terça-feira, setembro 13, 2005

A MORTE SAIU À RUA ...

Corria Dezembro de 1961, dia 19, não havia iluminações de Natal nas ruas, nesse tempo apenas a Baixa com o seu comércio rendoso dispunha de orçamento para tais ornatos, a Rua da Creche, o Largo do Calvário, a Calçada da Tapada eram margens da cidade, ruas de bairros operários com cheiro a rio, e havia os becos tristes onde se entrava e saía sempre pelo mesmo lado, escuros, com prédios escuros, na Rua da Creche, ao fundo, havia um beco de nome esquecido, uma menina de cabelos negros que lá morava, mas não é disso que cabe falar desse 19 de Dezembro de 1961. A Escola Comercial Ferreira Borges ficava ao cimo da Rua da Creche e fazia esquina com a Calçada da Tapada, Tapada da Ajuda já se vê, onde se estudava agronomia e outras ciências exactas, também havia o campo de futebol do Atlético, clube da primeira divisão, naquele tempo não havia Liga, os jogos eram relatados pelo Artur Agostinho, ainda não tinha aparecido a sport tv, quem quisesse ver tinha de comprar bilhete, mas isso faz parte de outra história. Sucede que a noite chegou cedo, estava-se sobre o solstício de Inverno, as meninas tinham aulas de manhã, os rapazes à tarde, o país era pobre, havia que aproveitar o edifício e dar trabalho por turnos aos professores, meninas de manhã e rapazes à tarde, assim também se evitava a mistura dos sexos, e foi quando, pelas cinco ou seis horas, a língua escura da noite já lambia os muros e as paredes, entrava mesmo pela sala dos senhores professores, se soube da oração a Nossa Senhora de Fátima pela salvação da Índia Portuguesa. Todos os alunos ficavam para tão piedoso acto, com a ajuda de Nossa Senhora e das tropas portuguesas o Pândita Nerhu não havia de ficar a rir-se, a ordem era para resistir até ao último homem, o senhor presidente do conselho de ministros já o havia dito, todos deviam morrer pela Pátria, havia vida para além da morte, convicção natural de quem acreditava na vida eterna. Pois os alunos lá ficaram a rezar pais-nossos e avé-marias, nada de extraordinário, era tudo rapaziada temente a Deus, que tinha feito a catequese, a primeira comunhão e a profissão de fé, Goa e Damão e Diu invadidas pela União Indiana, um país de bárbaros que falava inglês e não apreciava a acção civilizadora dos portugueses, mas estava lá o exército e o navio aviso Afonso de Albuquerque, se necessário usariam a táctica do quadrado como em Aljubarrota, o solo pátrio não seria entregue de mão beijada. E na varanda da sala dos senhores professores, que dava para o pátio do recreio, apareceu uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda talvez da Igreja de Alcântara, ali mesmo ao lado, o senhor prior de Alcântara é que estava muito mal visto pelos chefes religiosos e pelos governantes,  falava-se ser uma espécie de comunista, o que não surpreendia, pois até se dizia que Jesus Cristo tinha sido o primeiro comunista, isto era conversa do pai de um aluno que era operário da CUF e ouvia a Rádio Moscovo, até punha um copo de água sobre a telefonia para não ser detectado pelos radares da Polícia, mas não nos desviemos do assunto, que o que neste escrito se trata é da invasão do Estado Português da Índia pelas tropas do Pândita Nerhu e da heróica resistência dos soldados portugueses, o navio aviso Afonso de Albuquerque a bombardear o porta-aviões e os navios de três canos naquela terrível batalha naval de que o Diário de Notícias se fez eco. Pois era já noite feita e os alunos continuavam a rezar no pátio do recreio, não era por falta de orações que se perderia Portugal,

quando,

uns tiros se ouviram vindos do lado da Rua da Creche, era uma rua pacata, morava lá o mestre Fonseca, professor de dactilografia e caligrafia, escritor com o nome de Mário Castrim, e às vezes até era visto no seu escritório no rés-do-chão do prédio em frente, agarrado à sua literatura, a queimar os olhos com o trabalho do Diário de Lisboa Juvenil, parece que nesse tempo ainda não era crítico de televisão. Pois numa rua pacata como aquela não se esperavam tiros a uma hora em que os alunos rezavam e as famílias os esperavam para jantar, algumas já alarmadas com a demora, e a causa dos tiros não se soube logo, apenas no dia seguinte explicou o senhor professor de religião e moral ter sido por mor de um bêbado que provocou um polícia, coitado do bêbado, o polícia não deveria ter puxado da pistola, mas um homem, mesmo bêbado, tem de saber que está a falar com um polícia, uma autoridade a respeitar, lá estava escrito na sala dos senhores professores Deus-Pátria-Família-Autoridade, o que mostrava que a autoridade era tão importante como tudo o resto, não era por estar em último lugar que era menos importante, muitas vezes os últimos são os primeiros. Mas a história do polícia e do bêbado parecia não bater certo e o Zeca Afonso até compôs aquela canção

a morte saiu à rua num dia assim
naquele lugar sem nome pra qualquer fim
uma gota rubra sobre a calçada cai
e um rio de sangue dum peito aberto sai

teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
só olho por olho e dente por dente vale
à lei assassina à morte que te matou
teu corpo pertence à terra que te abraçou


e hoje a Rua da Creche até já não é da Creche, é verdade que estão sempre a mudar o nome das coisas, a ponte, por exemplo, também já teve vários nomes e continua a ser a mesma, só lhe acrescentaram o tabuleiro do comboio e mais umas faixas de rodagem, e a creche que ali havia se calhar hoje já não existe, quem sabe, o que se sabe é que o edifício ainda há pouco tempo tinha inscrita no frontispício a palavra parvulário, que vem do latim parvus, que quer dizer criança, mas nada disto é importante,

a rua chama-se hoje Rua José Dias Coelho, escultor, desenhador e pintor, que ali foi morto a tiro de pistola por um agente da PIDE em 19 de Dezembro de 1961, dia em que a tropa portuguesa da Índia tinha ordens para resistir até ao último homem.

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