Ia para três meses que só se lhe deparavam contrariedades, factos insólitos, perturbantes ocorrências que o deixavam angustiado e cada vez mais carente da sua dose diária de ansiolíticos.
Começara por adormecer ao volante, na auto-estrada, entregando a delicada chapa do carro à massa bruta dos railes, o corpo dorido e os nervos em alta, uma passagem obrigatória pela urgência hospitalar. Ainda mal refeito deste acidente, foi notificado para comparecer na repartição de finanças a fim de ser inquirido sobre a sua declaração anual de rendimentos, um complexo de rendas prediais faltosas, direitos de autor sonegados, excêntricas deduções à colecta e reveis pagamentos por conta. Depois, como não conseguia acrescentar uma linha à obra que tinha entre mãos, um romance filosófico sobre a angústia do Homem perante a morte, recebeu uma carta dos editores denunciando o contrato-promessa de edição com as correspondentes penalizações. Foi então que apanhou um avião para Londres para passar um fim-de-semana com a namorada, que fazia um doutoramento em Finanças na Universidade de York, mas encontrou-a apaixonada por um professor americano de Política Internacional que era um fervoroso prosélito de George Bush e escrevia nos jornais sobre o perigo das armas de destruição maciça nos países do eixo do mal. Regressado a casa da forma que se pode imaginar, tinha à sua espera a notícia da fixação, pelo tribunal, da pensão de alimentos que era devida ao agregado familiar do primeiro casamento. Mas o pior ainda estava para acontecer: assediado sexualmente pela empregada, uma ucraniana de sangue quente que fazia três horas diárias de serviço doméstico, não resistiu às investidas eslavas e quando menos esperava estava a contas com a máfia russa, da qual era membro destacado o marido da voluptuosa serviçal.
Foi então que se deu a leituras para se distrair ou granjear inspiração, mas não logrou passar da página cinquenta e quatro de As Intermitências da Morte, precisamente daquele ponto em que entra em cena a máphia, assim mesmo com ph, pelas desagradáveis sensações que tal palavra lhe suscitava. Ainda procurou na livraria os aerogramas do Lobo Antunes, obra que lhe parecia de leitura amena, mas como se havia esgotado o estoque e estava atrasado o envio de nova remessa, entregou-se aos escritos de Rui Zink num livro de bela capa que repousava, havia alguns meses, num lugar aprazível da estante.
Começou por ler o poema de Carlos Drummond de Andrade que serve de epígrafe, e meteu-se em seguida pelo bosque das palavras, árvore após árvore, à descoberta da palavra mágica. Acredite-se ou não, há em todos os livros uma palavra mágica, uma espécie de brinde, jóia pura que premeia o leitor arguto e descobridor. É assim como o Raio Verde do pôr-do-sol de Júlio Verne, a última luz que o astro exala antes de se meter no mar, e que recompensa o observador mais persistente, o que de forma mais apaixonada o procurou. O livro chama-se justamente A Palavra Mágica, uma festa de magias e de lugares de assombro. Com tanta infelicidade que nos últimos tempos lhe fazia o molde dos dias, a dolorida expressão das horas e dos minutos, nem queria acreditar no que tinha nas mãos, na sorte que finalmente se tinha acercado de si nas palavras felizes daqueles contos. A palavra mágica havia de estar por ali, era só encontrá-la e mudar o curso da vida.
Como andava às voltas com as filosofias da vida e da morte, deteve-se com especial atenção no conto intitulado Pavilhão do Futuro, lugar que, numa inominada expo, todos acabamos por visitar, mesmo que tenhamos de esperar tempos longos em longas filas, mesmo sabendo que uma vez aí entrados nunca de lá sairemos para conhecer outros pavilhões. Bem podemos ter bilhete válido para o tempo completo do certame, livre-trânsito para irmos a todo o lado, que o Pavilhão do Futuro é sempre a nossa derradeira visita. E quanto mais se adentrava no texto e fazia por o interpretar, mais se convencia de que a palavra mágica teria de morar nas linhas daquele conto. Não acreditava que ela fosse a que o autor especiosamente indicava no final do livro, pois é sabido que neste particular os escritores procuram sempre despistar os seus leitores, dando-lhes dúbios sinais, tornando assim mais difícil, mas também mais gratificante, a descoberta da verdadeira palavra mágica.
Viveu feliz a aventurosa demanda. Se encontrou ou não o que procurava é questão que só poderá ser respondida pelos desenvolvimentos subsequentes da sua vida: - Parece que se reconciliou com os editores, a quem entregou a versão final da obra contratada. E a doutoranda de York, refeita do arrebatamento de que padeceu, retornou doutorada ao seu primitivo amor. É verdade que a antiga mulher, confortada com o império das decisões judiciais, nunca deixou de exigir, nas datas combinadas, as prestações pecuniárias atribuídas por lei, e que, para obviar a um processo judicial com uma muito provável acção de penhora, se viu obrigado a negociar com o chefe da repartição de finanças um plano de pagamento da sua dívida fiscal. Mas a máfia deixou de o apoquentar, devido à oportuna detenção do cioso marido da empregada doméstica. E esta, grata pela prodigalidade dos afectos patronais, que nem a obsessão criminal lograra diminuir, prosseguiu com zelo no desempenho das suas funções, nunca se queixando ou sequer reclamando aumento de salário, apesar do acréscimo de trabalho que passara a ter com a chegada da patroa.
E tudo isto, muito provavelmente, por obra e graça da palavra mágica.
D.E.
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