– Mas se ele não serviu para as outras, como
pode servir para mim?
Os olhos dela, onde havia uma sombra
de verde, viravam-se para a luz do dia que entrava pela porta do restaurante.
Era o momento em que a conta chegava à mesa a anunciar o fim da conversa. Mais
uns minutos e voltaríamos ao escritório, duas ruas acima, a cumprir o período
de trabalho da tarde.
Não conseguia compreender o que é que
ela esperava de mim em cada um daqueles almoços de que tentava excluir, quase
sempre com êxito, os demais colegas. O técnico de contas, um homem de corpo volumoso
e personalidade miudinha, colava-se algumas vezes à nossa mesa, e a conversa
derivava, soturna, para coisas importantes e estranhamente sérias: obrigações
tributárias, reembolsos de IVA , taxas de importação de países terceiros e respectivas
imposições fiscais. Mas M., assim devo chamar-lhe, tinha artes de o afastar nos
dias seguintes: alegava outro horário de almoço e o homem conformava-se a repor
sozinho, numa mesa triste, o nível necessário da sua força de trabalho.
Nem sei dizer se M. chegava a ser
bela. Eu deixava-me arrastar pela serenidade sobressaltada do seu corpo, como
se não fosse uns vinte anos mais velho do que ela e ainda tivesse veleidades de
impressionar as mulheres com a minha conversa e o meu aspecto físico. Foi justamente
por essa altura que comecei a reparar nas minhas fotografias e a ver nelas,
talvez porque fixassem o instante fugidio e revelador, aquilo que o espelho se
negava a dizer-me: que estava irremediavelmente acabado, gasto como uma pedra
rolada. Além do mais vivia desiludido do
amor, como se fosse possível desiludirmo-nos de algo por que nunca
verdadeiramente passámos.
M. revelava-se em cada almoço mais confiante
e afectuosa. Contava-me coisas íntimas e surpreendentes que não ouso aqui
delatar, fazia-me queixas:
– Chegou a casa às quatro da manhã. E eu vou
aguentar isto?
Eu conhecia o homem, era cliente do
escritório, um marialva bem apessoado que demolia corações femininos e gozava à
tripa-forra as carnalidades vagabundas. A sua relação com M., de que resultara
um filho, fora precedida de dois casamentos fugazes. Dizia-se que foram as
mulheres que lhe puseram as malas à porta de casa, se é que não lhe chegaram a
pôr algo mais, mas fora dela. Se ele não serviu para as outras, como poderia
servir para M.? E dava comigo a espantar-me com a sabedoria daquela mulher que
numa simples interrogativa conseguia condensar todo o desafecto duma relação
conjugal, saindo da penumbra da incompreensão e vendo claro as ínfimas mas
reveladoras modulações do seu caso amoroso.
M. pretendia que eu lhe falasse de
mim. Mas que tinha eu para dizer que ela não adivinhasse, que narrativa poderia
fazer do meu caso que ultrapassasse em interesse o canto de sereia da sua
epopeia? Calava-me.
O técnico de contas, invejoso da nossa
intimidade, começou a espalhar coisas feias no escritório. Sempre detestei a
inveja dos homens em relação aos casos que envolvem mulheres. Mas havia algum
caso? Aí é que estava a questão.
Então tentei acabar com os almoços
a dois. Convidei colegas que
frequentavam habitualmente outros restaurantes, fiz-me desencontrado, comecei a
sair em serviço a partir do meio da manhã. Evitava-a. Mas um certo dia, M.
esperou-me à saída e chamou-me cobarde. Pisquei os olhos como quem vê, de
súbito, um grande clarão, e no dia seguinte já estava a almoçar com ela. Por
resguardo, mudámos para um restaurante discreto.
Num desses almoços, num momento menos
feliz em que M. me entrava pelos olhos como uma epifania, a minha mão ganhou
movimento próprio, fugiu-me do corpo e do controle da mente, poisando sobre a
sua em cujos dedos ondulavam anéis serpentinos e brilhantes. Foi um momento
mágico. Acho que a mão logo ganhou consciência do perigo em que se metia,
retraindo-se como uma lagarta quando se sente tocada. Porém, coisa espantosa,
já a mão de M. a retinha, aconchegando-a no calor da sua, passando-lhe uma
corrente eléctrica que me golfava sangue nas mais íntimas e secretas cavidades
do meu dispositivo amoroso. Vacilei.
Falei a M. na inconveniência da nossa
aventura. Eu era um homem estruturalmente sério e não tinha sequer
possibilidade de a acompanhar: estava velho e gasto. E foi então que ela se riu
de mim e me acusou das mais inconsequentes efabulações a seu respeito. Disse-me
que tinha o casamento em risco, era certo, mas que estava disposta a lutar por
ele. Que não alimentasse eu ideias, pois que amava o marido e não andava à
procura de novas experiências.
Aceitei o que me dizia. Este caso, ou
pseudocaso, foi o meu canto de cisne. Nunca mais olhei para uma mulher com
aquelas intenções que os homens tantas vezes têm de as tomarem como amantes.
Ainda bem que tudo acabou assim e que voltei à tranquilidade do meu trabalho e
dos meus pensamentos.
M. almoça agora todos os dias com C.,
um jovem estagiário de Contabilidade e Administração, engravatado e magro, mas alegre
e de muito boa figura. Não ouso pensar em nada de reprovável a respeito da amizade
que parece uni-los. Já os tenho visto a saírem, ao fim da tarde, no carro de M.,
algo que acharia estranho se eu não soubesse que moram ambos na mesma zona da
cidade. E ela anda mais feliz, e o seu desempenho profissional é agora
satisfatório, como ainda ontem me confidenciou o técnico de contas.
Deverá ter reequilibrado a sua
relação conjugal. Fico satisfeito. Isso
é fundamental para que qualquer mulher se possa sentir bem.
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