quarta-feira, outubro 05, 2005

UM CONTO POETICAMENTE TRISTE

Havia já uma semana que os meus olhos ensonados, obrigados a respeitar o sinal vermelho do semáforo em cada manhã que por ali passava, se detinham a ler o que estava escrito na superfície amarelada daquela parede. Era num prédio de esquina, sem graça. A inscrição estava à altura do rés-do-chão, onde chega o braço e o coração de um homem:

ANA, AMO-TE. PERDOA

Aí à vigésima vez em que me deixei fascinar pela romântica mensagem, numa manhã de trânsito intenso, fiquei com as rodas do carro coladas ao chão, o semáforo a debitar sucessivas ordens para avançar, e uma sinfonia de buzinas a desabar sobre a minha cabeça numa imitação grotesca de uma peça de Stravinsky.

Confesso que não dei por nada. Só me apercebi da enorme desordem sonora quando um polícia, desses que usam botas de cano alto e têm uma braçadeira vermelha com um metálico T, se arrimou ao vidro da janela e me perguntou se me estava a sentir mal. Que não, disse, que estava tudo bem. E ele então explodiu com todo o fragor da sua incontestada autoridade, que não atrapalhasse o trânsito, que arrancasse depressa e sem mais delongas, que ainda puxava do bloco de multas e praticava um pouco de caligrafia.

O que pode fazer nestas circunstâncias um pobre licenciado em Psicologia Clínica, média de curso de treze valores, vinte e oito anos de idade e ocupação profissional incerta? Obedecer, é claro, desentupir a via pública e deixar para trás o furioso cívico e a romântica inscrição mural.

Mas há coisas que vemos e não esquecemos com facilidade. Vivemos numa era de sofisticados meios de comunicação. O infeliz amador que na sua dolorida mágoa se entregara àquela arcaica forma de comunicar, podia ter escrito uma carta em correio azul, enviado uma mensagem SMS ou veiculado a profundidade dos seus sentimentos através do vertiginoso correio electrónico. Preferiu gravar na parede aquilo que lhe ia na alma. Foi esse procedimento singular que me fascinou e que me levou a desejar conhecê-lo.

Dobrada a esquina, na rua que sobe, há um desses cafés populares de bairro onde todas as noites se reúnem os mesmos clientes, moradores na vizinhança, bebendo umas cervejas e, ao fim-de-semana, assistindo aos jogos da Liga na Sport TV. Fiz-me frequentador do local. À segunda noite já tomava assento numa mesa onde se discutia acaloradamente as diatribes do Pinto da Costa e as invectivas que lançava aos de Lisboa. Foi quando descobri, na parede de um prédio que ficava mesmo em frente do café, outra lancinante inscrição:

ANA, SOFRO POR TI. PERDOA

Perante tão eloquente réplica, começou a formar-se dentro de mim a convicção de que o caso era mesmo sério. Como psicólogo, devorava-me o desejo de descobrir o sofredor, de lhe dar ajuda em transe tão delicado. Aproveitaria para conhecer um pouco mais da mente humana, alargar os meus conhecimentos em tão complexo domínio, robustecer o meu arcaboiço científico no laboratório dos encontros e desencontros dos nossos quotidianos afectos. E em cada noite que me metia no bairro em demanda do convívio do café, acabava sempre por deparar com novas inscrições nas paredes sebentas dos prédios. O homem não parava. Era um delírio mural.

Entretanto, lá fui obtendo de um dos meus companheiros de tertúlia algumas indicações sobre a citada Ana.

Disse: Moça bonita, um corpo à maneira, mora ao cimo da rua, às vezes até toma a bica aqui no café mas desanda logo, não faz sala, vivia aí com um gajo barbado e com ar de lunático, parece que é professor, sempre com livros na mão, às vezes até falava sozinho, mas não parecia má pessoa, nunca mais o vimos, a rapariga agora vem aí mas sempre sem companhia, se é ele que anda a escrever nas paredes?, se calhar é, raio do homem para o que havia de dar-lhe, com tantas mulheres que há por aí, francamente, é só um gajo estalar os dedos e é vê-las aparecer, sabe o que lhe digo?, há vinte anos não havia nada disto, o que o pessoal queria elas também estavam doidinhas pelo mesmo, agora ficam agarrados à internet e é só sexo virtual, esta malta está toda maluca, ó Chico tira aí mais duas imperiais, uma para mim e outra para este senhor, mas dizia eu, bonita rapariga sim senhor, é pena que não tenha tido sorte com o gajo, se calhar não a satisfazia e ela calçou-lhe uns patins, é o que há mais para aí, sabe, até lhe conto a história do filho do João que trabalha como segurança no centro comercial, pois o rapaz...

E num fim de tarde, após prolongadas mediações, consegui encontrar-me com Ana no café. Vi-a chegar, o corpinho ondulado metido na justeza dos jeans, o redondo dos seios adivinhado sob o minúsculo top, o brilho de um piercing na concha do umbigo. Como únicas testemunhas, sobre a mesa, duas garrafas de Coca-Cola e um cinzeiro de lata amarrotado.

Sabe, não costumo falar com estranhos, mas disseram-me que era por causa do Jorge que queria conversar comigo, coitado do rapaz, sou muito sua amiga, acredite que me custa esta situação, afinal ainda estivemos juntos perto de um ano, e depois anda para aí desesperado a pintar as paredes do bairro, só o dinheiro que gasta em tintas, francamente, é uma coisa que nem se compreende, pois acredite que estou a ser sincera, gosto dele a sério, só que não dava para fazer vida juntos, sou uma pessoa alegre, gosto de luz, não sou dada a melancolias, mas diz que é psicólogo?, é interessante, também pensei em tirar psicologia, só que acabei em letras, fiz o segundo ano de estudos franceses, por que razão desisti?, dificuldades, sabe, apareceu-me um emprego na TMN, aproveitei, não podemos perder estas oportunidades, mas voltando ao assunto, o Jorge é um bom tipo, não era mau amante, mas por vezes andava estranho, era a mania da poesia, quando escrevia ou descobria um novo poeta ficava estranho, ultimamente era o Walt Whitman, conhece?, é assim como o Álvaro de Campos mas em inglês, Leaves of Grass, lia o livro da frente para trás e de trás para a frente, dissecava os poemas, replicava, ficava insuportável durante essas fases, depois passava-lhe, melhorava, mas era por pouco tempo, não era mau amante, repito, pena que se transtornasse de vez em quando, estou a falar-lhe abertamente porque é psicólogo, não me abria assim com qualquer um, passava uma semana inteira que não se chegava a mim, está a ver, é aborrecido, e foi então quando conheci outra pessoa, a vida é assim, a verdade é que essa experiência também não correu bem, estou sozinha, mas não tenho vontade de recomeçar com o Jorge, até lhe digo que...

Ana é um pássaro falador, uma torrente de palavras saindo da boquinha bonita, os dentes muito brancos, a língua ágil humedecendo o carmim dos lábios. Podemos dizer aos pássaros que se calem? Podemos reprimir os maviosos murmúrios dos regatos? Ana fala, irremediavelmente, e eu bebo-lhe os mais ínfimos sons, coloridos fonemas do meu deslumbramento súbito.

A conversa com Jorge veio a seguir. Encontrei-me com ele no anfiteatro dos jardins da Gulbenkian. Trazia Apollinaire no bolso do casaco.

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nous amours
...
L´amour s´en va comme cette eau courante
L´amour s´en va

Expliquei-lhe ao que vinha, que era só para ajudar, que falara com Ana e que ela me encorajara a ter uma conversa com ele. Jorge poisou em mim um olhar de poeta incompreendido, passou a mão pela melena, e eu vi-lhe os dedos gastos do ofício de segurar canetas e picar teclados, os olhos bêbados do lume dos versos. Depois saímos dali a tomar um refresco, acabámos a conversa no seu tugúrio em Alfama. E Jorge parecia já outro homem, uma cura de milagre, decidido a enfrentar a vida de forma mais prosaica. Pegou nas latas de tinta e ofereceu-mas, acabava ali mesmo o seu mortificante delírio mural.

Regressei a casa, vaidoso dos meus sucessos clínicos. Curar um homem numa única sessão é obra. À noite fui ao café, detive-me ainda diante de alguns escritos parietais do poeta Jorge. Aquilo era passado.

Depois subi a rua para bater à porta de Ana, comunicar-lhe o surpreendente resultado do meu encontro com Jorge.

Conversámos. Como as palavras são tanto e tão pouco. Chaves poderosas que nos abrem portas para todos os estados de alma, ou apenas essa frágil articulação de segmentos sonoros, esse esplendor de signos imperfeitos a que falta a substância das coisas? Falávamos, e as nossas palavras começaram a pedir um toque de pele, a lentura do corpo. Foi quando Ana pôs a sua mão sobre a minha e eu senti que já não havia nada a dizer, que a partir daquele momento toda a fala era um despropósito e que a única coisa que fazia sentido era deixar-me ir na aventura da mão, seguir-lhe o braço, perder-me na plenitude do corpo.

Comecei então a viver com Ana no seu apartamento pequenino e simpático. O amor começava ao fim do dia, quando chegávamos a casa, e prosseguia pelos perfumados jardins da noite até às horas da madrugada. As vezes passávamos pelo café, os meus companheiros riam-se.

Mas durou pouco tempo a nossa relação. A imagem de Jorge, obsidiante, fixou-se na minha cabeça. Aproximara-me dele como terapeuta e acabara a roubar-lhe a mulher que amava. Tinha-o desenganado dessa paixão, conseguindo até que me entregasse as latas de tinta. Quem sabe se com mais umas inscrições, umas noites mais a pintar paredes, não teria logrado recuperar o seu amor perdido? Doía-me pensar nessa elementar possibilidade. Doía-me saber que enquanto eu me entregava às delícias do corpo de Ana e passava a noite abraçado a ela, Jorge, o infeliz poeta, sofria sozinho no seu quarto, acompanhado apenas dos seus vates, sem ninguém para amar.

Passei a ver, sempre que estava com Ana, o olhar melancólico do poeta e a sua mão acenando com o livrinho de Apollinaire de onde caíam folhas soltas com os poemas escritos a Annie Playden. Tentava fechar os olhos, mas era ainda pior. Ouvia então estranhas vozes que declamavam ´´La chanson du Mal-Aimé´´, poema que acabei por decorar sem nunca ter lido:

Adieu faux amour confondu
Avec la femme qui s´éloigne
Avec celle que j´ai perdue
L´année dernière en Allemagne
Et que je ne reverrai plus

Resolvi espaçar os meus encontros com Ana, passando algumas noites em minha casa. Era a única forma de fugir às vozes e imagens obsidiantes, de ter algum descanso. Até que tudo acabou: Ana, com frontalidade, apresentou-me um certificado de amante incompetente e entregou-me a guia de marcha.

Sofro agora como sofre ou sofreu o poeta Jorge. Há cinco dias que não me apresento ao trabalho e as noites são de uma indizível tortura. Mas hoje saí com as latas de tinta para o bairro de Ana. Evitei passar junto do café, entrei pela rua de cima, e aventurei-me na primeira parede nua que descobri, uma excelente parede para receber o meu grito de alma, até admira que o poeta Jorge nunca tenha dado com ela. E premindo nervosamente a válvula do spray deixei nela o primeiro dos meus apaixonados apelos:

ANA, CONTINUO A AMAR-TE. PERDOA.

D.E.

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