quinta-feira, março 09, 2006

WERTHER NO CHIADO



Custou-me muito a deixar de fazer uso da casaca azul que vestia no dia em que dancei com Charlotte pela primeira vez; mas, na verdade, estava já incapaz. Mandei, porém, fazer outra igual, assim como o colete e os calções amarelos. Conquanto este novo vestuário não me produza o mesmo efeito, espero, com o tempo, que hei-de vir a ter-lhe a mesma amizade.

Carta do jovem Werther, de 6 de Setembro de 1772, ao seu grande amigo Wilhelm.
“Werther” de Goethe




Davam-no como louco. Vestido de fraque, com uma rosa flamejando na lapela, movia-se todos os dias entre a Baixa e o Chiado, suscitando escárnios e perplexidades, olhares piedosos, curiosidades mórbidas. A razão de assim se apresentar, em fato de cerimónia, era explicada pelo povo da seguinte maneira: o homem do fraque era um eterno noivo; tinha ficado pendurado à porta da igreja à espera de uma noiva que, entretanto, decidira desistir do casamento. E de tal forma se deixara perturbar pela insólita situação que nunca mais largara o trajo do funesto dia.

Devo dizer que nunca acreditei nessa explicação. Não me parecia possível alguém poder enlouquecer por tão singelo contratempo. E deplorava esse pendor popular para reduzir a vida e as paixões dos homens a uma cenografia de convenções e momentos solenes sem os quais a felicidade não existe. Para mim, o homem do fraque tinha todo o aspecto de ser uma pessoa superior, dessas que não se deixam abater com facilidade. E depois, assim dito, sem mais, que significado tem um casamento? Podiam falar de uma paixão não correspondida ou dos infinitos desconcertos do amor, mas não, o que a vox populi destacava era o cerimonial das núpcias, esse lugar de vaidades onde tantas vezes não mora o verdadeiro sentimento amoroso. Se o homem do fraque assim se apresentava, impecavelmente vestido, subindo o Chiado com o seu passo certo e modos delicados, por alguma razão seria mas não certamente por essa que lhe atribuíam.

É verdade que muitas vezes não lhe corria bem o passeio. O relacionamento com os passantes era difícil, tinha os seus momentos críticos. A Lisboa cinzenta daquele tempo não condizia com o desvario perfumado da sua imagem: tinham dificuldade em aceitá-lo tal como era. Uma tarde, vi eu, ainda o Fernando António não estava sentado na cadeira da Brasileira e mal se podia respirar na Rua António Maria Cardoso, junto à estátua do poeta António Ribeiro Chiado, no sítio onde hoje se abre a garganta do metro, um grupo de rapazes dirigiu-lhe umas palavras provocatórias. Perdeu a compostura, e os insultos saíram-lhe em catadupa. Isto acontecia quase todos os dias: um fraque não podia passear em paz na Rua Garrett, carreiro de autómatos engravatados metidos em fatos de medida de lanifícios da Covilhã.

E foi assim que dia após dia, quando me cruzava com ele na rua e dava conta dos comentários jocosos que faziam à sua passagem, ia crescendo a minha admiração pela sua figura refinada, pela coragem com que enfrentava o bosque de criaturinhas acéfalas das ruas da Baixa e do Chiado. Tornou-se o meu ídolo. Para o ver passar comecei a lançar mão de perigosas estratégias, como inventar justificações para chegar atrasado ao escritório e fazer pausas a meio da tarde para tomar café, direitos não contemplados no meu contrato de trabalho. Arrostava então com as admoestações do chefe e aos poucos ia desorganizando toda a minha vida profissional. Não me concentrava no trabalho, errava os lançamentos nas fichas de inventário, confundia clamorosamente as existências de mercadorias. Ansiava todo o dia pela hora da saída para me plantar à porta da Brasileira e vê-lo chegar para tomar café. Que distinção e modos correctos, achava-o um ser de um mundo diferente. Acima de tudo, fascinava-me o pressentimento de haver por detrás daquele homem uma extraordinária história de vida. Para a conhecer daria tudo. E não era uma vulgar curiosidade a tomar conta de mim: já naquele tempo me habituara a discorrer sobre o sentido da vida e a felicidade dos homens.

Por diversas vezes, na rua, tentei dirigir-lhe a palavra, um mero cumprimento que lhe permitisse identificar-me como pessoa capaz de aceitar a sua maneira de ser, de o respeitar nas suas singularidades comportamentais, mas nunca consegui fazer-me notar. Parecia ter o olhar cravado num ponto distante, só reagia se alguma provocação lhe era directamente dirigida.

Aconteceu que entrando um dia na Livraria Bertrand à procura de um manual de Contabilidade para aprofundar e melhorar os meus saberes profissionais, tentando assim recuperar da má imagem formada a meu respeito pelos meus patrões, vejo o homem do fraque a pagar no balcão da caixa um livro acabado de retirar de uma prateleira. Era o Werther de Goethe, edição da Guimarães Editores desse ano de 1970. Sabia que aquele romance alemão, publicado em 1774, narrava as desventuras amorosas do jovem Werther, artista e leitor de Homero, num conjunto de cartas por ele escritas a um grande amigo durante os anos de 1771 e 1772. Confesso não ter valorizado, de imediato, nem o acto de compra do livro, nem a escolha daquele autor do romantismo alemão. Tinha a intuição de que o homem do fraque era uma pessoa culta, habituada a lidar com as grandes obras literárias, portanto pareceu-me perfeitamente natural que frequentasse as livrarias e lesse Goethe. Mas nessa noite, deitado no meu divã à espera da chegada do sono, a terrível espertina a tomar conta de mim, comecei a ver o que até aí não ousara sequer considerar: a escolha do Werther não era uma simples coincidência ou uma inclinação meramente literária. A história daquele romance deveria ter alguma coisa a ver com a vida do homem do fraque. Fiquei tão excitado com a minha descoberta que já não consegui dormir.

No dia seguinte cheguei cedo ao escritório, tendo provocado no meu chefe um sorriso de satisfação. Renunciei à pausa para o café, a meio da manhã, aguentando-me acordado à custa do consumo imoderado de cigarros. Naquele tempo ninguém ligava aos malefícios do tabaco, fumar fazia bem à saúde e confortava o ego dos pobres mortais. A minha cabeça vogava num nimbo deletério de fumo, o meu chefe tossia, enchia o lenço de escarros copiosos, mas nem se importava. Ainda não estavam definidos a figura e os direitos do fumador passivo; ainda nenhuma empresa, nem mesmo na América, tinha sido processada pelos arrasadores cancros de pulmão causados aos seus funcionários pela liberdade de fumar em áreas laborais. Portanto, fumava-se com todo o à-vontade, apenas era costume pedir licença às senhoras, mero procedimento cortês, nada mais do que isso. O chefe tinha boas razões para estar satisfeito comigo: estava a cumprir o horário, os lançamentos brotavam da ponta da caneta e cobriam o branco da fichas de inventário em ritmo satisfatório.

Terminei em apoteose de produtividade o período laboral da manhã. O chefe, entusiasmado, até me convidou para ir almoçar, amabilidade que agradeci sem poder aceitar, pois tinha outros planos para o escasso tempo da minha hora de almoço. Dirigi-me à Livraria Bertrand antes da uma da tarde, hora de encerramento de todo o comércio do Chiado com a natural excepção de restaurantes, cafés e similares. Conhecia aí um caixeiro meu vizinho, com quem não tinha afinidades especiais, mas que me podia ajudar naquilo que pretendia. Havia reparado que o homem do fraque, objecto de troça em toda a Rua Garrett, era bastante considerado na Livraria Bertrand. No dia em que o vi adquirir o Werther, recebeu do citado caixeiro, à saída, um cumprimento tão atencioso que me pareceu muito para além da cortesia formal devida pelo comércio aos seus clientes. Aquele homem podia ajudar-me a descobrir a história do homem do fraque. Fui falar com o caixeiro, um sujeito de meia-idade que havia estudado no seminário, com fama de latinista e de conhecer gente da sociedade. Às minhas inquirições, respondeu assim:

Pois quer o meu amigo que lhe fale sobre o senhor doutor, o que se passeia de fraque no Chiado, faço-o com gosto, sim senhor, é cliente desta casa há algum tempo, seis ou sete anos, quando tinha escritório de advogado na Boa-Hora era aqui que adquiria as edições jurídicas, um grande escritório, digo-lhe, tinha vários colegas a trabalhar com ele, e comprava obras literárias, revistas especializadas, foi pena ter deixado de exercer a advocacia, na barra do tribunal não havia outro, discurso fácil, nenhum juiz lhe fazia o ninho atrás da orelha, sabia da poda como ninguém, a grande causa dos seus problemas foi Charlotte, peço-lhe o grande favor de não espalhar isto que lhe conto, faço-o por amizade, somos vizinhos, e já vejo que é um jovem inteligente, analista dos géneros humanos, lá diziam os antigos homo sum et nihil humani a me alienum puto, sou homem e nada do que é humano considero alheio, pois essa senhora é que lhe estragou a vida, é filha de um diplomata alemão, casada com um jovem diplomata colega do pai, sabe como é a carreira diplomática, um dia estão em Lisboa a gozar este sol ameno de que os nórdicos tanto gostam, no outro já estão no Cairo ou em qualquer esconso do Mundo a destilar suores, o marido de Charlotte estava longe, colocado temporariamente numa perigosa missão onde não era de bom conselho fazer-se acompanhar da família, o senhor doutor trabalhava para a Embaixada Alemã, tinha relações muito estreitas com todo o pessoal diplomático, foi assim que foi convidado para uma recepção na embaixada onde conheceu Charlotte, que bela mulher, ao contrário da nórdica típica esta tem os olhos negros, os cabelos são azeviche puro, pois bastou vê-la para ficar apaixonado, perdidamente, com o seu fraque de cerimónia e uma rosa na lapela também não passou despercebido a Charlotte, então, abyssus abissum invocat, um abismo atrai outro abismo, começaram a sair juntos, a passear no Chiado ao fim das tardes, é claro que não havia nada de mais, Charlotte amava o marido embora não ficasse indiferente ao charme e à inteligência do senhor doutor, diziam os latinos procul ex oculis procul ex mente, ou seja, longe dos olhos longe do pensamento, mas não era verdade, pois aqui aplicava-se outra grande máxima latina, omnia vincit amor, o amor vence tudo, mesmo longe Charlotte tinha sempre o marido no pensamento, mas apreciava aquela amizade tão saborosa que sentia pelo senhor doutor, amizade?, sei lá o que é, chamemos-lhe amizade para simplificar as coisas, está-me a perguntar como é que estou ao corrente de tudo isto?, talvez não saiba que a nossa livraria é fornecedora da Embaixada Alemã, temos relações com todo o pessoal, há coisas que transpiram com facilidade, mas dizia eu, enquanto Charlotte via a relação com o senhor doutor como uma amizade colorida, ele deixava-se dominar pela nuvem negra da paixão, paixão impossível, mórbida, repare que não larga o fraque, estava assim vestido quando a conheceu, e depois descobriu a semelhança entre o seu caso e o do jovem Werther, se já leu o romance lembrar-se-á de que o infeliz amador não largava a casaca do dia do baile em que dançou com Charlotte, no romance também assim se chamava o objecto da paixão desmedida, é então que dá em adquirir tudo o que fosse edição do romance de Goethe, estou a falar não só das diversas edições da Guimarães, as que se encontravam no mercado, mas também as que saíam na língua original e até em outras línguas, sei disto porque fazia o favor de me consultar, aconselhava-se comigo sobre as lojas de livros antigos, sei que encontrou numa loja do Bairro Alto uma edição francesa de 1854, tradução de Saint-Beuve, como estava alvoraçado nesse dia em que topou com o raro exemplar, está a ver a situação, um pouco doentia, não lhe parece?, e assim encheu uma estante de diferentes edições do Werther, deu-se então o caso do marido de Charlotte regressar a Lisboa após terminar a sua missão, pois pensa o meu amigo que acabou a convivência?, desengane-se, o marido estava ao corrente de tudo, sabia como a mulher gostava da companhia do senhor doutor, ainda lhe agradeceu o apoio prestado na sua ausência, ficaram grandes amigos, trazia para lhe oferecer uma edição raríssima do Werther descoberta num alfarrabista de Roma durante uma visita que fizera ao Vaticano, I Dolori del Giovine Werther, de 1883, edição milanesa da editora Sonzogno, e imagina o meu amigo que se entregou Charlotte, a partir de então, à convivência exclusiva com o seu amado esposo?, em renovada lua-de-mel?, nem pensar, para onde eles iam ia o senhor doutor atrás, afectos triangulares, é coisa que dá para pensar, o pior foi o caso começar a ser falado, Lisboa é uma aldeia, e foi o marido que acabou por pedir a Charlotte para se distanciar daquela amizade, nenhuma imposição, apenas um pedido, tudo gente civilizada como está a ver, Charlotte falou com o senhor doutor, fez-lhe ver que aquela paixão não levava a nada, deixou de o receber, e agora anda aí pelo Chiado como o meu amigo vê, não sei onde vai acabar aquilo…

Tão bem me tinha corrido a manhã de trabalho que nem pensava poder borrar toda a pintura durante o período da tarde. Erros sobre erros, desatenções. Não deixava de pensar no homem do fraque e em tudo o que me contara o caixeiro. Às quatro horas o chefe chamou-me ao gabinete do patrão e falou desta maneira:

Vou dizer-lhe uma coisa, aqui diante do dono desta casa para que não restem dúvidas da minha determinação, se o senhor insiste em não se aplicar no trabalho, se vem para aqui pensar na sua vida particular, nos amigos, na namorada, nos romances que lê ou no futebol, se não ajuda a puxar este grande carro que é a nossa casa comercial, comércio por grosso e a retalho, comissões e consignações, agências em todas as cidades da Metrópole e do Ultramar, então é melhor que não trabalhe para nós, empregos e empregados não faltam aí, vá para funcionário do Estado, não se ganha tanto mas trabalha-se muito menos, venha amanhã se vier com vontade de dar o litro, de contrário é melhor que não volte a aparecer, hoje não aceito mais o seu trabalho, pode sair que vou dar ordem para lhe descontarem as horas da tarde.

Que podia fazer um pobre vendedor da sua força de trabalho, sem o amparo de sindicato ou comissão de trabalhadores, perante o poder avassalador do grande capitalismo comercial? Só obedecer, não havia outra solução. Dei comigo a subir a Rua Garrett, com um nó na cabeça, a caminho do eléctrico.

Cheguei a casa. Comecei de imediato a ler o Werther adquirido na livraria à hora de almoço. Nunca tinha lido o romance do princípio ao fim. O que dele sabia não passava das referências habitualmente feitas em antologias, histórias de literatura ou artigos de jornais. Mas lendo-o e relendo-o, carta após carta, até ao desfecho narrado pelo editor, via como os romances são afinal o espelho da vida real. Este, como se sabe, é autobiográfico, tirado da própria vida de Goethe, mas ressurgia então no Chiado, em outras vidas iguais. E uma coisa me começou a preocupar: no romance, o jovem Werther suicida-se com um tiro de pistola na cabeça, única saída encontrada para a paixão impossível que lhe oprimia o coração. Onde chegaria o homem do fraque no seu delírio de amor? Sobressaltei-me tanto que passei outra noite sem dormir. Precisava de chegar ao Chiado, no dia seguinte, o mais cedo possível. Era urgente estar com o homem do fraque à hora do primeiro café na Brasileira. Entre as nove e as dez era quando ele aparecia, esperaria o tempo que fosse necessário. Bem me importava o escritório, já tinha decidido não voltar a pôr lá os pés, tinha era de falar com o infeliz apaixonado, fazer-lhe ver o perigo que corria se acaso a sua história, por capricho dos deuses, fosse uma repetição da história do pobre Werther. Ainda havia tempo para arrepiar caminho.

Durante toda a manhã aguardei a sua chegada sentado na Brasileira. O homem do fraque não apareceu. Ninguém o viu desfilar à tarde nos passeios do Chiado.

Calcorreei alvoraçado a planura das ruas da Baixa, subi e desci o Chiado não sei quantas vezes, aventurei-me nas vielas do Bairro Alto, desci à Rua do Alecrim, Largo Barão de Quintela, Cais do Sodré, Largo do Corpo Santo, meti-me pela Vítor Cordon, dei a volta por todo o perímetro do antigo espaço conventual de S. Francisco, entrei em cafés e restaurantes, subi à Trindade, fui ao Largo do Carmo... estava escrito no livro do tempo que ainda teriam de passar três anos e alguns meses para aí se renderem os velhos senhores do burgo… Mas do homem do fraque, nem sombra.

Ao terceiro dia sem lhe descobrir o rasto comecei a ficar preocupado. Temia cada vez mais um acto de desespero do desditoso apaixonado. Dei em ler as necrologias, as notícias dos jornais. Estes só falavam daquilo que queriam, havia coisas de que queriam falar e não os deixavam, mas um suicídio, para mais sendo de gente da alta sociedade, era notícia a que se daria algum relevo, assim pensava eu… De suicídios, porém, só dei conta de um artigo do “Diário de Notícias” lamentando a infelicidade dos suecos, esses nórdicos habituados a pôr termo à vida com a maior das naturalidades, certamente, perorava o articulista, por não disporem de um sistema social e político tão justo e equilibrado como o de Portugal...

Não me contive e fui procurar o meu vizinho caixeiro da Livraria Bertrand. E recebi uma notícia extraordinária: o homem do fraque tinha fugido com Charlotte. A bela alemã, que nunca fora indiferente aos encantos do seu enamorado, tinha trocado um casamento cinzento por uma paixão que finalmente podia explodir de luz e de cor. Há dois dias que a Embaixada estava em alvoroço, os negócios e interesses da Alemanha em Portugal tinham passado para segundo plano. Todo o pessoal da embaixada não fazia outra coisa senão tentar localizar os fugitivos. Fiquei espantado e ao mesmo tempo senti uma grande tranquilidade tomar conta de mim. Passeei durante o resto do dia pelas ruas da Baixa e do Chiado com a alegria própria de quem acaba de se aliviar de um pesado fardo.

E pensava como a vida real é afinal bem diferente daquilo que nos servem os escritores nos seus romances e novelas.



D.E.

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