quinta-feira, novembro 23, 2006

UM ESTRANHO HOMICÍDIO

Era seguido por um bode de grandes cornos e pêlo farto, tão chegado às suas pernas que mais parecia bicho de espécie canina. Se parava, logo o animal detinha o seu andamento; se estugava o passo, procurando deixar para trás o seguidor, este dava corda aos cascos e o focinho barbudo não desgrudava dos calcanhares do bípede.
Há uma hora que andava nisto, noite de Lua cheia, por carreiros e estradas de terra de regresso a casa.
O bode aparecera-lhe numa curva do caminho, inopinadamente, como se tivesse saído das funduras do chão. Primeiro, imaginara tratar-se de animal tresmalhado do rebanho ou fugido de algum curral, outra explicação não encontrava, mas depois, observando o seu estranho comportamento e sentido o bafo gelado que lhe deitava nas pernas foi levado para outro campo de ideações.
Aqui anda coisa do diabo, pensou, passando os dedos sob a camisa pelo espaço aberto entre os botões, tocando no crucifixo e no sino-saimão pendentes do fio de prata que trazia ao pescoço. Se fosse homem de rezas, ter-se-ia benzido e pedido auxílio a São Jorge, intrépido matador de dragões e outras bestas ruins. Como não era, meteu a mão no bolso das calças e fez uma figa.
Cada vez mais perturbado com a estranha situação em que se via, chegou ao pé de uma velha casa abandonada onde, poisado numa estaca de vinha, piava um mocho. No alpendre da casa, pendurado numa trave, um rolo de corda grossa, aparentemente sem préstimo, sugeriu-lhe a maneira de se livrar do pertinaz acompanhante. Fez um laço que passou pela cabeça do bode, apertou, deu uma segunda volta, e prendeu a extremidade da corda, com engenhoso nó, ao tronco sólido de uma figueira.
O caprino pareceu aceitar com brandura a vontade do humano, como se revisse nele o próprio pastor, e até facilitou, deixando-se conduzir para junto da árvore. Mas quando se sentiu preso e bem preso, tentando libertar-se sem sucesso, o colar de corda a estrangular-lhe a garganta, tomou-se de ímpetos bestiais, modos assustadores, escoiceando como muar, saltando como se tivesse molas, investindo a cornadura contra o lenho da figueira, pobre vegetal, nunca os da sua espécie haviam sentido algo de tão terrífico e extraordinário desde o dia em que Judas Iscariote, apóstolo falso, se dependurou nos ramos daquela antepassada distante. A um esticão poderoso que pareceu abalar toda a árvore rompeu-se a corda e o animal desarvorou estrada fora levando lume nos cascos e levantando uma grande nuvem de pó.
Lembrou-se então de histórias que lhe contavam quando era menino. O triste fado dos que vagueiam à noite pelos caminhos, transformados em bichos quadrúpedes, atormentando os passantes com a sua presença deletéria. Espojam-se ao pôr-do-sol em pegadas frescas de animais e deixam sair o lobisomem que lhes mora na alma. Convenceu-se de que havia tentado medir forças com um lobisomem, um desígnio estulto, que poder teria um pobre mortal para enfrentar seres e forças sobrenaturais? Mas, ao mesmo tempo, sentiu sair de cima de si um grande peso por se ter livrado daquela indesejada companhia.
Durou pouco a sensação de alívio. Ao chegar a uma encruzilhada, escassas centenas de metros adiante, distinguiu à luz do luar um vulto corpulento de homem que jazia no chão. Chegou-se ao pé para ver e aí gelou-se-lhe todo o sangue do corpo. Tinha os dedos dos pés e das mãos curvos como garras, os olhos abertos e revirados, grossos pêlos saindo-lhe da cara, a boca torcida num ricto de dor. Ao pescoço, estranguladora, a corda com que tinha acabado de prender o bode.
Fugiu apavorado, não conseguiu dormir em toda a noite. Sentia medo e um enorme peso na consciência pela responsabilidade que lhe cabia naquela morte.
No dia seguinte, ao ter notícia da descoberta do corpo, apresentou-se no posto da Guarda e deu-se como culpado do homicídio.
D.E.
(Imagem obtida em jangadabrasil.com.br)

quinta-feira, novembro 16, 2006

O ELOGIO DA LEITURA

Lendo o romance Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, dei com aquela parte do primeiro volume em que Françoise, criada da senhora Octave na sua casa de Combray, maneja uma faca para matar um frango que resiste desesperadamente, apesar de ter o pescoço já praticamente separado do corpo. É pelos olhos de um narrador quando adolescente que a imagem nos é transmitida pelo autor. Lembrei-me então dos tempos de infância e da forma como via e sentia a morte que destinávamos aos animais. O que me perturbava não era o facto de se matar um animal para nos servir de alimento, desígnio que achava natural, mas sim a profusão de formas e meios que existiam para o fazer, como se quiséssemos aproveitar as nossas necessidades de sobrevivência para ensaiarmos diferentes métodos de roubar a vida a cada uma das nossas vítimas. Via matar galos e galinhas com uma lâmina afiada que os degolava, lentamente, o sangue escorrendo para uma tigela de barro. Os coelhos eram abatidos com uma paulada atrás da cabeça, agarrados pelas patas traseiras. Aos pombos, de cuja carne se fazia uma saborosa canja, apertava-se-lhes o bico entre o polegar e o indicador por cima de um estrebuchar de penas. Os porcos eram deitados sobre um banco comprido, amarradas as patas, bem seguros por robustos braços de homem, para que uma faca poderosa pudesse sondar-lhes o coração, cavando o grosso canal por onde singrava o sangue até ao vazadouro do alguidar. Aos carneiros e ovelhas metia-se-lhes um ferro afiado pelo alto da cabeça, deixando o animal prostrado, olhos revirados e língua pendente de um canto da boca, escorrendo baba, pronto para ser aberto, esfolado e esquartejado. Encontrei mais tarde nestas diferentes formas de matar um reflexo da inteligência humana, uma arte capaz de estabelecer para cada vítima o modus faciendi adequado, bem diferente dos processos usados pelos chamados irracionais para matar as suas presas, sempre da mesma forma, segundo modelos de sobrevivência e conservação das espécies radicados nos mais básicos instintos. Quando encontramos pequenos chumbos na carne de lebres e perdizes, anzóis e pedaços de fio na boca de peixes, deparamos apenas com manifestações dessa arte de matar que a espécie humana tão bem cultiva. Em relação aos nossos semelhantes também se desenvolveram técnicas de morte que primam pela variedade, pela escolha criteriosa, oportuna e conveniente, fundadas em tradições e pressupostos de raiz cultural e religiosa. Se hoje ninguém morre crucificado é porque essa foi a forma de morte infligida ao que veio em nome de Deus, e praticá-la seria atentar contra o que de mais profundo existe na nossa moral cristã; mas recorrer à forca, como os sistemas penais do mundo ocidental sempre fizeram, e continuam a fazer, é servirmo-nos de um método de matar que a insídia de Judas Iscariote, dependurado na triste figueira, parece legitimar. Entre os povos tupis do Brasil, como podemos ler nos textos de escritores e poetas do primeiro romantismo brasileiro, a condenação à morte consumava-se com um golpe desferido na cabeça do condenado com o tacape, uma espécie de poderoso cacete. A morte por envenenamento, praticada ao longo dos séculos, tem raízes profundas na herança cultural da Antiguidade Clássica: Sócrates, o grande filósofo de que nos fala Platão, foi condenado a morrer por envenenamento. Envenenada morreu Fedra nas tragédias clássicas de Eurípides, Séneca e Racine. Morreram na fogueira milhares de vítimas da intolerância religiosa e política. António José da Silva, o Judeu, comediógrafo, foi queimado em auto-de-fé na presença de D. João V. Gomes Freire de Andrade, conspirador liberal, foi mandado enforcar, tendo sido queimado o seu cadáver, pelos que governavam o Reino em 1817, conforme ensina a História e nos é revelado, entre outros, pelo texto dramático de Sttau Monteiro Felizmente há luar. Ao longo dos tempos, distantes e recentes, muitos conheceram a morte diante de pelotões de fuzilamento, sentados em cadeiras eléctricas, injectados, garrotados, sob o fragor de bombardeamentos e explosões, em desterros de fome e de sede. Grande é a criatividade humana nesta arte de matar semelhantes e dissemelhantes.
Quando nos pomos a ler um roman-fleuve como o de Marcel Proust, pode bem suceder que a propósito de um tema ou passagem do livro nos surja um pequeno rio de pensamentos e palavras. Pode até não passar de um simples regato. Mas esse fluir de águas, essa corrente do espírito, maneira de viajarmos por tempos e espaços, é um dos grandes tesouros que habitam os livros. É despertarmos ideias e sentimentos que estão dentro de nós, ligarmos o fio das emoções, deixarmos correr a escrita. Falarmos de morte, cantando a vida. Esse é um elogio que deve ser feito à leitura.
D.E.

quinta-feira, novembro 02, 2006

CÂNTICO IMPERFEITO PARA UMA TABERNA DE PROVÍNCIA

Vemo-lo seco de carnes, curvado sobre a torneira da pipa, tremendo-lhe nos dedos ancilosados o copo de vidro grosso que o esguicho vai tingindo de escuro. Sob uma lâmpada frouxa, enquanto larga sobre a tábua do balcão o avio do freguês com nome e registo de fiados inscritos num destrambelhado caderno de folhas de papel pardo, dá para notar que tem barba de vários dias, um olho baço onde há muito não se detém um grão de luz, uma camisa esfiapada e umas calças que não sendo justas nem largas estão presas à cintura por uma volta dupla de barbante.
Do lado de dentro do balcão há um alguidar de tremoços que ressumam sal e servem para puxar a pinga, uma pia onde os copos se passam por água e umas poucas garrafas sujas de vinho tinto com espessas películas secas agarradas aos fundos.
Não dá para perceber se a telefonia da taberna toca alguma moda conhecida ou se debita noticiários espúrios. Nestes lugares onde nos encontramos é tudo silêncio. Só podemos entender o que se fala pelo movimento dos lábios, ou pela linguagem dos olhos, ou pelos rictos que desenham a cara dos homens, trabalhadores de enxada, jornaleiros da gleba contratados na praça pública, as mãos cheias de calos e as gargantas com uma sede igual à da terra.
Nas paredes singram aranhas desajeitadas, alojadas em panos de teias, e há insectos que vêm à luz e que os homens procuram afastar com movimentos bruscos da cabeça e dos braços.
Há um bom bocado que a noite deu em cair sobre os telhados e as paredes das casas, envolveu a torre da antiquíssima igreja, encheu de breu todas as ruas e praças, o coreto, os mármores brancos das lápides do cemitério, a capela de Nossa Senhora do Desterro, as pontes e a fonte. A luz que se côa através das cortinas das janelas e sai das raras montras de lojas de comércio não ousa contrariar o seu império.
Pelo declive que leva à linha do rio sobe agora uma névoa muito clara e lúcida que tirante os voos rasantes de querubins em nada fica a dever à que se expande pelas alamedas destes lugares de onde observamos. Só que aquela, carregada de humidade terrena, é fria e dá cabo dos ossos. Encosta-se então a porta como remédio para o desagasalho, os fregueses ficam do lado de dentro, quem se quiser chegar que empurre as tábuas e entre.
Corre o vinho e o tremoço, muito fiado. De vez em quando, uma moeda cai na gaveta como um badalo choco. Gostaríamos de poder ouvir o que os homens dizem.
Vemos agora umas meninas que assomam à porta por onde se passa da casa para o espaço público da taberna. São puxadas para trás por dois braços fortes de mulher. Aquele lugar não é para elas.
Começa a fazer-se tarde, há um pedaço de tempo que nenhum freguês demanda aviamento, seja de bebidas fermentadas, abafados ou produtos de destilaria, que de tudo há na taberna para satisfação da clientela. Também se vendem pirolitos e laranjadas, mas estas qualidades são as que saem menos, procuradas apenas por mulheres e crianças a horas diurnas. São magros os dinheiros dos homens e os fiados são para arrumar na primeira ocasião. Quando são, folheia-se o caderno de papel pardo, vê-se onde está o nome, a data, o estrago feito, e realiza-se a paga.
Agora é muito tarde. Entra-lhe no corpo moído uma modorra feita de todas as canseiras do dia. Está sentado num pequeno banco com uma mão apoiada na torneira da pipa, cabeceando às arremetidas do sono, prestes a render-se, dorido das horas de trabalho nas terras da vinha, sachando as ervas daninhas, curando, enxofrando. É então que um freguês menos escrupuloso lhe surripia um copo de bagaço.
Entretanto, a névoa já se tornou cerração. Os homens começam a sair da taberna, cada qual para seu lado, casas e tugúrios da vila, casais próximos e menos próximos, apalpando caminhos, os olhos piscos de nevoeiro e álcool. Quem tem pernas monta-se em velhas bicicletas pasteleiras, quem não tem leva-as seguras pelo guiador, como quem conduz um animal pela arreata.
Vemos no relógio da torre da igreja que já passa das onze. Amanhã o trabalho começa ao nascer do sol.
Sai o último freguês, fecha-se a porta. As meninas já dormem?
O nevoeiro cerrado toma conta de tudo. Brota do escorredoiro do rio numa nuvem de muitos braços, mete-se em todas as ruas e vielas, espalha-se nas praças e terreiros, branco, muito branco, como nestes lugares de onde lançamos o olhar sobre a vida e a condição dos homens.
Na taberna há ainda uma frincha de luz que se escoa por baixo da porta, a única que agora vemos na noite da vila, arcano sinal à procura do céu.
Estamos à tua espera.


D.E.