segunda-feira, novembro 29, 2010

"O BOM INVERNO" de JOÃO TORDO

Sábado, 27 de Novembro: - Apresentação do romance "O Bom Inverno", de João Tordo, na Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana (Cascais).

domingo, novembro 28, 2010

EXCERTOS (2)

Na noite que se seguiu ao funeral de Flora, sonhei com ela. Vi-a, como sempre, com as suas calças de ganga e o seu casaco de fazenda aos quadrados em tons de cinzento. Só que no desassossego do sonho, já não era Flora que eu via, mas M., sorrindo com os seus dentes muito brancos, usando o colar e os brincos que eu lhe trouxera de São Paulo quando ali participei num congresso de literatura autobiográfica.
Li uma vez, já não sei em que livro, que só quando vemos os mortos é que começamos a perdoar os vivos. Eu acordei sobressaltado, mas passado aquele momento crítico em que viajei do sonho para a realidade, parecia que começava a perdoar, a compreender a fuga apocalíptica de M. e a aceitá-la como se tivesse sido a mais acertada decisão da sua vida.
Não sei até que ponto este meu novo estado de espírito resultava da leitura do diário de Flora. Por mais de uma vez, lendo sofregamente aquelas páginas, parecera-me que eram pedaços de mim que ali se encontravam expostos. Talvez me possuísse o desejo mórbido de querer descobrir nos dramas dos outros os contornos do meu próprio drama. Ou então tudo não passava de uma necessidade de me encontrar, uma tentativa desesperada de compreender a vida, buscando no buraco do meu fracasso as explicações para o erro e a frustração.

sexta-feira, novembro 26, 2010

EXCERTOS (1)

Com as incidências recentes, a progressão da minha tese limitava-se a cumprir, como numa greve, os serviços mínimos. Lia o diário do poeta pela enésima vez, mais para me confortar do que para dele extrair elementos para o meu trabalho. Deparava-me com a solidão em que tinha vivido um grande espírito, e fortalecia em mim a ideia de que a felicidade era inimiga do estudo e da criação artística. Como de certa forma me sentia doente, segui o conselho de Blaise Pascal: faire le bon usage des maladies. Foi assim que comecei a escrever esta narrativa, não propriamente em jeito de catarse, mas para tirar o melhor partido do mau momento que atravessava, pensando atirá-la, uma vez publicada, à cara incrédula e quiçá arrependida de M.
Impus-me a obrigação de escrever, no mínimo, uma página por dia, entre seiscentas e setecentas palavras. Um objectivo modesto, sabendo como sei que há escritores que vão às duas mil e mais palavras em cada jornada de trabalho. De qualquer forma, eu não me considerava um escritor, era alguém que estava simplesmente a escrever, além de que tinha de reservar algum tempo para prosseguir com a minha tese de doutoramento. Como entretanto me tinha reformado, deixei os pequenos trabalhos que mantinha como formador e passei a dedicar-me inteiramente aos livros e à escrita. Pela primeira vez na vida, abraçava o ócio e punha de lado o negócio.

terça-feira, novembro 23, 2010

LA ROCHELLE

Recebi notícias de La Rochelle, cidade aonde espero voltar em breve, em especial à Île de Ré, se o tempo for de Verão e os dias estiverem desanuviados.
Vendo esta imagem, veio-me à lembrança velhas leituras sobre o dramático cerco da cidade nos anos de 1627 e 1628 – as memórias do Cardeal Richelieu e o episódio muito ficcionado de Alexandre Dumas em “Os Três Mosqueteiros”. Há gente assim, que não se cansa de escavar no fundo dos tempos, como se vestisse uma gabardina para sair para a chuva.

quinta-feira, novembro 18, 2010

UM LUGAR

Muitas vezes o tenho imaginado assim, um lugar trespassado de névoa e povoado de árvores nuas de ilusória materialidade. Do que não conhecemos só podemos formar ideias espúrias, pelo inevitável desajustamento entre o que possa ser ou não ser e o nosso intrínseco desejo de imaginar o inimaginável.
É triste permitirmo-nos perder alguém. É triste ver alguém partir na idade de ouro.

terça-feira, novembro 16, 2010

O PRIMEIRO DIA

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Da canção de Sérgio Godinho

domingo, novembro 14, 2010

LEITURAS DE DOMINGO


Fora das amarras de um casamento, ou da sinistra ilusão do amor, poderíamos estar juntos como companheiros de vida. Não existia momento que mais prazer me desse do que encontrarmo-nos depois do trabalho dela no jornal e bebermos uma cerveja num lugar qualquer da baixa da cidade, discutindo as trivialidades do dia-a-dia, trocando carícias e descobrindo, todos os dias, coisas novas no outro, como dois animais que se vão farejando e rodeando até se amarem.
JOÃO TORDO, Hotel Memória, QuidNovi, 2ª edição, Junho de 2008, p. 118.

domingo, novembro 07, 2010

MAGIA DE AFASTAMENTO

Não procures nem creias: tudo é oculto.
(Verso do poema “Natal” de Fernando Pessoa)


Numa noite do passado mês de Agosto estive numa vivenda de Sintra onde se realizam sessões de espiritismo. A vivenda é propriedade duma senhora inglesa que se dedica a estes jogos do oculto, sendo frequentada por médiuns, magos e outros agentes do sobrenatural. Por mim, nunca me apanhariam em tal carrossel, tendo aceitado ir apenas por insistência da minha professora S., investigadora da vertente esotérica da obra de Fernando Pessoa, que ali comparecia em demanda de subsídios para o seu trabalho de pós-doutoramento.
Pelo que nos foi dito, esperava-se naquela noite chegar à fala com o espírito de Henry More, filósofo inglês do século dezassete com quem o autor de “Mensagem” se correspondeu em certo período da vida, embora não estivesse posta de parte a hipótese de o espírito múltiplo de Pessoa, ele mesmo, poder também ser chamado ao diálogo mediúnico. A minha professora não acreditava cegamente nestes intercâmbios com o além, mas animava-a uma curiosidade intelectual, desejosa de ver até onde as coisas poderiam ir.
Chegámos à dita vivenda pelas onze horas da noite, depois de nos termos confortado com queijadas e chá num conhecido estabelecimento local que tem o nome dum pássaro. O ambiente estava carregado dos mais esquisitos cheiros, sentia-se um hálito do além, enjoativo e mágico. Um interlocutor astral praticava escrita automática, enchendo cadernos de papel quadriculado de copiosas frases garatujadas. Confesso que me intimidei com o aparato dos móveis, com a penumbra que descia pelas paredes cinzentas, com a palidez de certos rostos que vagueavam na casa.
Pouco mais vi para além do que acabo de relatar, tendo ficado grande parte do tempo numa pequena sala pesadamente mobilada, aguardando sentado o fim da sessão mediúnica a que a minha professora assistia.
Foi então que se abeirou de mim um jovem de calças de ganga e camisa às florinhas verdes e amarelas que se apresentou como mago, seguidor das ideias de Aleister Crowley. Sempre imaginara os magos com um trajo formal, mas, pelos vistos, até nesta classe se têm registado grandes alterações na maneira de vestir… Sentou-se ao meu lado e disse-me: “Dá-me os teus braços”. Embora estranhando o pedido, estendi-os na sua direcção. Ele segurou-os com os dedos na região dos pulsos, como se aferisse o ritmo cardíaco, fechando os olhos e sibilando impercebíveis vocábulos. E perguntou, ao fim de algum tempo, embora eu sentisse que não esperava qualquer resposta da minha parte: “Como está a tua vida conjugal?”. Fiquei calado. Então acrescentou: “Há uma mulher do Norte, amiga da metade de ti, que te traz sob o efeito de uma magia de afastamento”. Não sei se me deixei rir ou se me pus ainda mais sério. O mago, imperturbável, concluiu: “Interesses obscuros, inconfessados desígnios”. Posto o que girou para outra sala, deixando-me entregue ao seu enigmático oráculo.
A noite acabou sem mais sobressaltos. A minha professora saiu da sessão de espiritismo de faces afogueadas, vindo-me à ideia a pobre ceifeira do poema de Pessoa. Eu sempre imaginei as ceifeiras de faces afogueadas, ceifando à calma, embora a do poema se limite a cantar, na sua alegre e anónima viuvez, nada dizendo o poeta sobre as suas faces. Deixámos a vivenda silenciosos, sem comentarmos as incidências da noite. Levei-a a casa, onde, segundo me disse, o marido a esperava com ansiedade.
Hoje telefonei-lhe a contar umas certas coisas que me aconteceram, justificando-me do atraso do meu trabalho, um capítulo da tese que prometera entregar-lhe e que ainda não ultrapassara a dimensão de umas escassas páginas. Falei-lhe pela primeira vez da magia de afastamento descoberta pelo mago, a qual afinal dera resultado, e da mulher do Norte que eu identificava com alguém que conhecia como frequentadora de bruxas e videntes, leitora de livros herméticos e de outras inquietantes prosas. Então contou-me a minha professora que, naquela noite, também o mago lhe vaticinara um preocupante sucesso que tinha acabado de concretizar-se. Suspirou, e disse-me: “Sabes, Manuel, nós não acreditamos em bruxas, mas lá que as há, há”.

quarta-feira, novembro 03, 2010

A FORMOSA LUSITÂNIA - TOMAR


Do blogue http://www.camilo20.wordpress.com/ de Luísa Alvim.
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Chegamos a Píalvo (Paialvo) estação da interessantissima cidadesinha de Thomar. Os arrabaldes são bonitos, com graciosas estradas enverdecidas, e toda a campina em redor ás ondulações graciosas. O arvoredo é magnifico. Como os olhos se refrigeram n’aquellas copas de folhagens!
A terra faz muita differença do que é lá para Santarem. Aqui não ha aquelle faiscar cauzado pelas scintillações do saibro branco tão incommodas para a vista. Feracissima vegetação, flores e fructos por toda a parte em abundância. Desejava que visse os esplendidos cachos de uvas que comprei n’esta estação, a uma rapariga rozada, de ollios ardentes e chapéu desabado e empennachado demurtha e cravos.
O cacho estava mais perto de pesar dous arráteis que um. Os bagos todos perfeitos e grandes, verdes e levemente tintos de azul. «Quanto é?» perguntei eu quando ella m’o chegou a portinhola da carruagem, «é uma pataca, minha senhora». Uma pataca é quarenta reis. Eu poderia obte-lo por trinta, se regateasse, mas apenas encolhi os hombros, a la portugaise, e respondi: «Caro, muito caro». Ao que ella redarguiu com razão: « Porém, é tão boa». Estufa nenhuma ainda produziu mais perfeita pintura, nem mais delicioso sabor.
Tencionara eu, n’esta direcção, estender a minha viagem a Thomar, que contém diversos edifícios antigos, e outras relíquias do passado. Em uma das suas eminências está o convento de Christo, outrora habitado pelos cavalleiros d’aquella ordem militar.
É uma caza immensa com um templo notável por copiosas esculpturas no imaginoso estylo manuelino. Porção d’este grande senhorio monacal foi comprado pelo conde de Thomar, que actualmente rezide no castello de Gualdim Paes, primeiro mestre do Templo, que o arrancou aos mouros.
Ha aqui fabricas de fíação, e uma de papel.
O tortuozo rio Nabão deriva por meio da cidade, dividindo-a quazi a meio e dando-lhe um aspecto de Veneza em miniatura, com o seu largo canal.
Os moradores passam em botes, de um lado para o outro, e abordam ás ilhotas que estanceam na corrente. O canal forma onde quer que seja uma catarata, que se despenha sobre uma açude resvaladia.
Estas estradas aquosas são uma delicia no verão, quer a gente se vá de passeio por aquellas margens floridas, quer deslize em barco na limpida corrente.
O Nabão no inverno sobrepuja as margens e inunda ruas e cazas, mas, nos mezes estivos, é sitio lindo onde se pode viver, quazi de graça, do néctar e ambrozia dos seus fructos e flores. No frescor da manhã, póde-se subir em peregrinação até á Piedade, linda ermida no topo de uma montanha, para onde se sobe por duzentos e cincoenta degráos. De dez em dez, ha um patamar e um banco de pedra onde a gente pôde descançar e dar graças a « Nossa Senhora» que nos permitte ir chegando mais perto do seu relicário. Chegar lá acima não é medíocre proeza com tal clima; porém, quem o consegue é liberalmente recompensado com a belleza da capella e o magnifico ponto de vista.
Que aprazível me seria, deter-me ali!

(A Formosa Lusitania / por Catharina Carlota Lady Jackson ; versão do inglez, prefaciada e annotada por Camillo Castello Branco . – Porto : Livraria Portuense, 1877 . – 448 p., [20] grav. ; 25 cm.)