quinta-feira, agosto 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VII )

Há quem não lhe aprecie o estilo, os temas, a atitude de polemista que não fugia à luta e nunca ia por onde o mandavam ir. Amado por uns, detestado por outros, foi professor durante uma vida numa remota cidade do Alto Alentejo. Dramaturgo, poeta, ensaísta e principal animador da histórica revista “presença”, é talvez como romancista que menos é conhecido.
Leio agora o ciclo romanesco A Velha Casa – um misto de ficção e autobiografia que o autor considerava a obra capital da sua produção literária. Vou no terceiro livro – Os Avisos do Destino – e passo por episódios já encontrados em Confissão dum Homem Religioso ou nas Páginas do Diário Íntimo, escritos autobiográficos, como se o imaginário não fizesse sentido sem a luz do real, como se à vida não bastasse vivê-la e sempre se tornasse necessário dar-lhe visos de sonho. Este homem sonhou de mais e viveu de menos. Ou, pensando melhor, talvez tenha vivido na plenitude, se é verdade que, como disse o Poeta, o sonho comanda a vida.
Ficou conhecido por José Régio, um pseudónimo tirado do seu nome José Maria dos Reis Pereira. E nem aqui se distanciou de si mesmo.

segunda-feira, agosto 18, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )

Encontramos em Madame Bovary um episódio impressionante, de uma obscenidade excessiva, que atira o adultério de Emma e a perfídia dos seus amantes para o plano singelo das coisas comuns. Trata-se da operação ao pé boto do infeliz Hippolyte, um “acto médico” de Charles Bovary que acarretou ao paciente a consequência natural de uma gangrena: a amputação da perna.
Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.

domingo, agosto 17, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( V )

Bela tarde de sábado passada com o Fervor de Buenos Aires de braço dado com o grande poeta argentino. Deu para lembrar Bernardo Soares e as suas viagens "com a alma" (por oposição a viajar "com o corpo"): Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente de quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma.
Leio em Borges: Las Calles de Buenos Aires / ya son mi entraña. Fico com a cidade dentro de mim. E penso: como ainda há gente que insiste em partir de férias!

sábado, agosto 09, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 14 )

De um dia para o outro as paredes da aldeia encheram-se de cartazes com as fotografias dos líderes políticos, enquanto o chão se coalhava de coloridos rectângulos de papel, de diversos tamanhos, mostrando os programas dos partidos e as listas de candidatura. Largas faixas de pano atravessavam as ruas à altura dos beirais dos telhados, suspensas pelas extremidades nos candeeiros de iluminação pública, deixando cair sobre os moradores relâmpagos de frases curtas e incisivas, apelos ao voto e ínvias promessas de felicidade. Era a máquina da propaganda eleitoral em toda a sua força.
Logo nos primeiros dias da campanha, o Presidente da Câmara veio à aldeia em demanda de votos para um novo mandato. Trouxe consigo, para recrear o povo, um conhecido grupo coral de mineiros que desfilou pelo largo principal com a dolência dos seus cantares, os homens movendo-se muito lentamente, de braços dados, com os fatos de ganga, os capacetes escuros e as lanternas, os lenços vermelhos atados ao pescoço e estendidos em triângulo sobre a largura dos ombros. Entre a população, para que não houvesse dúvidas de quem organizara o evento, distribuíam-se esferográficas, sacos de plástico e outros brindes gravados com o nome e a fotografia do candidato. À noite, na sociedade recreativa, foi oferecido um jantar aos eleitores, tendo discursado o Presidente da Junta, um representante dos donos do empreendimento e, por último, muito inflamado, o Presidente da Câmara.
Foi enquanto este fazia a sua alocução que se soube do falecimento de Daniel. Acontecera durante a tarde, mas só à noite, quando entraram em casa para lhe levar o jantar, deram com o corpo estendido sobre a cama, como se estivesse a dormir, o pescoço e os membros superiores já tomados pela rigidez post mortem. Entre os amigos e vizinhos que participavam do repasto, a notícia foi passando de mesa em mesa, gerando-se alguma perturbação e natural desinteresse pelas palavras do orador. Este, estranhando o comportamento do auditório, fez uma pausa, ao mesmo tempo que sorvia uns golos de água, procurando saber junto de um assessor qual o motivo daquele rumor que percorria a sala. E tendo sido informado do sucedido, logo abriu um parêntesis na oratória para se associar ao pesar da aldeia pelo falecimento daquele seu filho, o que foi feito com grande eloquência e aparente emoção, embora não conhecesse o defunto de nenhum lado e nem sequer soubesse o seu nome. Assim, desta forma e por estas singulares razões, é que Daniel recebeu homenagens fúnebres, do alto de um palanque, no dia da sua morte. Foi mais uma vítima da subida das águas.
Entretanto, havia um problema que preocupava os donos do empreendimento e que o Presidente da Câmara pretendia resolver como grande trunfo eleitoral: era o caso daquele estranho povo de pastores que fora desapossado das suas terras para nelas se edificar a nova aldeia. O conflito com os habitantes de Novo Vilarinho, ocupantes forçados dos seus ancestrais lugares de pastoreio, tinha ficado em suspenso depois da intervenção da Guarda e de algum trabalho negocial feito com os líderes da revolta. A paz, no entanto, não parecia segura. Os pastores continuavam a reclamar um território alternativo para a subsistência dos seus rebanhos, pretensão que se revelava bem difícil de satisfazer, dado o valor económico entretanto adquirido pelas terras com as infra-estruturas de regadio que a barragem permitira criar.
As exigências dos pastores eram apoiadas por algumas forças políticas da oposição e pelas organizações ambientalistas, correntes de opinião que os donos do empreendimento se tinham habituado a não menosprezar no complexo processo que precedera a construção da barragem e o enchimento da albufeira. Agora, porém, que a obra tinha atingido os seus objectivos primários, que o grande lago era uma realidade e as populações deslocadas se acomodavam às suas novas casas, já eles pareciam não recear qualquer sucesso que lhes embaraçasse os planos, os quais consistiam na rápida expansão das áreas irrigadas e no incremento da produção de electricidade para todo o país e até para o exterior. Portanto, bem poderiam clamar no deserto os descrentes da sua política de progresso. Tinham aceitado salvar uma grande quantidade de oliveiras centenárias e uns poucos monumentos megalíticos; deixaram sob as águas as pedras escuras do milenar castelo, mas puseram a salvo a igreja matriz e as campas do cemitério; os deslocados haviam sido alojados numa aldeia nova, dispondo de locais de culto religioso, de espaços de convívio, de médicos e de apoio psicológico; ninguém tinha ficado mal e a verdade é que só praticamente os velhos, uma espécie em vias de extinção, demonstravam alguma resistência em se adaptarem à nova realidade. Havia então que resolver, como se de um pequeno detalhe se tratasse, a questão dos pastores e dos seus rebanhos, ou, melhor dizendo, dar a ideia de resolver, pois entregar a uma horda de queijeiros e produtores de lã terras com aptidão para uma agricultura de alto rendimento, era solução que não ousavam admitir.
Conhecedor das estratégias do empreendimento, apelou o Presidente da Câmara à cooperação entre as diferentes culturas. E falou de formação profissional, de reconversão para uma agricultura moderna, chamando a atenção para aquela força de trabalho – a dos pastores – que, devidamente formada, poderia responder aos desafios lançados pelos novos investidores, muitos deles vindos do país vizinho, gente com ideias avançadas, com uma visão apurada da economia e dos mais exigentes modelos empresariais. De todos estes juízos se ia compondo a intervenção do autarca, seguro de que não faltariam as ajudas e os fundos comunitários para obrar no seu concelho a revolução tranquila com que sonhava. E as suas palavras pareciam agradar, tanto quanto era possível avaliar pelos aplausos que ia recebendo.
Apenas um homem, um jovem psicólogo em serviço na aldeia, se levantou do seu lugar, como que revoltado, quando o discurso presidencial atingia o seu clímax. Saiu intempestivamente da sala, tornando-se assunto de muitas conversas naquela noite e nos dias que se seguiram.