segunda-feira, outubro 05, 2009

A VIZINHA

Chegava a casa, ao fim do dia, cansado e triste. Sete horas de trabalho monótono diante do computador, a cabeça pendente sobre o teclado, os olhos doridos dos revérberos do ecrã.
Estacionava o carro num dos rectângulos marcados a tinta branca no chão da praceta, e dirigia-se ao prédio onde morava, uma torre insolentemente disparada aos céus como se quisesse sorver o infinito.
Subia no elevador até ao seu apartamento, o 8º F. Metia a chave na fechadura, dava quatro voltas, e lastimava o estrépito metálico que se soltava dela. Denunciava-o.
Era então que os passos de mulher irrompiam no andar de cima, perseguindo-o por toda a casa.
Jantava, arrumava a loiça. Sentava-se finalmente para ler um livro ou burilar um poema, e os passos que sentira na cozinha abatiam-se sobre a solidão da sua mesa de trabalho.
Abandonava a caneta, deixava-se tomar por uma lassidão que lhe mostrava uma mulher de sapatos de salto alto e pernas cheias, o ventre flácido, os seios desabados sobre o círculo grosso da cintura, o rosto rotundo num grande alarde de fealdade impune.
Ele nascera para cantar o perfume e a beleza do corpo, para viajar nos cabelos das mulheres quando neles se insinua o vento, para amar as tardes de sol e as promessas das manhãs de bruma. Mas esgotava-se nas rotinas dum escritório cinzento, prisioneiro dos sonhos, desassossegado em casa pelo assédio obsceno do andar de cima.
Toda a noite era perseguido pelo tropel selvagem da fealdade. Levantava-se exausto, horrorizado.
Não sabia se alguma vez encontraria o esplendor da beleza. Estava seguro, porém, de que nunca subiria ao 9º F.

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