Diz-se que foi o Anjo do Senhor que lhe apareceu em sonho, ordenando-lhe a fuga para o Egipto - facto extraordinário ou mera manifestação do inconsciente, nunca saberemos ao certo. Sabe-se sim, por um conhecido autor, que José trabalhava como carpinteiro nas obras do Templo de Jerusalém, serrando barrotes e aplainando tábuas, empunhando as ferramentas do mester com a destreza própria de operário qualificado.
Era a hora do meio-dia e tinha acabado de deglutir o frugal farnel que lhe permitiria repor os níveis mínimos da sua força de trabalho. Uma ligeira modorra tomou-lhe conta do corpo e da mente, terá dormido por breves instantes, mas aquilo que ouviu em seguida foi quando já estava absolutamente desperto, que nem poderia ser de outra forma, uma vez que na falta de sindicato ou comissão de trabalhadores que olhasse pelos direitos do operariado, a pausa para almoço estava reduzida ao tempo estritamente necessário à apressada ingestão dos alimentos, não sobrando para sestas, por muito breves que elas fossem. O que José ouviu foi algo que o sobressaltou profundamente.
Naquele tempo reinava na Judeia o cruel Herodes, um títere do Império Romano que era odiado pelo seu povo e por toda a gente de bem. Herodes era um doente terminal, desses que estão mais para a banda de lá do que para o lado da vida, e isso fazia-o ainda mais perverso e agarrado ao poder, como se bastasse a sua vontade para se perpetuar como rei e senhor. Convenceu-se de que em Belém, cidade que ficava no caminho para Hebron, tinha nascido um menino que as profecias diziam ser o novo rei dos Judeus. Havia indícios preocupantes do nascimento recente desse novo líder: uns magos que tinham vindo do Oriente, talvez das terras férteis da Mesopotâmia, a reboque de uma enigmática estrela; o desassossego de pastores e campónios que meteram pés a caminho para o adorar, e gentes anónimas que eram portadoras de estranhas notícias e indesejados presságios.
Voltemos ao que José ouviu. Nos muros do Templo de Jerusalém, que Herodes mandara reconstruir - talvez por isso lhe tenham dado o cognome de “o Grande” - conversavam três soldados sobre a operação que lhes tinha sido determinada para essa noite: cercar toda a cidade de Belém, entrar nas casas, nem era preciso mandado de busca, e tomar os meninos de idade inferior a três anos, matando-os como frangos, por degola. Não compreendiam os soldados os motivos de tão rara operação, se era determinação do reino da Judeia ou ordem imperial que tivesse chegado da longínqua Roma, mas uma ou outra proveniência pouco lhes interessava, porque o que releva das ordens castrenses é o seu cabal cumprimento e nunca a discussão sobre de qual ou quais instâncias elas procedem. Assim agia Herodes para defender a putrefacção do seu mísero trono: a matança dos inocentes.
Tinha José, com Maria sua esposa, um filho varão de tenra idade, de nome Jesus, que vivia com a progenitora em Belém. José exercia o seu mester de carpinteiro em Jerusalém, como já se disse, obrigado a viver separado da família pelas funções de pai alimentador, pois já naquele tempo era grande o flagelo do desemprego, sendo necessário ir procurar trabalho longe do local de residência. Imagine o leitor, especialmente se é pai, como ficou José ao ouvir a conversa dos incautos militares. Receando pela vida do filho, tomou de imediato o caminho de Belém, nem apresentou o pedido de demissão ao seu superior hierárquico, perdendo a féria da semana que bem falta lhe fazia, e foi juntar-se à família. E tomaram os três o caminho do Egipto, que a crer pelo que se conta devia ser terra de liberdades, direitos e garantias dos cidadãos, lugar de acolhimento de refugiados e perseguidos das tiranias.
(Situações dramáticas como esta já ocorreram em muitos lugares. Atente-se no exemplo de Portugal, país que também já teve ao longo dos séculos os seus Herodes, embora com nomes distintos, o que levou muitas famílias a fugir para outros Egiptos em busca de liberdade, embora esses Egiptos se chamassem França, Itália, Inglaterra. Mas isto é um pequeno aparte, que não nos deve fazer perder o fio condutor da nossa história. Por isso mesmo é que está entre parêntesis.)
Continuemos pois com a história do carpinteiro José, da sua dedicada esposa Maria e do menino Jesus, cujo nascimento abalou o mórbido Herodes e o levou a praticar os actos execrandos que nunca lograrão apagar-se da memória dos homens. O tal Anjo do Senhor, revelação em sonho ou simples manifestação freudiana do inconsciente, terá dito a José: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto! Fica lá até que te avise. Porque Herodes vai procurar o Menino para O matar.” Ou terá sido José que ouviu a conversa dos soldados e vai dar no mesmo. E aí temos a família a salto pelos carreiros do Sinai, a mãe e o menino cavalgando a jumenta, José à arreata, os pés causticados pelas areias do deserto. Enquanto em Belém foi aquela sangueira de que nos falam os testemunhos escritos, Raquel e outras mães chorando os seus filhos, os pobres inocentes degolados pela tropa. Mas o menino Jesus tinha sido salvo.
Não se pergunte, que não saberemos responder, o que terá feito a família durante os dias amargos do exílio. Talvez José tivesse encontrado trabalho em alguma pequena oficina, em algum modesto estaleiro, que as grandes obras públicas como as pirâmides de Gizé, a Esfinge, os sistemas de drenagem de águas e de irrigação há muito que tinham sido concluídas naquele país. O trabalho não era tão abundante como no tempo de Moisés, em que por maior que fosse a caterva de hebreus sempre havia ocupação para mais um. Imagine-se o prejuízo causado à economia egípcia pelo Êxodo… E talvez Maria tivesse arranjado um lugar de empregada doméstica, limpando o pó dos móveis, cozinhando, cuidando de algum idoso, embora seja difícil admitir que conseguisse conciliar a profissão de serviçal com a cria do menino, sempre carente dos cuidados maternais, as mamadas, a muda das fraldas. Talvez tivesse encontrado um bom patrão que lhe permitia levar a criança para o local de trabalho… O que se conta, veja-se Mateus, versículo 2-19, é que tendo morrido Herodes apareceu de novo em sonho a José o Anjo do Senhor. E disse-lhe: “ Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e volta para a terra de Israel, pois já estão mortos aqueles que procuravam matar o Menino”. Mas pode também ter acontecido que entre a comunidade emigrada de judeus a notícia da morte de tão grande senhor se tenha espalhado de forma natural. Afinal o Egipto não estava assim tão distante da Palestina, e mesmo naquele tempo as notícias corriam céleres.
E assim temos José e a família retornando à terra pátria. Só que, por morte de Herodes foi o seu reino retalhado pelos três filhos. Herodes Filipe ficou com as terras a leste da Galileia, a Traconítide e a Decápole; Herodes Ântipas herdou a Galileia e a Pereia; enquanto o cruel Arquelau, tão cruel que o Imperador Augusto se viu na obrigação de o banir, recebeu os teritórios da Judeia, Samaria e Idumeia. Por precaução, não fosse Arquelau dar continuidade à perseguição movida pelo pai, não voltou a família à Judeia, tendo-se fixado na Galileia, em Nazaré, nas proximidades do lago Tiberíades.
(Veja-se ainda aqui o caso de Portugal. Muitas vezes ao longo da História houve neste país homens que seguiram o caminho do exílio. Garrett, por exemplo, fugiu dos absolutistas, sujeitando-se a viver em Inglaterra e em França, mas regressou com o exército liberal que desembarcou no Mindelo; Alegre, outro poeta, andou homiziado por Argel e outras esquinas do mundo, tendo retornado após a revolução democrática; o Manuel João, operário da CUF que ninguém conhece, safou-se para a Alemanha quando a PIDE lhe apertava o cerco, mas voltou em 27 de Abril. Uns regressaram de avião, como o Álvaro, outros de comboio ronceiro, como o Mário, que naquele tempo ainda nem se falava de TGV. O Manuel João, que ninguém conhece, veio de automóvel, num velho OPEL. Saiu de Colónia no dia 25 à noite, por isso só chegou a 27, quando a festa ia já adiantada. Serve este excurso para dizer que os exilados tendem sempre a voltar à terra que os viu nascer. Abandonam tudo no momento certo, quando ouvem a voz do Anjo do Senhor ou quando é a sua própria voz que os chama. Aconteceu com José e a sua família, aconteceu por todo o lado com todos os que tiveram de fugir dos pequenos e grandes Herodes do nosso mundo. Mas tudo isto, se calhar, são notas sem importância para a nossa história, digressões parentéticas não essenciais, coisas que vêm à cabeça do escrevente desejoso de preencher páginas. Vamos mas é fechar o parêntesis.)
Não há muito mais a dizer sobre a história de José. Em breve morreria, amargurado por não ter podido salvar os outros meninos, ele que sabia, não pelo Anjo do Senhor que lhe sonegou a informação, mas por ter escutado a conversa dos militares, que se ia dar em Belém uma matança de inocentes. O Anjo do senhor procedeu mal, até os anjos se enganam, a não ser que não tivesse sido informado pelos seus superiores hierárquicos da monstruosidade que se preparava. Se estivesse ao corrente, se calhar teria ido avisar também os outros pais, evitando dessa forma tamanha tragédia. Mas parece que a sobrevivência de Jesus era mais importante do que a dos outros meninos de Belém.
A partir de aqui o protagonista da história é o próprio Jesus, rei dos Judeus sem ceptro e coroa, que tanto pavor causou a Herodes e aos tiranos do seu tempo. Esse condutor de homens, desinquietador de consciências, militante ousado das causas da liberdade, filósofo da paz, deixou marcas na memória das gentes.
É por tudo isto, também pela razão de opressores e oprimidos não terem ainda desaparecido da face da Terra, que apetece gritar:
VIVA JESUS!
ABAIXO OS HERODES DO MUNDO!
D.E.
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