sexta-feira, novembro 11, 2005

LEMBRANÇAS

O trovador. No princípio tive dificuldade em compreender por que razão se viera meter no Sindicato. Via-o arrastar a figura pesada pela floresta de secretárias, de gabinete em gabinete, sentado à mesa da sala de reuniões a afinar estratégias e a preparar prosaicas acções de propaganda, como colar cartazes ou distribuir panfletos nas saídas do Metro.

Ia quente o Verão. Havia muita ganga nas ruas. Decorria a campanha eleitoral para os corpos directivos do Sindicato dos Trabalhadores de Escritório. Além de trovador, trabalhava numa empresa de publicidade, ou coisa parecida, daí a sua filiação sindical.

Enquanto o trovador se entregava à luta sindical, a rádio difundia, nas vozes de conhecidos jograis e jogralesas, as cantigas de amor e de amigo, de escárnio e mal dizer que inspiradamente compunha: desfolhadas em eiras de milho sob luares de Agosto, touradas com bandarilhas de esperança, laranjas amargas e doces.

Não era, pois, um trovador palaciano, desses que vemos sentados à mesa de reis e senhores, beneficiando do cómodo agasalho dos mecenas. Andava misturado com a plebe, convivia com o operariado das fábricas e dos estaleiros em manifestações e comícios. Amava a poesia e a luta de classes, ele que não era castrado da arte nem do sentimento.

Mal cheguei a conhecê-lo.

Uma noite, quando já se afigurava que nunca ganharíamos as eleições, ficámos a conversar, já tarde, no passeio da Rua Brancaamp. Foi quando me dirigiu o convite para beber um copo e acabar a conversa num qualquer bar da cidade. Não aceitei, que o dia seguinte era de trabalho, impunha-se descansar.

Vi-o apanhar um táxi e atravessar a solidão da noite na direcção do Largo do Rato. Um homem na cidade.
E eu nunca me perdoei daquela conversa por minha vontade inacabada.
D.E.