição dada pelo Bispo de Coimbra no preciso momento em que a alma lhe saía da carne. Enquanto o Conde de Abranches, amigo e companheiro do Infante desde os tempos de Ceuta, que ao deixar Coimbra jurara não lhe sobreviver naquela arriscada empresa, continuava a pelejar, ferindo e matando com grande sanha, até que, cercado, se entregou aos ferros do inimigo, proferindo aquelas palavras – Ó corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas; ora fartar vilanagem – com que despediu a alma de si para ir ter com a do Infante. E logo lhe cortaram a cabeça, para a levarem como troféu a El-Rei em busca de honras e acrescentamento. O cadáver do Infante D. Pedro ficou toda a tarde exposto ao Sol, no campo, sob as asas dos corvos. À noite lançaram-no numa fétida choupana, onde ficou insepulto durante três dias, até que o levaram numa escada, a servir de esquife, à Igreja de Alverca, e aí lhe deram a sepultura possível, que a que lhe era devida, como príncipe da Ínclita Geração e regente do Reino, teve-a mais tarde, no Mosteiro da Batalha, junto de seus pais e irmãos.

A companheira que as desafiara para a noite, e que assim tomava conhecimento dos enigmáticos sucessos de Alverca, engoliu rapidamente o seu vodca com laranja e foi habilitar-se a nova bebida, que estava mesmo necessitada… Tinha-se arrepiado um pedaço com toda aquela história de corvos e de figuras insignes a entregarem a alma ao Criador em meio de tão crua peleja, mais a profanação dos cadáveres e a recusa em sepultar os vencidos, acto piedoso que é devido a qualquer cristão, quanto mais a filhos de reis e a nobres de luzida estirpe. E ainda com a revelação de tudo aquilo ter sido ouvido, quando não visto ou sentido pelas colegas como se estivessem numa sala de cinema a assistir a uma superprodução da sétima arte.

Com a madrugada plena, a música atroava os ares da discoteca. Calaram-se as três por uns minutos, enquanto procediam à ingestão de mais uma rodada. A companheira ainda lhes pediu explicações sobre o episódio de Alfarrobeira, que era matéria da História que lhe escapava um pouco. Só teve tempo de compreender, o que já não foi mau, que se tratou do velho conflito entre o poder régio e o poder senhorial. Este, representado pela clique de nobres que rodeava o jovem rei D. Afonso V; aquele, a bandeira da luta do Infante D. Pedro enquanto regente do Reino. Saíram as duas para a pista de dança, enquanto a companheira permanecia sentada, um pouco aturdida, pensando nas surpreendentes revelações feitas pelas colegas. Conta-se que teriam dançado até ao fim da noite com dois desconhecidos que destoavam, em aspecto e indumentária, do modelo típico dos frequentadores daquele espaço. Apareceram e desapareceram naquela mesma noite. E há quem assevere tê-las visto dentro de um táxi, em Santos, em companhia dos tais desconhecidos. Mas a verdade é que às cinco da manhã, depois de uma noite de farra, há coisas que os olhos vêem que nem sempre condizem com a realidade.

Na semana seguinte ninguém deu por elas na biblioteca. Frequentavam as aulas durante a manhã, e à tarde conviviam amenamente com os outros estudantes na cantina da faculdade. Passavam os olhos por alguns textos de leitura obrigatória, conversavam, saíam ao fim do dia. Antes de se meterem em casa davam uma volta pelo centro comercial para recreio da vista. Estavam todos admirados com o novo procedimento das colegas e ninguém conseguia determinar a razão de tão substanciosa modificação. Provavelmente, nem elas teriam uma explicação consistente para o que lhes estava a acontecer. Sabiam apenas que se sentiam diferentes, mais amigas da vida e da alegria, resultado talvez de terem ousado falar dos seus fantasmas e dos enigmas que as perseguiam. Ou de algo mais…

O curioso é que a biblioteca ganhou, entretanto, uma nova e assídua leitora: a colega que as levara para a discoteca da 24 de Julho, que passou a marcar presença, todas as tardes, naquele ambiente austero, a contas com a leitura da Crónica de El-Rei D. Afonso V, de Rui de Pina.

D.E.

sexta-feira, novembro 25, 2005

À VOLTA DE EPICURO, FILÓSOFO GREGO, 341 a.C.- 270 a.C.

Um dia destes faço-me epicurista. Vou para o campo compor bucólicas, apascentar rebanhos, amar pastoras míticas. O emprego que se dane, as contas que fiquem para quem as quiser pagar.

O epicurista é um sábio. Conduz o carro da vida por estradas sempre desimpedidas, por onde o trânsito flui sem a menor dificuldade. Sabe evitar o desconforto dos abomináveis congestionamentos, vive com serenidade, não conhece desordem e paixão que lhe perturbem a alma.

A minha curiosidade, digamos, intelectual, não cessa de me levar a extraordinários exemplos de seguidores de Epicuro: desde Lucrécio, poeta latino, até Ricardo Reis, de quem recomendo a leitura da magnífica ode OS JOGADORES DE XADREZ.

Mas nem precisava de recorrer a exemplos de tamanha dignidade. Tenho outros, igualmente válidos, que estão mesmo debaixo dos meus olhos. Vejamos.

O jovem que tenho lá em casa detesta relógios, em especial os que recebem o epíteto de despertadores. Por essa razão, vai acumulando faltas às aulas matinais da Faculdade. Pois se o corpo e a mente se recusam a despertar, a horas em que o Sol ainda mal nasceu, por que razão é que havemos de os obrigar a enfrentar a luz do dia através de processos violadores da recta natureza das coisas? Adianta apanhar comboios e autocarros, padecer nas estradas a caminho do trabalho, quando o sono, porque curto, não logrou recuperar-nos para o cabal desempenho das nossas funções?

A minha consorte, estimável pessoa, também não gosta de relógios. Tira a medida do tempo pela altura do Sol, acredita na verdade pura da luz e da sombra. No emprego, teima em não aceitar a promoção que lhe querem dar, pois isso lhe trará, inevitavelmente, mais trabalho e dores de cabeça. E o dinheiro não é tudo!

Amemos, pois, Epicuro e as suas sábias lições. A felicidade é vivermos de acordo com a bondade da alma e a simplicidade dos sentimentos. É fugirmos ao sofrimento cruel. Dominemos o corcel das paixões, esse cavalo de Tróia que tantas vezes metemos no coração para nos perdermos. Não dêmos passos mais compridos que a medida da perna. Deitemos os olhos só até onde podemos ver.

Há que escolher entre ócio e negócio. Negócio é a negação de ócio, conforme indica o antepositivo neg. Por mim, já não deve tardar muito que deixe o negócio e me entregue às delícias do ócio. Quando derem pela minha falta, procurem-me, se quiserem, num lugar irreal. É por lá que estarei, de bem comigo, amando Epicuro e a sua sabedoria. E nenhum de vós, meus entes queridos, se vai admirar ou perturbar com a minha opção. Pois foi convosco que aprendi tudo o que começo a saber sobre a serenidade da vida.

D.E.

sexta-feira, novembro 11, 2005

LEMBRANÇAS

O trovador. No princípio tive dificuldade em compreender por que razão se viera meter no Sindicato. Via-o arrastar a figura pesada pela floresta de secretárias, de gabinete em gabinete, sentado à mesa da sala de reuniões a afinar estratégias e a preparar prosaicas acções de propaganda, como colar cartazes ou distribuir panfletos nas saídas do Metro.

Ia quente o Verão. Havia muita ganga nas ruas. Decorria a campanha eleitoral para os corpos directivos do Sindicato dos Trabalhadores de Escritório. Além de trovador, trabalhava numa empresa de publicidade, ou coisa parecida, daí a sua filiação sindical.

Enquanto o trovador se entregava à luta sindical, a rádio difundia, nas vozes de conhecidos jograis e jogralesas, as cantigas de amor e de amigo, de escárnio e mal dizer que inspiradamente compunha: desfolhadas em eiras de milho sob luares de Agosto, touradas com bandarilhas de esperança, laranjas amargas e doces.

Não era, pois, um trovador palaciano, desses que vemos sentados à mesa de reis e senhores, beneficiando do cómodo agasalho dos mecenas. Andava misturado com a plebe, convivia com o operariado das fábricas e dos estaleiros em manifestações e comícios. Amava a poesia e a luta de classes, ele que não era castrado da arte nem do sentimento.

Mal cheguei a conhecê-lo.

Uma noite, quando já se afigurava que nunca ganharíamos as eleições, ficámos a conversar, já tarde, no passeio da Rua Brancaamp. Foi quando me dirigiu o convite para beber um copo e acabar a conversa num qualquer bar da cidade. Não aceitei, que o dia seguinte era de trabalho, impunha-se descansar.

Vi-o apanhar um táxi e atravessar a solidão da noite na direcção do Largo do Rato. Um homem na cidade.
E eu nunca me perdoei daquela conversa por minha vontade inacabada.
D.E.

quinta-feira, outubro 27, 2005

O DIÁRIO DE MAFALDA



nesse diário
uma força de marés e sóis
um cristal de voz
puro como um amor
ou a madrugada

um tempo de pássaros
o fado claro
a cor dos poemas
e o metal da música
contra a cinza dos dias
sem paixão

D.E.

sábado, outubro 22, 2005

O PÉNIS DE MÁRMORE E AS TÁBUAS DE BRONZE DE VIPASCA

1

Lusciénio, filho dum liberto enriquecido com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados, duas ânforas de água do Tibre por cada três de genuíno néctar, estava destinado a uma promissora carreira no foro. O pai mandara-o aprender com os melhores mestres de Roma, estagiara na Grécia, até se deixara seduzir por Epicuro antes de optar por ideias e desígnios mais ajustados às práticas forenses. Porém, por razões que até um narrador omnisciente não consegue descortinar, foi obrigado a exilar-se na Lusitânia, onde chegou acompanhado de Gláucida, escrava líbia para todo o serviço, tendo-lhe sido concessionada a exploração de cinco poços no couto mineiro de Vipasca.

Em Itália deixou Semprónia, a lasciva, mulher de líbido alta que no martírio das noites lhe secava as fontes seminais e comia as forças do corpo, só lhe dando tréguas em três ou quatro dias do mês sob o efeito inelutável das regras fisiológicas. Era então que Lusciénio se recolhia em paz nos braços de Gláucida, vingando-se em beijos e carícias da imoderada violência dos vícios da carne. No porto de Óstia, de onde saiu pelo mare nostrum a caminho da Hispânia, ainda viu no cais a libidinosa Semprónia, despeitada com a sua partida na companhia da escrava. Um arrepio atravessou-lhe o campo da pele. Ia fresca a aragem do mar, Lusciénio levou a essa conta o inesperado estremecimento. O pior, no entanto, estava para chegar.

Ao largo da costa de Saguntum, cinco dias e cinco noites levava já de viagem a galera ágil, os remos chapinhando nas águas, as velas grávidas do cálido siroco, deu-se conta da reiterada falência do seu membro fálico. Tentara na segunda e na terceira noite, não insistira à quarta, que o mar estava bravo e o enjoo lhe tolhia o desejo, mas na quinta noite, sob os olhos estelares do céu, puxou Gláucida para um desvão do convés e, a coberto do sono da marinhagem, tratou de abater o jejum. Não conseguiu nada. As carnes penianas, flácidas como alforrecas, não o permitiram. Cravou as mãos no cordame da embarcação e chorou em desespero a sua raiva impotente.

2

Em Vipasca era dura a vida dos homens. O couto mineiro era um cemitério de escórias, os poços e galerias esventravam a terra em demanda do filão metalífero. O transporte do minério fazia-se sob escolta dos legionários para o porto fluvial de Myrtilis. O Estado esmagava os concessionários com pesados impostos e levava, qual ave rapace, o maior quinhão do seu labor. Os banhos eram um pequeno refrigério na inclemência daquele clima continental, muito quente no Verão e frio no Inverno.

Quando o administrador do couto mineiro informou o governo de Emerita Augusta da chegada de Lusciénio, da concessão de cinco poços que acabara de requerer e do curriculum forense de que era detentor, além do rápido deferimento da matéria requerida recebeu também taxativas instruções para que o recém-chegado fosse contratado como jurisconsulto ao serviço da administração local. E assim, a par da gestão das suas concessões, Lusciénio passou a trabalhar, como legista, no aperfeiçoamento dos regulamentos económicos e sociais de Vipasca.

3

Tudo parecia sorrir ao exilado jurisconsulto. O administrador, agradado com o douto desempenho das suas funções, abria-lhe as portas do triclínio e era vê-lo recostado em ceias sumptuosas, em esquisitas degustações, comendo e bebendo do melhor, mariscos provenientes de Troia e Gades, vinhos da Bética e da Campânia. O minério que saía dos seus poços, apesar da mão roubadora do Estado, rendia-lhe bons proveitos. Gláucida floria de beleza na tranquilidade da sua juventude, até pensara dar-lhe a alforria e casar-se com ela. Só aquele problema sexual não dava sinais de se resolver.

Um comandante da guarnição militar com quem costumava falar nas horas brandas do banho, deu-lhe uma receita que obtivera de um druida gaulês numa das suas comissões ao serviço do Império: misturar numa papa de favas feita com água do mar, intestinos de atum e tâmaras do Egipto, juntar vinho doce e mel de abelhas, tomar uma hora antes da prática sexual. Experimentou, mas não deu resultado.

Alarmado com a persistência do desarranjo, resolveu tentar a medicina. Médicos não havia em Vipasca, seria necessário ir a Pax Iulia e consultar um qualquer aspirante a Hipócrates que aí exercesse a arte. Consultou, mas não obteve a cura.

Foi então que em desespero decidiu recorrer à intercessão divina. Havia numa vasta região da Lusitânia o culto do deus Endovélico. De Ebora a Ossonoba, de Caetobriga a Myrtilis, corria a fama daquela divindade salutífera que curava mais e melhor que o próprio Esculápio. Rumou ao santuário do deus e aí prometeu a entrega votiva de um pénis erecto da altura de um homem, esculpido em mármore rosa, se lhe fosse restituído o poder viril. E tendo como provável que a causa do seu padecimento pudesse ser feitiço da infame Semprónia, dirigiu preces a Prosérpina, deusa infernal, para que contrariasse o mal de inveja que lhe havia sido enviado.

4

Nunca se conseguiu saber se graças a Endovélico ou a Prosérpina se curou Lusciénio da sua aborrecida perturbação. A Posteridade viria a descobrir no santuário de Endovélico em S. Miguel da Mota, Alandroal, muitas aras e lápides com inscrições votivas, até uma cabeça da divindade esculpida em boa pedra, mas não se encontraria qualquer pénis erecto, em mármore rosa ou de qualquer outra variedade de mármore, o que poderá indiciar que o voto não foi cumprido por não ter sido recebida a graça.

Mas em 1876 e 1906 seriam descobertas nos escoriais de Aljustrel duas tábuas de bronze contendo a legislação aplicável no couto mineiro de Vipasca. E isso deverá ter sido obra de Lusciénio, letrado exilado na Lusitânia por obscuros motivos, filho dum liberto rico, amante terno da escrava Gláucida e objecto sexual de Semprónia, mulher lasciva, invejosa e má.

sábado, outubro 15, 2005

Soneto a S. FREI GIL DE SANTARÉM, devaneio poético com metro e rima

Quiseste ser meu Fausto um deus venal
alçado acima dos simples mortais
pelo incomum saber de artes letais
abandonaste o Bem seguiste o Mal

Rútila tentação jugo fatal
dissolutos festins gozos carnais
amaste bruxas anjos sepulcrais
em submissão a um poder brutal

Comia-te o corpo a impura lava
a que te tinhas dado alegremente
e que de ti já tudo te levava

Quando uma luz te penetrou a mente
e te tirou da condição de escrava
a alma cega dessa treva ingente

D.E.

domingo, outubro 09, 2005

CESÁRIO


DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde


Quero, dessa aguarela, o fogo de rendas do decote, a transparência das papoilas na colorida alegria da blusa, e, se possível, soltar as mãos no dorso das rolas, aves tão belas, tocar-lhes a seda das penas e as rijezas dos bicos, e já que, meu poeta, nada dizes dos lábios, dos olhos, dos cabelos, acreditar em gomos de fruta vermelha, em lagos espelhados de céu e em searas da cor da tarde, e abrir esse piquenique de burguesas às operárias da cintura industrial, às senhoras maduras da classe média, às meninas universitárias e às empregadas dos centros comerciais, uma grande alucinação de beleza sem distinção de classes, uma tela do tamanho dos campos e dos penhascos, meu poeta dos sentimentos e das sensações, mestre de Caeiro, nosso mestre.

D.E.

quarta-feira, outubro 05, 2005

UM CONTO POETICAMENTE TRISTE

Havia já uma semana que os meus olhos ensonados, obrigados a respeitar o sinal vermelho do semáforo em cada manhã que por ali passava, se detinham a ler o que estava escrito na superfície amarelada daquela parede. Era num prédio de esquina, sem graça. A inscrição estava à altura do rés-do-chão, onde chega o braço e o coração de um homem:

ANA, AMO-TE. PERDOA

Aí à vigésima vez em que me deixei fascinar pela romântica mensagem, numa manhã de trânsito intenso, fiquei com as rodas do carro coladas ao chão, o semáforo a debitar sucessivas ordens para avançar, e uma sinfonia de buzinas a desabar sobre a minha cabeça numa imitação grotesca de uma peça de Stravinsky.

Confesso que não dei por nada. Só me apercebi da enorme desordem sonora quando um polícia, desses que usam botas de cano alto e têm uma braçadeira vermelha com um metálico T, se arrimou ao vidro da janela e me perguntou se me estava a sentir mal. Que não, disse, que estava tudo bem. E ele então explodiu com todo o fragor da sua incontestada autoridade, que não atrapalhasse o trânsito, que arrancasse depressa e sem mais delongas, que ainda puxava do bloco de multas e praticava um pouco de caligrafia.

O que pode fazer nestas circunstâncias um pobre licenciado em Psicologia Clínica, média de curso de treze valores, vinte e oito anos de idade e ocupação profissional incerta? Obedecer, é claro, desentupir a via pública e deixar para trás o furioso cívico e a romântica inscrição mural.

Mas há coisas que vemos e não esquecemos com facilidade. Vivemos numa era de sofisticados meios de comunicação. O infeliz amador que na sua dolorida mágoa se entregara àquela arcaica forma de comunicar, podia ter escrito uma carta em correio azul, enviado uma mensagem SMS ou veiculado a profundidade dos seus sentimentos através do vertiginoso correio electrónico. Preferiu gravar na parede aquilo que lhe ia na alma. Foi esse procedimento singular que me fascinou e que me levou a desejar conhecê-lo.

Dobrada a esquina, na rua que sobe, há um desses cafés populares de bairro onde todas as noites se reúnem os mesmos clientes, moradores na vizinhança, bebendo umas cervejas e, ao fim-de-semana, assistindo aos jogos da Liga na Sport TV. Fiz-me frequentador do local. À segunda noite já tomava assento numa mesa onde se discutia acaloradamente as diatribes do Pinto da Costa e as invectivas que lançava aos de Lisboa. Foi quando descobri, na parede de um prédio que ficava mesmo em frente do café, outra lancinante inscrição:

ANA, SOFRO POR TI. PERDOA

Perante tão eloquente réplica, começou a formar-se dentro de mim a convicção de que o caso era mesmo sério. Como psicólogo, devorava-me o desejo de descobrir o sofredor, de lhe dar ajuda em transe tão delicado. Aproveitaria para conhecer um pouco mais da mente humana, alargar os meus conhecimentos em tão complexo domínio, robustecer o meu arcaboiço científico no laboratório dos encontros e desencontros dos nossos quotidianos afectos. E em cada noite que me metia no bairro em demanda do convívio do café, acabava sempre por deparar com novas inscrições nas paredes sebentas dos prédios. O homem não parava. Era um delírio mural.

Entretanto, lá fui obtendo de um dos meus companheiros de tertúlia algumas indicações sobre a citada Ana.

Disse: Moça bonita, um corpo à maneira, mora ao cimo da rua, às vezes até toma a bica aqui no café mas desanda logo, não faz sala, vivia aí com um gajo barbado e com ar de lunático, parece que é professor, sempre com livros na mão, às vezes até falava sozinho, mas não parecia má pessoa, nunca mais o vimos, a rapariga agora vem aí mas sempre sem companhia, se é ele que anda a escrever nas paredes?, se calhar é, raio do homem para o que havia de dar-lhe, com tantas mulheres que há por aí, francamente, é só um gajo estalar os dedos e é vê-las aparecer, sabe o que lhe digo?, há vinte anos não havia nada disto, o que o pessoal queria elas também estavam doidinhas pelo mesmo, agora ficam agarrados à internet e é só sexo virtual, esta malta está toda maluca, ó Chico tira aí mais duas imperiais, uma para mim e outra para este senhor, mas dizia eu, bonita rapariga sim senhor, é pena que não tenha tido sorte com o gajo, se calhar não a satisfazia e ela calçou-lhe uns patins, é o que há mais para aí, sabe, até lhe conto a história do filho do João que trabalha como segurança no centro comercial, pois o rapaz...

E num fim de tarde, após prolongadas mediações, consegui encontrar-me com Ana no café. Vi-a chegar, o corpinho ondulado metido na justeza dos jeans, o redondo dos seios adivinhado sob o minúsculo top, o brilho de um piercing na concha do umbigo. Como únicas testemunhas, sobre a mesa, duas garrafas de Coca-Cola e um cinzeiro de lata amarrotado.

Sabe, não costumo falar com estranhos, mas disseram-me que era por causa do Jorge que queria conversar comigo, coitado do rapaz, sou muito sua amiga, acredite que me custa esta situação, afinal ainda estivemos juntos perto de um ano, e depois anda para aí desesperado a pintar as paredes do bairro, só o dinheiro que gasta em tintas, francamente, é uma coisa que nem se compreende, pois acredite que estou a ser sincera, gosto dele a sério, só que não dava para fazer vida juntos, sou uma pessoa alegre, gosto de luz, não sou dada a melancolias, mas diz que é psicólogo?, é interessante, também pensei em tirar psicologia, só que acabei em letras, fiz o segundo ano de estudos franceses, por que razão desisti?, dificuldades, sabe, apareceu-me um emprego na TMN, aproveitei, não podemos perder estas oportunidades, mas voltando ao assunto, o Jorge é um bom tipo, não era mau amante, mas por vezes andava estranho, era a mania da poesia, quando escrevia ou descobria um novo poeta ficava estranho, ultimamente era o Walt Whitman, conhece?, é assim como o Álvaro de Campos mas em inglês, Leaves of Grass, lia o livro da frente para trás e de trás para a frente, dissecava os poemas, replicava, ficava insuportável durante essas fases, depois passava-lhe, melhorava, mas era por pouco tempo, não era mau amante, repito, pena que se transtornasse de vez em quando, estou a falar-lhe abertamente porque é psicólogo, não me abria assim com qualquer um, passava uma semana inteira que não se chegava a mim, está a ver, é aborrecido, e foi então quando conheci outra pessoa, a vida é assim, a verdade é que essa experiência também não correu bem, estou sozinha, mas não tenho vontade de recomeçar com o Jorge, até lhe digo que...

Ana é um pássaro falador, uma torrente de palavras saindo da boquinha bonita, os dentes muito brancos, a língua ágil humedecendo o carmim dos lábios. Podemos dizer aos pássaros que se calem? Podemos reprimir os maviosos murmúrios dos regatos? Ana fala, irremediavelmente, e eu bebo-lhe os mais ínfimos sons, coloridos fonemas do meu deslumbramento súbito.

A conversa com Jorge veio a seguir. Encontrei-me com ele no anfiteatro dos jardins da Gulbenkian. Trazia Apollinaire no bolso do casaco.

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nous amours
...
L´amour s´en va comme cette eau courante
L´amour s´en va

Expliquei-lhe ao que vinha, que era só para ajudar, que falara com Ana e que ela me encorajara a ter uma conversa com ele. Jorge poisou em mim um olhar de poeta incompreendido, passou a mão pela melena, e eu vi-lhe os dedos gastos do ofício de segurar canetas e picar teclados, os olhos bêbados do lume dos versos. Depois saímos dali a tomar um refresco, acabámos a conversa no seu tugúrio em Alfama. E Jorge parecia já outro homem, uma cura de milagre, decidido a enfrentar a vida de forma mais prosaica. Pegou nas latas de tinta e ofereceu-mas, acabava ali mesmo o seu mortificante delírio mural.

Regressei a casa, vaidoso dos meus sucessos clínicos. Curar um homem numa única sessão é obra. À noite fui ao café, detive-me ainda diante de alguns escritos parietais do poeta Jorge. Aquilo era passado.

Depois subi a rua para bater à porta de Ana, comunicar-lhe o surpreendente resultado do meu encontro com Jorge.

Conversámos. Como as palavras são tanto e tão pouco. Chaves poderosas que nos abrem portas para todos os estados de alma, ou apenas essa frágil articulação de segmentos sonoros, esse esplendor de signos imperfeitos a que falta a substância das coisas? Falávamos, e as nossas palavras começaram a pedir um toque de pele, a lentura do corpo. Foi quando Ana pôs a sua mão sobre a minha e eu senti que já não havia nada a dizer, que a partir daquele momento toda a fala era um despropósito e que a única coisa que fazia sentido era deixar-me ir na aventura da mão, seguir-lhe o braço, perder-me na plenitude do corpo.

Comecei então a viver com Ana no seu apartamento pequenino e simpático. O amor começava ao fim do dia, quando chegávamos a casa, e prosseguia pelos perfumados jardins da noite até às horas da madrugada. As vezes passávamos pelo café, os meus companheiros riam-se.

Mas durou pouco tempo a nossa relação. A imagem de Jorge, obsidiante, fixou-se na minha cabeça. Aproximara-me dele como terapeuta e acabara a roubar-lhe a mulher que amava. Tinha-o desenganado dessa paixão, conseguindo até que me entregasse as latas de tinta. Quem sabe se com mais umas inscrições, umas noites mais a pintar paredes, não teria logrado recuperar o seu amor perdido? Doía-me pensar nessa elementar possibilidade. Doía-me saber que enquanto eu me entregava às delícias do corpo de Ana e passava a noite abraçado a ela, Jorge, o infeliz poeta, sofria sozinho no seu quarto, acompanhado apenas dos seus vates, sem ninguém para amar.

Passei a ver, sempre que estava com Ana, o olhar melancólico do poeta e a sua mão acenando com o livrinho de Apollinaire de onde caíam folhas soltas com os poemas escritos a Annie Playden. Tentava fechar os olhos, mas era ainda pior. Ouvia então estranhas vozes que declamavam ´´La chanson du Mal-Aimé´´, poema que acabei por decorar sem nunca ter lido:

Adieu faux amour confondu
Avec la femme qui s´éloigne
Avec celle que j´ai perdue
L´année dernière en Allemagne
Et que je ne reverrai plus

Resolvi espaçar os meus encontros com Ana, passando algumas noites em minha casa. Era a única forma de fugir às vozes e imagens obsidiantes, de ter algum descanso. Até que tudo acabou: Ana, com frontalidade, apresentou-me um certificado de amante incompetente e entregou-me a guia de marcha.

Sofro agora como sofre ou sofreu o poeta Jorge. Há cinco dias que não me apresento ao trabalho e as noites são de uma indizível tortura. Mas hoje saí com as latas de tinta para o bairro de Ana. Evitei passar junto do café, entrei pela rua de cima, e aventurei-me na primeira parede nua que descobri, uma excelente parede para receber o meu grito de alma, até admira que o poeta Jorge nunca tenha dado com ela. E premindo nervosamente a válvula do spray deixei nela o primeiro dos meus apaixonados apelos:

ANA, CONTINUO A AMAR-TE. PERDOA.

D.E.

MORTE DE AL BERTO

Não foi como a de Rimbaud
A noite
não estendeu o seu manto sobre as copas das árvores
a luz
que tomou conta do tempo
não sossegou o coração dos pássaros
não suspendeu os jogos das crianças
À tua frente havia um mar
do qual não sabias o nome
um pélago onde chegavam rios esquálidos
que abraçavam a voragem
O chicote da tosse
rachava-te as arcadas do tórax
fechava-te o sopro dos pulmões
a febre crescia
sobre as disfunções orgânicas
em dose letal
Estavas magro
muito magro
doíam-te os dentes os ossos
E
na cidade
havia uma alegria de asas
sobre as cabeças dos homens
algazarras de meninos
nos recreios escolares
nenhuma lágrima se desprendia
nenhum fio de emoção
cortava a atmosfera amena
Depois
a dor cessou completamente
e uma grande tranquilidade sobreveio
ainda viste sair de ti
a nuvem da alma
Van Gogh
de quem eras íntimo
veio receber-te
Podia ter sido no céu de Arles
ou de Lisboa
ou de Paris
mas não
foi num campo amarelo de trigo
algures num patamar do tempo
Trazia numa mão
a última carta escrita a Theo
e na outra
o brilho metálico de um revólver
E tu entraste no campo de trigo
uma tela que ondulava ao vento
com revoadas de corvos escuros
recortados num céu azul
Desapareceste onde se supunha estar uma ceifeira
e era Verão


D.E.

quinta-feira, setembro 22, 2005

CLARISSA

Aos dezassete anos podemos ler o romance da nossa vida. Basta que tenhamos aprendido a confiar nos livros e a compreender os mundos de sonho que nos revelam.

Li ´´Clarissa´´ , de Erico Veríssimo, na sala de leitura da Embaixada do Brasil, uma cave acolhedora na Avenida Sidónio Pais, onde se servia um café que não sabia à bica sofrida daqueles tempos e onde tínhamos sempre como música de fundo os ritmos coruscantes do país irmão.

Posso até nem ter compreendido o romance inteiramente, os sentidos do microcosmo da pensão de D. Eufrasina com as discussões entre o judeu Levinsky e o malicioso Nestor, as tiradas políticas do tio Couto e do major Pombo. O livro é de 1933, a seis anos de distância do começo da Guerra, e as sombras de Hitler e Mussolini pairam por vezes sobre os diálogos dos pensionistas. Mas havia Clarissa, menina-mulher à beira de fazer catorze anos, e Amaro, homem triste e inadaptado que vivia na contemplação da beleza sempre acompanhado da sua música e dos seus poetas. E isso para mim chegava.

Amaro, sorumbático, nocturno, é o contrário da imagem viva e alegre, luminosa, de Clarissa.

Amaro amou Clarissa. Terá Clarissa amado Amaro?

Só o podemos imaginar através dos pensamentos que o narrador omnisciente nos proporciona, como naquela tarde em que Clarissa entrou no quarto de Amaro e, diante do aquário do peixe Pirolito, entretanto trespassado por um raio de sol, lhe pediu para compor uma música.

Pensa Clarissa: ´´ Seu Amaro, se eu não tivesse medo de dizer uma bobagem, eu ia dizer uma coisa para o senhor. Ia dizer que o senhor é muito parecido com o Pirolito. Porquê? Porque eu sou amiga do Pirolito e ele nem fica sabendo: vive ali dentro do aquário, não vê ninguém e nem fica sabendo que eu sou amiga dele. Pois o senhor é bem assim: vive no seu quarto, fechado, não fala comigo, não me vê nem fica sabendo como eu sou sua amiga. O senhor é muito parecido com o Pirolito. Eu sei que isto é uma bobagem de menina, mas o senhor me desculpe: é o que eu sinto´´.

E pensa Amaro: ´´ Menina, tu nunca poderias compreender. Nem tu nem ninguém sabe quanta ternura há em mim. Eu hei-de ser sempre para vocês todos o seu Amaro melancólico e taciturno, o seu Amaro que trabalha num banco e faz música nas horas vagas, o seu Amaro que vai ler os seus livros à sombra dos plátanos, o seu Amaro que não sabe fazer um gesto de amizade nem de acolhimento. Vocês nunca compreenderão. E tu, menina, não podes compreender também a alegria íntima que me dás. Porque és poesia, és música, és… nem sei o que és… Tudo isto se pode sentir, tudo isto se pode pensar. Mas nada disto se pode dizer. Seria piegas, seria idiota, como seria idiota também eu dizer que te amo. Tenho mais do dobro da tua idade. E algumas rugas no rosto… Clarissa, se eu pudesse falar, se tu pudesses entender… Eu te diria que nunca desejasses que o tempo passasse. Eu te pediria que fizesses durar mais e mais este momento milagroso. A vida é má, menina, a vida envenena. Amanhã serás gorducha e prática como titia. Amanhã terás filhos, te transformarás numa matrona respeitável. Onde estará então a menina em flor que corria no pátio atrás das borboletas? Mas tu tens curiosidade de conhecer a vida… É natural. Talvez nem compreendas a significação deste momento. Quanta coisa eu teria para dizer se eu pudesse falar, se pudesse entender…´´

Depois deste livro, fica a amar-se a vida e a beleza de outra maneira. Dá-nos vontade de ler John Keats, o poeta preferido de Amaro, escrever poesia, dar o nome de Clarissa a uma filha.

Seguindo o pensamento de Amaro, tudo isto se pode sentir, se pode pensar, embora seja talvez demasiado piegas para ser dito.

Mesmo assim, aqui vai o poema feito muitos anos depois:


CLARISSA

I

Era numa Primavera
de glicínias roxas e pessegueiros floridos
Havia um papagaio verde
que gritava o teu nome
no alpendre da pensão
Fios de alegria na aragem morna
- os teus cabelos negros de adolescente
a luz do relevo do busto
que despontava
- Quando fizesses catorze anos
mamãe dava-te licença para botares salto alto

II

Os gramofones enchiam de música
a atmosfera soalheira
os bondes circulavam na cidade
sob acácias policromas
Se calhar era Domingo
Tu descobrias-te diante do espelho
bela
florzinha quase impudente

III

O poeta
lívido homem
lia poemas de John Keats
à sombra dos plátanos
e tinha sempre na cabeça
a Nona de Beethoven
pela Orquestra Sinfónica de Amesterdão
O poeta vivia muito sobre o piano
tirando notas que ninguém compreendia
e trabalhava como funcionário bancário
para poder pagar a pensão
comprar os livros de poemas
e o papel de música para compor
Sentava-se à sua secretária
no banco
para fazer lançamentos de deve e haver
conferir balancetes
lidar com as severas taxas de juro
com os enigmáticos descontos de letras
com as reformas e os protestos
Naquele tempo
não havia computadores
- tudo se registava manualmente
com canetas de pau e aparo
em cursivo inglês ou em letra francesa
na superfície de folhas marginadas
em circunspectos livros selados
O poeta não era
profissionalmente competente
porque tinha a cabeça cheia de versos
e poemas sinfónicos
e não corria um minuto
um instante sequer
que não pensasse no milagre do teu corpo
a fazer-se mulher

IV

Numa manhã
terminados os exames no colégio
deixaste a pensão
regressaste a casa
Nenhum raio de sol
voltou a trespassar de luz
o aquário
Estrídulo
o papagaio verde
continuou a gritar o teu nome
no poleiro do alpendre
E as folhas dos plátanos
ávidos olhos
leram nos poemas
o bisel da paixão
O piano
esse
nunca deixou de tocar
sobre os alçapões
do sentimento mudo

D.E.

domingo, setembro 18, 2005

LEITURAS DE SONHO - ´´Tragédia do Príncipe João´´ de Diogo de Teive

Diogo de Teive foi um humanista português que nasceu em Braga no princípio do século XVI e que se notabilizou como escritor e professor.
Ensinou na Universidade de Paris e no Colégio de Guiena (Bordéus), tendo sido professor do Colégio Real das Artes da Universidade de Coimbra. Toda a sua obra foi escrita em latim, opção linguística característica dos humanistas do Renascimento.
A ´´Tragoedia Joannes Princeps´´ é uma peça de teatro em cinco actos sobre o drama nacional resultante da morte prematura – possivelmente por doença diabética – do Príncipe João, filho do rei D. João III, único herdeiro directo da Coroa portuguesa.
Nenhum dos nove filhos do casamento de D. João III com D. Catarina de Áustria sobreviveu aos seus progenitores. O Príncipe João foi o último a desaparecer, pouco tempo depois de ter desposado D. Joana, filha do poderoso Carlos V, rei de Espanha e senhor de vastos domínios em todo o orbe.
Mas há uma esperança que atravessa o drama: o nascimento de uma criança que se gerava no ventre da Princesa – o ´´Desejado´´, o futuro rei D. Sebastião – e que ocorre já depois da morte do seu jovem pai. Para evitar emoções que pudessem afectar o normal desenrolar da gravidez, é ocultado à Princesa o grave estado de saúde do esposo. Dado que o parto estava para muito breve, o funeral realiza-se em segredo, seguindo o corpo discretamente para os Jerónimos.
Sabemos como se gorou o caudal de esperança depositado neste filho póstumo, sucessor do seu avô no trono de Portugal. A tragédia do Príncipe João afigura-se assim uma antecipação do desastre nacional protagonizado por um rei jovem e imaturo na Batalha de Alcácer Quibir. E curiosamente é a repetição de um drama semelhante, ocorrido dois reinados antes, quando o herdeiro de D. João II, o Príncipe D. Afonso, faleceu de uma queda de um cavalo em Santarém.
Para quem quiser ler esta obra, há uma recente edição bilingue latim - português da Fundação C. Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

D.E.

terça-feira, setembro 13, 2005

ILHA DE MOÇAMBIQUE, ´´ILHA DE PRÓSPERO´´, ´´ILHA DE CALIBAN´´

ILHA DOURADA - RUI KNOPFLI

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.

Rui Knopfli

A MORTE SAIU À RUA ...

Corria Dezembro de 1961, dia 19, não havia iluminações de Natal nas ruas, nesse tempo apenas a Baixa com o seu comércio rendoso dispunha de orçamento para tais ornatos, a Rua da Creche, o Largo do Calvário, a Calçada da Tapada eram margens da cidade, ruas de bairros operários com cheiro a rio, e havia os becos tristes onde se entrava e saía sempre pelo mesmo lado, escuros, com prédios escuros, na Rua da Creche, ao fundo, havia um beco de nome esquecido, uma menina de cabelos negros que lá morava, mas não é disso que cabe falar desse 19 de Dezembro de 1961. A Escola Comercial Ferreira Borges ficava ao cimo da Rua da Creche e fazia esquina com a Calçada da Tapada, Tapada da Ajuda já se vê, onde se estudava agronomia e outras ciências exactas, também havia o campo de futebol do Atlético, clube da primeira divisão, naquele tempo não havia Liga, os jogos eram relatados pelo Artur Agostinho, ainda não tinha aparecido a sport tv, quem quisesse ver tinha de comprar bilhete, mas isso faz parte de outra história. Sucede que a noite chegou cedo, estava-se sobre o solstício de Inverno, as meninas tinham aulas de manhã, os rapazes à tarde, o país era pobre, havia que aproveitar o edifício e dar trabalho por turnos aos professores, meninas de manhã e rapazes à tarde, assim também se evitava a mistura dos sexos, e foi quando, pelas cinco ou seis horas, a língua escura da noite já lambia os muros e as paredes, entrava mesmo pela sala dos senhores professores, se soube da oração a Nossa Senhora de Fátima pela salvação da Índia Portuguesa. Todos os alunos ficavam para tão piedoso acto, com a ajuda de Nossa Senhora e das tropas portuguesas o Pândita Nerhu não havia de ficar a rir-se, a ordem era para resistir até ao último homem, o senhor presidente do conselho de ministros já o havia dito, todos deviam morrer pela Pátria, havia vida para além da morte, convicção natural de quem acreditava na vida eterna. Pois os alunos lá ficaram a rezar pais-nossos e avé-marias, nada de extraordinário, era tudo rapaziada temente a Deus, que tinha feito a catequese, a primeira comunhão e a profissão de fé, Goa e Damão e Diu invadidas pela União Indiana, um país de bárbaros que falava inglês e não apreciava a acção civilizadora dos portugueses, mas estava lá o exército e o navio aviso Afonso de Albuquerque, se necessário usariam a táctica do quadrado como em Aljubarrota, o solo pátrio não seria entregue de mão beijada. E na varanda da sala dos senhores professores, que dava para o pátio do recreio, apareceu uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda talvez da Igreja de Alcântara, ali mesmo ao lado, o senhor prior de Alcântara é que estava muito mal visto pelos chefes religiosos e pelos governantes,  falava-se ser uma espécie de comunista, o que não surpreendia, pois até se dizia que Jesus Cristo tinha sido o primeiro comunista, isto era conversa do pai de um aluno que era operário da CUF e ouvia a Rádio Moscovo, até punha um copo de água sobre a telefonia para não ser detectado pelos radares da Polícia, mas não nos desviemos do assunto, que o que neste escrito se trata é da invasão do Estado Português da Índia pelas tropas do Pândita Nerhu e da heróica resistência dos soldados portugueses, o navio aviso Afonso de Albuquerque a bombardear o porta-aviões e os navios de três canos naquela terrível batalha naval de que o Diário de Notícias se fez eco. Pois era já noite feita e os alunos continuavam a rezar no pátio do recreio, não era por falta de orações que se perderia Portugal,

quando,

uns tiros se ouviram vindos do lado da Rua da Creche, era uma rua pacata, morava lá o mestre Fonseca, professor de dactilografia e caligrafia, escritor com o nome de Mário Castrim, e às vezes até era visto no seu escritório no rés-do-chão do prédio em frente, agarrado à sua literatura, a queimar os olhos com o trabalho do Diário de Lisboa Juvenil, parece que nesse tempo ainda não era crítico de televisão. Pois numa rua pacata como aquela não se esperavam tiros a uma hora em que os alunos rezavam e as famílias os esperavam para jantar, algumas já alarmadas com a demora, e a causa dos tiros não se soube logo, apenas no dia seguinte explicou o senhor professor de religião e moral ter sido por mor de um bêbado que provocou um polícia, coitado do bêbado, o polícia não deveria ter puxado da pistola, mas um homem, mesmo bêbado, tem de saber que está a falar com um polícia, uma autoridade a respeitar, lá estava escrito na sala dos senhores professores Deus-Pátria-Família-Autoridade, o que mostrava que a autoridade era tão importante como tudo o resto, não era por estar em último lugar que era menos importante, muitas vezes os últimos são os primeiros. Mas a história do polícia e do bêbado parecia não bater certo e o Zeca Afonso até compôs aquela canção

a morte saiu à rua num dia assim
naquele lugar sem nome pra qualquer fim
uma gota rubra sobre a calçada cai
e um rio de sangue dum peito aberto sai

teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
só olho por olho e dente por dente vale
à lei assassina à morte que te matou
teu corpo pertence à terra que te abraçou


e hoje a Rua da Creche até já não é da Creche, é verdade que estão sempre a mudar o nome das coisas, a ponte, por exemplo, também já teve vários nomes e continua a ser a mesma, só lhe acrescentaram o tabuleiro do comboio e mais umas faixas de rodagem, e a creche que ali havia se calhar hoje já não existe, quem sabe, o que se sabe é que o edifício ainda há pouco tempo tinha inscrita no frontispício a palavra parvulário, que vem do latim parvus, que quer dizer criança, mas nada disto é importante,

a rua chama-se hoje Rua José Dias Coelho, escultor, desenhador e pintor, que ali foi morto a tiro de pistola por um agente da PIDE em 19 de Dezembro de 1961, dia em que a tropa portuguesa da Índia tinha ordens para resistir até ao último homem.

segunda-feira, setembro 12, 2005

LEITURAS DE SONHO OU COMO OS DEUSES BRINCAM COM OS HOMENS OU A ORIGEM DAS PALAVRAS ANFITRIÃO E SÓSIA

Plauto, o maior comediógrafo latino, viveu entre 260 a.C. e 184 a.C., tendo chegado a ser-lhe atribuída a criação de cento e trinta comédias. Provavelmente não terá produzido tantas, mas há uma, a comédia ´´Anfitrião´´, cuja autoria lhe é inequivocamente reconhecida.

O tema desta comédia foi retomado por muitos criadores literários e dramaturgos, entre eles Molière, e, entre nós, por Luís de Camões e António José da Silva.

E qual é o tema?

Júpiter, pai dos deuses, decidiu descer ao mísero mundo dos mortais para possuir Alcmena, matrona fidelíssima ao senhor seu esposo, de nome Anfitrião, que se encontrava ausente em missão militar contra os Teléboas. Os deuses clássicos tinham destas coisas, abandonavam muitas vezes a pose divina para se misturarem com os pobres humanos, atrapalhando-lhes a vida…
Na companhia de Júpiter veio Mercúrio, o mensageiro dos deuses, para ajudar à festa.

Chegados a este vale de lágrimas, toma Júpiter a forma humana de Anfitrião, marido de Acmena, enquanto Mercúrio se transforma em Sósia, o escravo de Anfitrião, que com ele havia partido para a guerra. E assim se apresentam a Acmena.

Ficou feliz a matrona, julgando ver regressado o seu amado esposo, e a noite que entretanto chegou povoou a alcova de palavras ternas, de cicios e gritos, tendo Júpiter, no poder incomensurável da sua divindade, retardado o curso da Lua para tornar mais longa a noite e prolongar o prazer.

Só que havia coisas que os deuses clássicos não conseguiam prever. Anfitrião regressa da guerra, coberto de glória, e manda à frente o escravo Sósia para dar a novidade à esposa. O pobre dá de caras com o seu duplo (Mercúrio) à porta de casa e fica estarrecido. Logo aparece Anfitrião e descobre que em sua casa já lá está uma cópia sua (Júpiter).
Supremo imbróglio: Anfitrião, o verdadeiro, procura convencer a esposa de que é ele o marido, acusando-a de adultério, mas ela não se sente adúltera, pois com quem quer que fosse que tivesse dormido naquela noite, tinha-o feito com a convicção de ser o seu marido.

Acontece que Alcmena já estava grávida de três meses do seu legítimo esposo. Mas por obra divina voltou a engravidar de Júpiter e, milagre dos milagres, acabou por dar à luz três crianças, uma delas Hércules, cuja paternidade foi assumida pelo supremo deus.

Anfitrião, por sua vez, ao descobrir o envolvimento dos deuses naqueles insólitos eventos, sentiu-se honrado e ficou agradecido por ter partilhado os seus haveres, incluindo a esposa, com o pai dos deuses.

Foi a esta comédia latina, inspirada aliás num velho tema grego, que a linguística europeia foi buscar a palavra anfitrião para designar quem recebe alguém em sua casa, partilhando os seus haveres domésticos, embora não indo tão longe como o remoto anfitrião de Plauto; e sósia, para referir um indivíduo muito parecido com outro, podendo mesmo confundir-se com ele.

D.E.

domingo, setembro 11, 2005

´´A SECRETA VIDA DAS IMAGENS´´




´´Aniversário´´ (1915) de MARC CHAGALL (Vitebsk, Bielo-Rússia, 1887 - Saint Paul, França, 1985)

Viagens de sonho

Para quem quiser e puder deslocar-se a Óbidos e Caldas da Rainha, sugerimos uma visita a quatro interessantes monumentos:

- Igreja de Nª Senhora do Pópulo – Caldas da Rainha.
Construída entre a última década do século XV e o ano de 1508, funcionou como capela privativa do Hospital Termal criado em 1485 pela Rainha D. Leonor. O seu provável arquitecto foi Mateus Fernandes, o mesmo que concluiu a exuberante porta de entrada das Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha. É uma obra de dimensões modestas, mas de grande beleza e significado, anunciadora das portentosas realizações do manuelino. Uma jóia. Está localizada atrás do Hospital Termal.

- Igreja de Santa Maria - Óbidos.
Admirar as telas de Josefa de Óbidos, obra de 1661.

- Santuário do Senhor Jesus da Pedra. Fica à entrada de Óbidos na estrada que vem das Caldas da Rainha. É uma construção imponente em estilo barroco, sendo aí venerada uma curiosa cruz de pedra do período Paleocristão (séculos IV e V).

- Eburobrittium – Escavações de uma importante cidade túrdula, profundamente renovada pelos romanos. Está a cerca de um quilómetro de Óbidos, tendo acesso por uma estrada de terra ou através de um percurso pedonal. Esta cidade é citada por Plínio, escritor romano do século I, e foi encontrada no decurso das obras de construção da auto-estrada do Oeste. Está demarcado o Fórum e já foi posta a descoberto uma parte importante das termas, nomeadamente uma bela piscina circular com 3,4 metros de diâmetro interno.

Bons passeios. Há muito Portugal para descobrir!

D.E.

quarta-feira, setembro 07, 2005

´´NU DEITADO´´ de Amedeo Modigliani


Toco o teu corpo impudentemente puro
deformação expressiva
em almofadas de luminosos cetins
de escarlates sedas
e deixo-me ir na corrente líquida dos olhos
na embriaguez dos lábios
as mãos cheias do volume dos seios
Tacteio os músculos finos dos braços
dobrados em delta
sinto o anel da cintura
o recorte lume das ancas
a massa pujante das coxas
Repouso no centro do corpo
onde
o triângulo púbico
é um trapézio de Vénus
D.E.

terça-feira, setembro 06, 2005

AQUI ESTOU!

Depois da fala de Xico Futa, filósofo do Musseque Sambizanga, apresenta-se o Disperso Escrevedor:

- Nasceu em Lisboa no ano MCMXLVII da era de Cristo.

- Coisa surpreendente, está casado com a mesma mulher há vinte e oito anos.

- Tem um filho, teenager terminal, que cursa Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

- ´´Disperso Escrevedor´´ não é um pseudónimo, nem tampouco um heterónimo. É apenas um expediente para que não o levem muito a sério. Nesta altura da vida era o pior que lhe poderia acontecer.

- Disperso Escrevedor dispersa-se muito e escreve pouco. Costuma consultar dicionários para não exagerar nos erros.

- Às vezes escreve para esconjurar o mal merencório.

- Não tem grande aptidão para trabalhar com ferramentas informáticas. Aliás, é muito reduzida a sua habilidade para trabalhar com quaisquer ferramentas. E ainda não descobriu como é que conseguiu criar este blog.

- Disperso Escrevedor não tem qualquer programa ou plano para o blog. É navegação à vista.

INCIPIT

''Dizia Xico Futa:
Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, porquê, praquê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se agente segue assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, aparece... E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdades e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo.''

Luandino Vieira, ´´Luuanda´´, Estória do ladrão e do papagaio