terça-feira, abril 25, 2006

A FELICIDADE DOS AMANTES

Vai para dois anos que me dedico a escrever cartas de amor, de manhã à noite, intensamente, no pequeno gabinete que aluguei num velho edifício de escritórios duma rua da Baixa. Mas devo dizer, como prévio e indispensável esclarecimento, que apesar da abundância da minha produção epistolar, toda ela sobre estados de alma amorosos, não me encontro apaixonado por ninguém nem julgo que tal me venha a acontecer nos tempos mais próximos. Trabalho as cartas de amor, moldo os sentimentos, forneço as chaves com que se abrem os corações mais empedernidos e se jogam os lances das inseguras paixões, mas tudo de uma forma profissional, não me deixando envolver, respondendo às solicitações, que são muitas, da minha vasta clientela. Sou, portanto, um profissional do amor. Escrevo as cartas que os apaixonados não sabem escrever, e cobro por isso os meus honorários.

Tudo começou quando aquela rapariga magra de olhos bonitos, que frequentava o café onde eu costumava estudar, se abeirou de mim com um pedido fora do normal: que lhe escrevesse uma carta para o namorado, uma carta de amor, que ela já tinha tentado e não lhe saía nada. Como eu era estudante de Letras, quase a terminar o curso, pensava encontrar em mim a competência legítima para dar a volta ao assunto. Foi então que comecei a exercitar-me nas singulares modulações do discurso amoroso: enleei-me nas metáforas, usei as anáforas e as sinestesias, voguei na crista da onda das expressões hiperbólicas como um surfista sobre uma prancha de afectos. A carta agradou. A seguir, foi-me pedida outra carta, e outra. A notícia da excelência dos meus escritos passou de boca em boca. Quando dei por mim estava a escrever cartas para um vasto público que frequentava o café ou a ele era atraído pelo poder da minha escrita.

De começo, todo este trabalho era feito de forma desinteressada, por simples vontade de ajudar, mas não tardou muito que alguns dos meus consulentes começassem a pagar-me o café ou a cerveja, a trazer uma garrafa de uísque como oferta, a deixar uma nota de cinco ou de dez euros. Era o reconhecimento pelos serviços prestados. Por essa altura, lendo um matutino de grande circulação, dei conta, na página de anúncios, do grande número de videntes, curandeiros, espiritualistas, génios de virtude e de conhecimento que ofereciam ajuda para toda a classe de problemas humanos: amor, dificuldades sexuais, droga, negócios, desavenças conjugais. Grande deveria ser o desamparo, a fragilidade, o desconcerto da vida dos homens para uma oferta tão copiosa de ajudas espirituais. Foi quando me lembrei de abrir um gabinete de aconselhamento amoroso e confecção de cartas de amor. Pareceu-me propósito natural, honesto, pois não trabalhava com ciências ocultas ou ilusões de curas, com enganosas imagens do sobrenatural, limitando-me, com os pés bem assentes na terra, a usar o inexcedível poder da palavra escrita para captar e conciliar o apetecido amor.

Abri o meu gabinete na Baixa, deitei uns anúncios nos jornais, criei um sítio na Internet. Como sou respeitador dos desígnios fiscais, colectei-me e comecei a passar recibos verdes. E se na mesa do café já ia tendo algum movimento, no meu gabinete – decorado com esmero, com uma estante onde se destaca, em preciosa edição, a Ars Amatoria de Ovídio, e, na parede, o brilho de uma gravura de Dido e Eneias amando-se na gruta mítica – ali, o negócio começou a prosperar a olhos vistos. Era só facturar.

A rapariga magra de olhos bonitos tornou-se nesse meu princípio de vida a melhor cliente do gabinete. Vinha todas as semanas com um novo pedido: uma carta, um simples bilhete, um poema. Sim, também comecei a fazer poemas de amor, um preço ligeiramente mais alto, está bem de ver, dado tratar-se de género especioso e de mais seguro efeito. Ela ficava a olhar-me, muitas vezes com a expressão própria de quem vive uma grande paixão. Mas também acontecia aparecer para pedir um conselho sobre um vestido ou uma ementa romântica, matérias que não estavam propriamente dentro da minha especialidade mas que procurava atender, sem cobrar qualquer preço, dado tratar-se de cliente sempre merecedora de uma atenção comercial.

Entretanto, a partir das notas tiradas nas consultas comecei a interessar-me por uma espécie de sociologia do amor. Tendo eu clientes de ambos os sexos, verifiquei que entre as mulheres eram jovens as que me pediam cartas e poemas, enquanto da parte dos homens era por volta da idade madura que tal necessidade se manifestava. O que sugere como é diferente entre os sexos a forma de sentir e viver o amor. Talvez volte a este tema, se puder, em próxima oportunidade…

Passei a viver, como se pode imaginar, um tempo de prosperidade e de grande satisfação pessoal. Sabia que as minhas cartas ajudavam a melhorar a vida das pessoas que me procuravam, ordenando sentimentos e paixões com resultados de sucesso. Os meus clientes, resolvidas as suas inseguranças, estabilizadas as vidas amorosas, habituaram-se a passar pelo gabinete para me comunicarem os seus novos estados de alma. Deixam sempre pequenas lembranças em manifestação de gratidão, o que me toca profundamente. E eu sinto-me satisfeito pela felicidade de todos como se se tratasse da minha própria felicidade.

Um problema, porém, veio ensombrar a alegria dos dias. Uma manhã, quando menos esperava, entrou-me no gabinete a rapariga magra de olhos bonitos. Vinha transtornada, percebi logo. Já lhe conhecera muitas expressões apaixonadas, já lera muito nos seus belos olhos, mas nunca a vira como naquele dia. Antes que pudesse articular palavra, perguntar ao que vinha, se havia crise ou desenlace amorosos, jogou sobre a secretária um grande maço de cartas e poemas, tudo o que tinha encomendado e eu havia escrito. Receei por momentos que a devolução da mercadoria pudesse significar a existência de defeito, inadequação de forma ou de conteúdo, avaria superveniente, deterioração do sentido, sei lá, são vertiginosas as idades do amor, nesta matéria tudo é mudança, variedade, novidades, o que hoje está certo está amanhã errado, mesmo o mais experiente dos conselheiros pode falhar. Até que ela, reprimindo a respiração ofegante, disse:

- Tome, fique com elas. Foi para si que as encomendei.

Saiu porta fora e nunca mais a vi. Só então dei conta de que a rapariga magra dos olhos bonitos estava apaixonada por mim. E logo desde os tempos das primeiras cartas, as que lhe escrevi ainda no café.

Se ao menos eu tivesse descoberto a tempo, antes de me ter metido nesta empresa que cura dos amores alheios e desleixa os próprios, talvez a minha vida fosse hoje diferente. Mas agora é tarde. Sou um profissional do amor, tenho responsabilidades perante os clientes, não posso deixar-me envolver. Talvez a minha vida mude, talvez eu venha ainda a escrever cartas de amor na própria voz, a saber mais de mim e menos dos outros. Mas para já não devo abandonar o barco: na modesta parte que me cabe, sou responsável pela felicidade dos amantes.
D.E.

2 comentários:

sofia disse...

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
já dizia o alvaro c.

Unknown disse...

gostei da carta mais você poderia ser mais direto na historia enrolou demais para dizer o final da historia que é o mais enteresante