quarta-feira, abril 16, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (13)

Naquela manhã, Josué saiu cedo de casa. Desde o dia da última sessão de terapia que não se sentia bem – uma dor de cabeça que lhe moía as têmporas e não dava sinais de regredir, apesar dos comprimidos que andava a tomar há mais de uma semana. Fechou a porta, embrulhou a chave no lenço como era seu hábito, e seguiu pelas ruas, um pouco ao acaso, sentindo que o espaço aberto e o ar fresco do dia lhe davam uma dose suplementar de resistência, uma outra força para enfrentar o sofrimento.
Atravessou o largo, passou rente à sociedade recreativa, tomando a rua que vai até ao terreiro da igreja e ao cemitério. Ali, sentou-se num degrau do cruzeiro a olhar a fachada do templo com o seu alpendre de telha-vã e a sua torre sineira. A manhã era uma várzea de luz e o voo dos pássaros riscava nos ares prenúncios de Primavera. Atrás, para lá do bloco escuro do museu, entrava pelos campos uma língua de água cinzenta e grossa, a superfície levemente ondulada, as pequenas ondas desfazendo-se numa babujem frouxa de encontro às pedras da margem. E pensou: Por pouco a água não lambia os muros do cemitério. Josué reparou nos ciprestes projectados na direcção do céu, e, por um instante, veio-lhe à memória o passamento de Jacob, o primeiro dos companheiros a partir depois da subida das águas. Repeliu a dolorosa lembrança e, levantando-se, recomeçou a andar, esboçando uma saudação fugaz para um grupo de forasteiros que atravessava o terreiro na direcção do museu.
Àquela hora, poucos moradores andavam pelas ruas, apenas se viam carros com pessoas de fora, gente que vinha de passeio ver a aldeia e os seus habitantes com o mesmo sentido de curiosidade de quem se dispõe a observar algo de inteiramente novo: uma ilha nascida no oceano por um qualquer fenómeno de origem vulcânica, uma cidade levantada depois de um cataclismo sísmico. E aprendiam, no livro aberto do museu, os nomes dos monumentos que para sempre tinham ficado sob as águas do lago: os menires e as antas, o castelo, as artes da pesca fluvial, os barcos do rio, as chaminés e os telhados das casas, tudo o que era a vida e a alma do povo. Os forasteiros, reparou, traziam máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, riam e falavam alto, gravavam, contra os desvios da memória, as imagens felizes de que são feitas as viagens.
Josué deixou o terreiro da igreja e voltou à rua, percorrendo-a na direcção contrária, no sentido do centro da aldeia. Ao chegar junto dos muros da pequena praça de touros, encontrou Daniel, ensimesmado, alheio a tudo o que o rodeava, como se já não fizesse parte daquele espaço e daquele tempo. Daniel, que sempre fora forte e soubera aceitar com estoicismo a infeliz condição de deslocado, tinha sofrido muito com a loucura de Jonas, seu companheiro de cavaco e pescarias. Começou a receber apoio psicológico no centro social do empreendimento, mas logo deixou de ir às sessões, ainda que muito instado para nelas comparecer. Vivia sozinho, e eram voluntários de uma qualquer instituição de apoio social que diariamente lhe vinham trazer as refeições e fazer os arranjos da casa. Daniel, que em tempos fora o mais querido de todos os camaradas, que andara com eles pelos caminhos do sonho, enfrentando provações que sempre soubera ultrapassar com dignidade, era naquele momento uma ruína de homem que inspirava a mais dolorosa das comiserações. Josué aproximou-se dele e abraçou-o. Colhia naquele transe todo o sentido de um adeus definitivo, os seus braços sobre os ombros murchos do companheiro, puxando-o para si como se quisesse metê-lo no coração, as palavras que não era capaz de dizer, os olhos turvos de febre ou de choro, e uma vontade de se deixar ficar ali no indizível transporte daquele abraço. Despedia-se, mas não sabia qual dos dois ia partir.
A manhã ia já adiantada. Na rua principal, a caravana automóvel de um partido político estendia nos ares, a partir de altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho de um carro, uma corda de palavras de ordem e cantilenas de esperança. Só então Josué percebeu que tinha começado a campanha eleitoral.
D.E.