terça-feira, dezembro 06, 2005

ALFARROBEIRA

Não se percebia bem o que se passava com elas. Se havia defeito, desvio, vício ou perturbação que de forma isolada ou por efeito conjugado sustentassem tão singular comportamento: levavam as tardes metidas na biblioteca, chupando o pó dos livros, gastando a luz dos olhos, enquanto os colegas frequentavam a praia ou se divertiam na amenidade das salas de cinema climatizadas. Apaixonadas pelas leituras da História, tinham começado por dissecar os cartapácios do Serrão, os calhamaços do Mattoso, até se baterem com a escrita arrevesada dos cronistas, desejosas das fontes e das notícias em primeira mão. Absorvia-as a Chronica de El-Rey D. Affonso V, de Rui de Pina, que liam numa edição antiga, fascinadas pela figura do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra.

Caras de anjo em corpos apetitosos de mulher. E no entanto, não se lhes conheciam namorados, amigos, homens com quem saíssem ou convivessem. Viviam fechadas sobre si, como numa ilha, entregues aos estudos. Os colegas machos que assim as viam embrenhadas em tão aturado labor, acostumados a pisar o terreno mole da brincadeira, tiravam-lhes as medidas e despiam-nas com os olhos, que mais não conseguiam, descorçoados com tamanho desperdício. E como estavam numa faculdade de letras e num curso de estudos clássicos, houve até quem viesse dizer, mais por despeito que por convicção, que havia segredos de Safo na ilha de Lesbos daquelas meninas. Mas não entremos por aí.

Para além das leituras, gostavam de trabalhar no terreno, de visitar os locais onde se tinham dado os grandes acontecimentos históricos. Procuravam os marcos do tempo, respiravam os ares impregnados de memória. É verdade que sempre se sente algo de indizível, uma recepção de singulares energias, quando se está fisicamente presente nesses lugares marcados pela memória dos homens. É verdade que a História tem essa dimensão de sonho e de paixão. Mesmo assim, não era compreensível que duas belas raparigas, em pleno viço, não puxassem um pouco para o lado animal do corpo e tanto se deixassem prender pela vertente etérea do espírito. Mas por mais interrogações que o seu comportamento suscitasse, de uma coisa não havia dúvidas: é que tinham ficado muito mais estranhas, mais fechadas, passando ainda mais tempo na biblioteca, desde aquele dia em que rumaram a Alverca em demanda do local da Batalha de Alfarrobeira.

Diziam uns, que algo de grave se teria passado nessa deslocação: assalto, ameaça, roubo, tentativa de violação. Para quem vivia em Telheiras, Alverca afigurava-se um perigoso bairro suburbano. Diziam outros, que não. Que tudo era devido à proximidade dos exames: perfeccionistas como eram, andavam obcecadas com o estudo das matérias. Foi a professora de Civilizações Clássicas, com quem alguns alunos comentaram o desvario comportamental das colegas, que esclareceu: para além da História, tinham começado a dedicar-se à leitura de tratados de numerologia e escritos esotéricos. Ela mesma, que estava a preparar uma tese de doutoramento sobre a filosofia de Pitágoras, lhes tinha dado, a seu pedido, orientação bibliográfica nessas áreas. No entanto, não soube explicar por que razão se tinham passado a interessar por aqueles estranhos saberes.

O caso parecia sério. Tinham deixado os anódinos cronistas, cujos escritos, que se saiba, nunca fizeram mal a ninguém, para se atolarem em perniciosos esoterismos, em enganosas leituras, das quais se sabe sempre como se entra, mas nunca como se sai. E houve logo quem lembrasse, a propósito, os conhecidos malefícios causados em mentes mais frágeis por livros tão nocivos como o Manual do Exorcista, O Livro de S. Cipriano, O Código Da Vinci ou o Elucidário, este, segundo consta, ditado pelo espírito de Paulo de Tarso. Era imperioso avisar as famílias, alertar para o arriscado declive em que ameaçavam resvalar. Aquelas raparigas precisavam de respirar outros ares! Uma colega de turma que as acompanhava desde os tempos da escola secundária resolveu dar uma ajuda. Passou a frequentar a biblioteca, avaliou bem o que liam, ponderou, e na altura própria convidou-as para uma noite de festa numa discoteca da 24 de Julho. Ladies night, assim se chamava o evento. Surpreendentemente aceitaram o convite.

O que se soube depois foi algo de ainda mais surpreendente.

Na 24 de Julho, o bar aberto às ladies, o espírito das bebidas a tomar conta das mentes, as palavras a soltarem-se em catarse, veio à conversa o assunto da deslocação a Alverca.

Procuravam a ribeira de Alfarrobeira, em cujas margens se deu, como é sabido, o trágico recontro entre a hoste do Infante D. Pedro e a tropa do seu sobrinho e genro, o jovem rei D. Afonso V. Não foi fácil dar com a ribeira, que agora corre em leitos artificiais, encanada na zona das portagens sob o manto asfáltico da auto-estrada. Por lá andaram a deitar os olhos para as hortas e para os armazéns dos operadores logísticos, foram até à fábrica da cerveja. Os camionistas que circulavam na estrada e viam aqueles nacos de mulher buzinavam e mandavam-lhes bocas do alto das cabinas. Não dando com a ribeira, voltaram atrás. Desceram em direcção à rotunda, e junto à rede que veda um terreiro onde se acumula uma panóplia de decrépitos materiais de construção, ouviram, num estrépito de metal e água, o coaxar das rãs. Olharam através da malha da rede a superfície quase estagnada da água, uma capa de lodo verde numa vala de paredes cimentadas. A visão era desoladora, mas um pouco adiante o curso líquido ganha o leito natural de areia e seixos, mete-se pela cortina dos canaviais e, bordejando as hortas, passa a estrada nacional na direcção do Tejo. Era aquilo a ribeira de Alfarrobeira.

Isto acontecia a 20 de Maio de 2004. Deram conta, então, de que tendo a batalha ocorrido em 20 de Maio de 1449, tinham passado justamente 555 anos sobre a fatídica data. E estavam a dia 20, múltiplo de 5; e no mês de Maio, mês 5. Por sinal até era Quinta-feira, e os relógios indicavam as 5 horas da tarde. Entenderam aquela singular conjunção de cincos como um sinal de indisfarçável sentido numerológico. Tanto mais que do túnel que passa sob a auto-estrada vinha saindo em revoada um bando de corvos grandes e lustrosos. Poisaram as aves na placa central da rotunda e começaram a andar sobre a relva bamboleando a massa sólida dos corpos. Contaram 55 corvos, coisa extraordinária, que até dá para duvidar, pois como é que é possível fazer uma contagem segura de animais tão irrequietos, que ora avançam, ora volvem atrás, quando se vai contar um já outro que foi contado está em lugar diferente, para já não falar dos que resolvem esvoaçar de um sítio para outro, complicando a tarefa dos contadores? Estes 55 corvos pareciam ser já fruto de alguma perturbação. O mais extraordinário é que elas garantiam ter ouvido o tropel das cavalarias e o vozear guerreiro das peonagens, o fragor das armas entrechocando-se, os silvos das frechas despedidas das bestas. Foi uma dessas frechas que matou o Infante D. Pedro, o coração trespassado, morte imediata, sem tempo para a confissão, valeu-lhe a absolvição dada pelo Bispo de Coimbra no preciso momento em que a alma lhe saía da carne. Enquanto o Conde de Abranches, amigo e companheiro do Infante desde os tempos de Ceuta, que ao deixar Coimbra jurara não lhe sobreviver naquela arriscada empresa, continuava a pelejar, ferindo e matando com grande sanha, até que, cercado, se entregou aos ferros do inimigo, proferindo aquelas palavras – Ó corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas; ora fartar vilanagem – com que despediu a alma de si para ir ter com a do Infante. E logo lhe cortaram a cabeça, para a levarem como troféu a El-Rei em busca de honras e acrescentamento. O cadáver do Infante D. Pedro ficou toda a tarde exposto ao Sol, no campo, sob as asas dos corvos. À noite lançaram-no numa fétida choupana, onde ficou insepulto durante três dias, até que o levaram numa escada, a servir de esquife, à Igreja de Alverca, e aí lhe deram a sepultura possível, que a que lhe era devida, como príncipe da Ínclita Geração e regente do Reino, teve-a mais tarde, no Mosteiro da Batalha, junto de seus pais e irmãos.

A companheira que as desafiara para a noite, e que assim tomava conhecimento dos enigmáticos sucessos de Alverca, engoliu rapidamente o seu vodca com laranja e foi habilitar-se a nova bebida, que estava mesmo necessitada… Tinha-se arrepiado um pedaço com toda aquela história de corvos e de figuras insignes a entregarem a alma ao Criador em meio de tão crua peleja, mais a profanação dos cadáveres e a recusa em sepultar os vencidos, acto piedoso que é devido a qualquer cristão, quanto mais a filhos de reis e a nobres de luzida estirpe. E ainda com a revelação de tudo aquilo ter sido ouvido, quando não visto ou sentido pelas colegas como se estivessem numa sala de cinema a assistir a uma superprodução da sétima arte.

Com a madrugada plena, a música atroava os ares da discoteca. Calaram-se as três por uns minutos, enquanto procediam à ingestão de mais uma rodada. A companheira ainda lhes pediu explicações sobre o episódio de Alfarrobeira, que era matéria da História que lhe escapava um pouco. Só teve tempo de compreender, o que já não foi mau, que se tratou do velho conflito entre o poder régio e o poder senhorial. Este, representado pela clique de nobres que rodeava o jovem rei D. Afonso V; aquele, a bandeira da luta do Infante D. Pedro enquanto regente do Reino. Saíram as duas para a pista de dança, enquanto a companheira permanecia sentada, um pouco aturdida, pensando nas surpreendentes revelações feitas pelas colegas. Conta-se que teriam dançado até ao fim da noite com dois desconhecidos que destoavam, em aspecto e indumentária, do modelo típico dos frequentadores daquele espaço. Apareceram e desapareceram naquela mesma noite. E há quem assevere tê-las visto dentro de um táxi, em Santos, em companhia dos tais desconhecidos. Mas a verdade é que às cinco da manhã, depois de uma noite de farra, há coisas que os olhos vêem que nem sempre condizem com a realidade.

Na semana seguinte ninguém deu por elas na biblioteca. Frequentavam as aulas durante a manhã, e à tarde conviviam amenamente com os outros estudantes na cantina da faculdade. Passavam os olhos por alguns textos de leitura obrigatória, conversavam, saíam ao fim do dia. Antes de se meterem em casa davam uma volta pelo centro comercial para recreio da vista. Estavam todos admirados com o novo procedimento das colegas e ninguém conseguia determinar a razão de tão substanciosa modificação. Provavelmente, nem elas teriam uma explicação consistente para o que lhes estava a acontecer. Sabiam apenas que se sentiam diferentes, mais amigas da vida e da alegria, resultado talvez de terem ousado falar dos seus fantasmas e dos enigmas que as perseguiam. Ou de algo mais…

O curioso é que a biblioteca ganhou, entretanto, uma nova e assídua leitora: a colega que as levara para a discoteca da 24 de Julho, que passou a marcar presença, todas as tardes, naquele ambiente austero, a contas com a leitura da Crónica de El-Rei D. Afonso V, de Rui de Pina.

D.E.

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