terça-feira, outubro 13, 2009

O HONROSO CARGO

O bairro dos mortos, como era conhecido pela rapaziada da minha rua, ergue-se num chão declivoso com a forma aproximada dum rectângulo. Está limitado a norte pela Rua da Bica do Marquês, a sul pela Travessa da Boa-Hora (a rua da praça), a oriente pela Rua de Dom Vasco, e a ocidente pela Calçada da Ajuda – a tal dos quartéis e dos cavalos a que se refere Baptista-Bastos nas Bicicletas em Setembro. Cavalos e cavaleiros, descendo a calçada, ao domingo, para o render da guarda no Palácio de Belém, recebiam da malta o apodo de capicuas: uma besta, uma sela, uma besta.
Chamávamos-lhe bairro dos mortos pelas placas toponímicas que identificam as ruas, todas respeitantes a militares falecidos em combate ou celebrizados por feitos heróicos que alegremente ignorávamos: Rua Comandante Assis Camilo, Rua Cabo Floriano de Morais, Rua Coronel Pereira da Silva, Rua Soldado António Costa, e outras.
O bairro era uma colecção de prédios monótonos e amarelentos, de fachadas tristes, as janelas entreabertas para o olhar viscoso das vizinhas, as ruas dormentes de alcatrão fendido e irregular. No centro das casas e das vias ficava (fica ainda) a Escola Primária nº 60, fundada, conforme informação lapidar, em 15 de Setembro de 1934, ano dois da famosa ordem constitucional que nos quis obedientes, respeitadores, de brandos costumes e orgulhosamente sós. Lembro-me de ler em Alexandre O’ Neill:
Neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso.
Verifiquei no domingo passado que, afinal, o bairro não mudara muito. Mais automóveis, menos carros eléctricos chiando nos carris da Rua da Bica e da Rua de Dom Vasco, gente mais composta assomando às janelas, agora com persianas de plástico e caixilhos de alumínio, mas, no fundo, o mesmo clima soturno, de fastio, sem um canto de jardim ou uma tira de relva, entrevendo-se apenas, em escassos pontos da sua área, uma nesga da língua azul do rio com o imprevisto dum barco e o arraial de silos nas margens da Palença.
Vem tudo isto por causa de uma carta cuja parte inicial aqui reproduzo:

Conforme poderá verificar pela cópia do alvará de nomeação afixado na Câmara Municipal foi nomeado para o honroso cargo de Escrutinador (secção de voto nº 5) da Assembleia de voto da freguesia de Ajuda que funcionará na Escola Primária nº 60 – R. Coronel Pereira da Silva.

Foi por esta singular convocatória que passei todo o domingo no bairro dos mortos, urdindo evocações poéticas e descarregando prosaicamente os cadernos eleitorais. Às nove da noite ainda contava votos. Fui-me deitar, cansado dos trabalhos do honroso cargo, sem saber quem ganhara e perdera naquele dia de eleições.

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