domingo, abril 30, 2006

OS VELHOS

SUSANA SURPREENDIDA PELOS VELHOS , painel de azulejaria do século XVI, Palácio da Bacalhoa, Azeitão
Que os velhos podem ser perigosos elementos anti-sociais, perturbadores da ordem natural das coisas e violadores dos princípios morais de qualquer comunidade, já o divisara o profeta Daniel no escrito bíblico sobre a casta Susana (Daniel, versículo 13, 1-64). E nem sequer nos é permitido duvidar da razão de Daniel quando interveio em defesa de Susana: uma vez que o seu nome tem o preciso significado de “Deus julga”, julgando o profeta pela interposta pessoa de Jeová, logo se exclui qualquer hipótese de erro humano que pudesse desfigurar a verdade dos factos ou atrapalhar o correcto juízo sobre as acções praticadas.

A Susana que Daniel defendeu era jovem, bela e fidelíssima esposa, uma tríade de atributos de conjunção nem sempre observável. Era casada com Joaquim, rico comerciante judeu de Babilónia.

A casa de Joaquim e da casta Susana era frequentada por dois velhos juízes que se diziam conselheiros do povo mas que em verdade eram uns ociosos, libertinos e depravados como só os velhos sabem ser. Pensaram os dois em atentar contra a castidade de Susana. E na primeira oportunidade que se lhes deparou, apanhando-a sozinha a tomar banho num pequeno lago do jardim, tentaram consumar os seus lúbricos intentos.

Não conseguiram nada os velhos. Não que lhes faltasse o vigor, pois estavam ali para as curvas como já se percebeu, mas porque se opôs com tenacidade a casta Susana. Esta, no entanto, não se livrou de se ver envolvida numa situação dúbia para cujo esclarecimento e reposição da verdade foi vital a intervenção do profeta.

Serve esta imagem para ilustrar a periculosidade dos velhos. Entre nós, longe vai o tempo em que eles se dedicavam a práticas inócuas como passear os netinhos ou visitar os filhos. Hoje quem os quer ver é a caminho do Algarve ou de Benidorm, gozando as generosas reformas com que se sangram os fundos da Segurança Social e se debilitam as contas do Estado, sempre com a esperança de vida, esse pesadelo de qualquer governo justo, a crescer de forma descontrolada, em roda livre, prolongando a folia para além dos limites do razoável. Anda preocupado o governo, andam preocupadas as pessoas de bem. Tudo por causa dos velhos, esse género que não respeita os seus prazos de validade e perversamente se dilata no tempo a sorver prestações sociais suplementares, catorze meses ao ano, assistência médica e medicamentosa, cirurgias, custando os olhos da cara aos orçamentos públicos.

Felizmente temos um governo avisado, consciente dos perigos e das ameaças que os velhos representam. Pois se quereis gozar, cadáveres adiados estendidos ao sol nas areias das praias, refastelados nos bancos de jardim, trabalhai, o Estado não tem a obrigação de vos sustentar!

Entretenham-se os jovens com uns estágios profissionais, uns cursos de formação, nada que lhes conceda um estatuto de emprego certo e duradouro. Mas os velhos, esses, terão de dar o litro. Reformas nunca antes dos setenta, de preferência até mais tarde. Trata-se de gente ameaçadora, capaz do pior. Há que mantê-los ocupados e de rédea curta. Sabe-se lá em que desvarios congeminam quando os vemos, aparentemente calmos, nos jardins das cidades, cavaqueando ou jogando às damas. Nunca fiando. Ainda bem que a este respeito, para tranquilidade de todos nós, o governo não dorme…


D.E.

sexta-feira, abril 28, 2006

IDEIAS DE EUROPA



Na mitologia latina Europa é uma princesa de Sídon por quem se enamora Júpiter, o rei dos deuses. Para a seduzir, transformou-se o deus num alvo e manso touro, surpreendendo-a quando se divertia junto ao mar. Atraída pela beleza e pelo ar inofensivo do extraordinário animal, subiu Europa para o seu dorso, não esperando ele por outra coisa para partir à desfilada pelas águas do mar. Só parou em Creta, e aí se consumou a união entre o lascivo deus e a jovem princesa.

Europa princesa, rainha. Foi assim que a viu Sebastian Münster, geógrafo e cartógrafo alemão (1488-1552) ao publicar em Basileia a sua Cosmographia Universalis, apresentando, a par de vinte e seis mapas, a imagem alegórica da rainha Europa. E se um braço é a Itália, tendo na mão a Sicília, e o outro se projecta na direcção da Dinamarca e da Escandinávia, a cabeça é a Península Ibérica e os olhos são de Portugal.

Bem diz Camões no canto III de Os Lusíadas:

Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.”

E Fernando Pessoa, na Mensagem, em admirável exercício de intertextualidade:

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar sfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.”

Ideias de Europa. Como em David Mourão-Ferreira, Retrato de rapariga:

“Muito hirta de pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó de arroz um pó de biblioteca

surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris em Liége em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar num museu numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa”

D.E.

terça-feira, abril 25, 2006

A FELICIDADE DOS AMANTES

Vai para dois anos que me dedico a escrever cartas de amor, de manhã à noite, intensamente, no pequeno gabinete que aluguei num velho edifício de escritórios duma rua da Baixa. Mas devo dizer, como prévio e indispensável esclarecimento, que apesar da abundância da minha produção epistolar, toda ela sobre estados de alma amorosos, não me encontro apaixonado por ninguém nem julgo que tal me venha a acontecer nos tempos mais próximos. Trabalho as cartas de amor, moldo os sentimentos, forneço as chaves com que se abrem os corações mais empedernidos e se jogam os lances das inseguras paixões, mas tudo de uma forma profissional, não me deixando envolver, respondendo às solicitações, que são muitas, da minha vasta clientela. Sou, portanto, um profissional do amor. Escrevo as cartas que os apaixonados não sabem escrever, e cobro por isso os meus honorários.

Tudo começou quando aquela rapariga magra de olhos bonitos, que frequentava o café onde eu costumava estudar, se abeirou de mim com um pedido fora do normal: que lhe escrevesse uma carta para o namorado, uma carta de amor, que ela já tinha tentado e não lhe saía nada. Como eu era estudante de Letras, quase a terminar o curso, pensava encontrar em mim a competência legítima para dar a volta ao assunto. Foi então que comecei a exercitar-me nas singulares modulações do discurso amoroso: enleei-me nas metáforas, usei as anáforas e as sinestesias, voguei na crista da onda das expressões hiperbólicas como um surfista sobre uma prancha de afectos. A carta agradou. A seguir, foi-me pedida outra carta, e outra. A notícia da excelência dos meus escritos passou de boca em boca. Quando dei por mim estava a escrever cartas para um vasto público que frequentava o café ou a ele era atraído pelo poder da minha escrita.

De começo, todo este trabalho era feito de forma desinteressada, por simples vontade de ajudar, mas não tardou muito que alguns dos meus consulentes começassem a pagar-me o café ou a cerveja, a trazer uma garrafa de uísque como oferta, a deixar uma nota de cinco ou de dez euros. Era o reconhecimento pelos serviços prestados. Por essa altura, lendo um matutino de grande circulação, dei conta, na página de anúncios, do grande número de videntes, curandeiros, espiritualistas, génios de virtude e de conhecimento que ofereciam ajuda para toda a classe de problemas humanos: amor, dificuldades sexuais, droga, negócios, desavenças conjugais. Grande deveria ser o desamparo, a fragilidade, o desconcerto da vida dos homens para uma oferta tão copiosa de ajudas espirituais. Foi quando me lembrei de abrir um gabinete de aconselhamento amoroso e confecção de cartas de amor. Pareceu-me propósito natural, honesto, pois não trabalhava com ciências ocultas ou ilusões de curas, com enganosas imagens do sobrenatural, limitando-me, com os pés bem assentes na terra, a usar o inexcedível poder da palavra escrita para captar e conciliar o apetecido amor.

Abri o meu gabinete na Baixa, deitei uns anúncios nos jornais, criei um sítio na Internet. Como sou respeitador dos desígnios fiscais, colectei-me e comecei a passar recibos verdes. E se na mesa do café já ia tendo algum movimento, no meu gabinete – decorado com esmero, com uma estante onde se destaca, em preciosa edição, a Ars Amatoria de Ovídio, e, na parede, o brilho de uma gravura de Dido e Eneias amando-se na gruta mítica – ali, o negócio começou a prosperar a olhos vistos. Era só facturar.

A rapariga magra de olhos bonitos tornou-se nesse meu princípio de vida a melhor cliente do gabinete. Vinha todas as semanas com um novo pedido: uma carta, um simples bilhete, um poema. Sim, também comecei a fazer poemas de amor, um preço ligeiramente mais alto, está bem de ver, dado tratar-se de género especioso e de mais seguro efeito. Ela ficava a olhar-me, muitas vezes com a expressão própria de quem vive uma grande paixão. Mas também acontecia aparecer para pedir um conselho sobre um vestido ou uma ementa romântica, matérias que não estavam propriamente dentro da minha especialidade mas que procurava atender, sem cobrar qualquer preço, dado tratar-se de cliente sempre merecedora de uma atenção comercial.

Entretanto, a partir das notas tiradas nas consultas comecei a interessar-me por uma espécie de sociologia do amor. Tendo eu clientes de ambos os sexos, verifiquei que entre as mulheres eram jovens as que me pediam cartas e poemas, enquanto da parte dos homens era por volta da idade madura que tal necessidade se manifestava. O que sugere como é diferente entre os sexos a forma de sentir e viver o amor. Talvez volte a este tema, se puder, em próxima oportunidade…

Passei a viver, como se pode imaginar, um tempo de prosperidade e de grande satisfação pessoal. Sabia que as minhas cartas ajudavam a melhorar a vida das pessoas que me procuravam, ordenando sentimentos e paixões com resultados de sucesso. Os meus clientes, resolvidas as suas inseguranças, estabilizadas as vidas amorosas, habituaram-se a passar pelo gabinete para me comunicarem os seus novos estados de alma. Deixam sempre pequenas lembranças em manifestação de gratidão, o que me toca profundamente. E eu sinto-me satisfeito pela felicidade de todos como se se tratasse da minha própria felicidade.

Um problema, porém, veio ensombrar a alegria dos dias. Uma manhã, quando menos esperava, entrou-me no gabinete a rapariga magra de olhos bonitos. Vinha transtornada, percebi logo. Já lhe conhecera muitas expressões apaixonadas, já lera muito nos seus belos olhos, mas nunca a vira como naquele dia. Antes que pudesse articular palavra, perguntar ao que vinha, se havia crise ou desenlace amorosos, jogou sobre a secretária um grande maço de cartas e poemas, tudo o que tinha encomendado e eu havia escrito. Receei por momentos que a devolução da mercadoria pudesse significar a existência de defeito, inadequação de forma ou de conteúdo, avaria superveniente, deterioração do sentido, sei lá, são vertiginosas as idades do amor, nesta matéria tudo é mudança, variedade, novidades, o que hoje está certo está amanhã errado, mesmo o mais experiente dos conselheiros pode falhar. Até que ela, reprimindo a respiração ofegante, disse:

- Tome, fique com elas. Foi para si que as encomendei.

Saiu porta fora e nunca mais a vi. Só então dei conta de que a rapariga magra dos olhos bonitos estava apaixonada por mim. E logo desde os tempos das primeiras cartas, as que lhe escrevi ainda no café.

Se ao menos eu tivesse descoberto a tempo, antes de me ter metido nesta empresa que cura dos amores alheios e desleixa os próprios, talvez a minha vida fosse hoje diferente. Mas agora é tarde. Sou um profissional do amor, tenho responsabilidades perante os clientes, não posso deixar-me envolver. Talvez a minha vida mude, talvez eu venha ainda a escrever cartas de amor na própria voz, a saber mais de mim e menos dos outros. Mas para já não devo abandonar o barco: na modesta parte que me cabe, sou responsável pela felicidade dos amantes.
D.E.

25 DE ABRIL, SEMPRE !

sexta-feira, abril 14, 2006

BREVE NOTÍCIA DO HOMEM QUE SALVOU A CUSTÓDIA DE BELÉM

D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha

Pense-se no que seria o nosso património artístico e literário sem três peças fundamentais: Os Lusíadas de Luís de Camões, o políptico Veneração a S. Vicente de Nuno Gonçalves e a Custódia de Belém de Gil Vicente. Seria um património menos rico, imaginariamente despojado de tão importantes obras. E no entanto, quando hoje lemos a grande epopeia camoniana ou apreciamos no Museu Nacional de Arte Antiga os painéis do pintor régio de D. Afonso V e o esplendor artístico da obra-prima da ourivesaria manuelina, não nos passa sequer pela cabeça que esses três tesouros já estiveram em risco de perdição.

Os Lusíadas, quando a embarcação que trazia Camões de Macau para Goa – onde iria cumprir pena de prisão por irregularidades cometidas no desempenho das funções de provedor dos defuntos e ausentes – naufragou na foz do rio Mecom, na costa do Cambodja. Diz a tradição que Camões salvou o manuscrito nadando apenas com um braço, segurando com o outro, acima da espuma das águas, o precioso trabalho poético.

Os painéis de Nuno Gonçalves, esses, jaziam abandonados num depósito em S. Vicente de Fora e talvez viessem a servir como tábuas de andaime ou pasto de lume se o pintor Columbano não tivesse dado com eles em 1882.

Quanto à Custódia de Belém, pilhada pela soldadesca de Napoleão e mais tarde devolvida pelos franceses, deu entrada na Casa da Moeda onde a descobriu, em risco de se converter em vil metal, D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, nobre de origem alemã, rei consorte de Portugal pelo seu casamento com a rainha D. Maria II.

Falemos um pouco deste homem que parece ter sido o salvador da Custódia de Belém. Ficou conhecido na História de Portugal pelo nome de Fernando II. Era uma personalidade de rara sensibilidade artística, desenhador de mérito, tendo apoiado os artistas plásticos da sua época através da compra de obras e da atribuição de bolsas para estágios de formação no estrangeiro. Foi graças à sua ajuda que Columbano estudou em Paris.

Em 1834, com a extinção das ordens monásticas, adquiriu D. Fernando o pequeno Convento de Nossa Senhora da Pena, em Sintra, fundação jerónima do tempo de D. Manuel I, e a partir desse núcleo lançou um projecto de edificação de um palácio de que foi comitente e em certa medida arquitecto – o Palácio da Pena. Saíram do seu risco muitas das soluções compositivas e decorativas desse palácio de conto de fadas, uma obra eclética e revivalista que dialoga com múltiplas estéticas, da arquitectura mudéjar granadina ao manuelino e ao neobarroco.

Foi um rei estrangeiro, mas isso não lhe diminuiu a importância nem o afecto que o País lhe dedicou. Não se limitou a ser uma figura decorativa, um rei consorte. Trabalhou em nome da cultura, deixou obra.

E impediu que a Custódia de Belém, essa miniatural catedral gótica, filigrana e poema, fosse muito provavelmente derretida.
D.E.