quinta-feira, setembro 22, 2005

CLARISSA

Aos dezassete anos podemos ler o romance da nossa vida. Basta que tenhamos aprendido a confiar nos livros e a compreender os mundos de sonho que nos revelam.

Li ´´Clarissa´´ , de Erico Veríssimo, na sala de leitura da Embaixada do Brasil, uma cave acolhedora na Avenida Sidónio Pais, onde se servia um café que não sabia à bica sofrida daqueles tempos e onde tínhamos sempre como música de fundo os ritmos coruscantes do país irmão.

Posso até nem ter compreendido o romance inteiramente, os sentidos do microcosmo da pensão de D. Eufrasina com as discussões entre o judeu Levinsky e o malicioso Nestor, as tiradas políticas do tio Couto e do major Pombo. O livro é de 1933, a seis anos de distância do começo da Guerra, e as sombras de Hitler e Mussolini pairam por vezes sobre os diálogos dos pensionistas. Mas havia Clarissa, menina-mulher à beira de fazer catorze anos, e Amaro, homem triste e inadaptado que vivia na contemplação da beleza sempre acompanhado da sua música e dos seus poetas. E isso para mim chegava.

Amaro, sorumbático, nocturno, é o contrário da imagem viva e alegre, luminosa, de Clarissa.

Amaro amou Clarissa. Terá Clarissa amado Amaro?

Só o podemos imaginar através dos pensamentos que o narrador omnisciente nos proporciona, como naquela tarde em que Clarissa entrou no quarto de Amaro e, diante do aquário do peixe Pirolito, entretanto trespassado por um raio de sol, lhe pediu para compor uma música.

Pensa Clarissa: ´´ Seu Amaro, se eu não tivesse medo de dizer uma bobagem, eu ia dizer uma coisa para o senhor. Ia dizer que o senhor é muito parecido com o Pirolito. Porquê? Porque eu sou amiga do Pirolito e ele nem fica sabendo: vive ali dentro do aquário, não vê ninguém e nem fica sabendo que eu sou amiga dele. Pois o senhor é bem assim: vive no seu quarto, fechado, não fala comigo, não me vê nem fica sabendo como eu sou sua amiga. O senhor é muito parecido com o Pirolito. Eu sei que isto é uma bobagem de menina, mas o senhor me desculpe: é o que eu sinto´´.

E pensa Amaro: ´´ Menina, tu nunca poderias compreender. Nem tu nem ninguém sabe quanta ternura há em mim. Eu hei-de ser sempre para vocês todos o seu Amaro melancólico e taciturno, o seu Amaro que trabalha num banco e faz música nas horas vagas, o seu Amaro que vai ler os seus livros à sombra dos plátanos, o seu Amaro que não sabe fazer um gesto de amizade nem de acolhimento. Vocês nunca compreenderão. E tu, menina, não podes compreender também a alegria íntima que me dás. Porque és poesia, és música, és… nem sei o que és… Tudo isto se pode sentir, tudo isto se pode pensar. Mas nada disto se pode dizer. Seria piegas, seria idiota, como seria idiota também eu dizer que te amo. Tenho mais do dobro da tua idade. E algumas rugas no rosto… Clarissa, se eu pudesse falar, se tu pudesses entender… Eu te diria que nunca desejasses que o tempo passasse. Eu te pediria que fizesses durar mais e mais este momento milagroso. A vida é má, menina, a vida envenena. Amanhã serás gorducha e prática como titia. Amanhã terás filhos, te transformarás numa matrona respeitável. Onde estará então a menina em flor que corria no pátio atrás das borboletas? Mas tu tens curiosidade de conhecer a vida… É natural. Talvez nem compreendas a significação deste momento. Quanta coisa eu teria para dizer se eu pudesse falar, se pudesse entender…´´

Depois deste livro, fica a amar-se a vida e a beleza de outra maneira. Dá-nos vontade de ler John Keats, o poeta preferido de Amaro, escrever poesia, dar o nome de Clarissa a uma filha.

Seguindo o pensamento de Amaro, tudo isto se pode sentir, se pode pensar, embora seja talvez demasiado piegas para ser dito.

Mesmo assim, aqui vai o poema feito muitos anos depois:


CLARISSA

I

Era numa Primavera
de glicínias roxas e pessegueiros floridos
Havia um papagaio verde
que gritava o teu nome
no alpendre da pensão
Fios de alegria na aragem morna
- os teus cabelos negros de adolescente
a luz do relevo do busto
que despontava
- Quando fizesses catorze anos
mamãe dava-te licença para botares salto alto

II

Os gramofones enchiam de música
a atmosfera soalheira
os bondes circulavam na cidade
sob acácias policromas
Se calhar era Domingo
Tu descobrias-te diante do espelho
bela
florzinha quase impudente

III

O poeta
lívido homem
lia poemas de John Keats
à sombra dos plátanos
e tinha sempre na cabeça
a Nona de Beethoven
pela Orquestra Sinfónica de Amesterdão
O poeta vivia muito sobre o piano
tirando notas que ninguém compreendia
e trabalhava como funcionário bancário
para poder pagar a pensão
comprar os livros de poemas
e o papel de música para compor
Sentava-se à sua secretária
no banco
para fazer lançamentos de deve e haver
conferir balancetes
lidar com as severas taxas de juro
com os enigmáticos descontos de letras
com as reformas e os protestos
Naquele tempo
não havia computadores
- tudo se registava manualmente
com canetas de pau e aparo
em cursivo inglês ou em letra francesa
na superfície de folhas marginadas
em circunspectos livros selados
O poeta não era
profissionalmente competente
porque tinha a cabeça cheia de versos
e poemas sinfónicos
e não corria um minuto
um instante sequer
que não pensasse no milagre do teu corpo
a fazer-se mulher

IV

Numa manhã
terminados os exames no colégio
deixaste a pensão
regressaste a casa
Nenhum raio de sol
voltou a trespassar de luz
o aquário
Estrídulo
o papagaio verde
continuou a gritar o teu nome
no poleiro do alpendre
E as folhas dos plátanos
ávidos olhos
leram nos poemas
o bisel da paixão
O piano
esse
nunca deixou de tocar
sobre os alçapões
do sentimento mudo

D.E.

1 comentário:

Clarissa disse...

Adorei a postagem!!! Os poemas transmitem bem a atmosfera que lemos no romance. Aliás, meu nome é Clarissa por causa deste livro!