quinta-feira, março 02, 2006

" MARTÍRIO DE S. SEBASTIÃO ", PAINEL PROTOMANEIRISTA PINTADO POR GREGÓRIO LOPES (1536) PARA A CHAROLA DO CONVENTO DE CRISTO EM TOMAR


O mártir está atado à coluna sobre o plinto de mármore. Já três setas lhe entraram nas carnes. A cabeça – circundada por um duplo halo – cai-lhe para a banda esquerda, mas nenhum sinal de dor se reflecte na fenda da boca e os olhos ainda não se fecharam por completo sob a cortina das pálpebras.

Atentemos nos dois sagitários que ocupam o primeiro plano do painel. Só um deles, o que vemos à direita em uniforme militar quinhentista, assesta a sua arma sobre o corpo do mártir. O besteiro que está à esquerda parece apontar na direcção do verdugo do arco. Seria assim um protector do supliciado.

Das três setas que lhe trespassam o corpo, uma só por sorte não atravessou o coração, o que representaria morte imediata por falência do aparelho circulatório. Outra está alojada na região do rim, um órgão vital, embora subsista incólume o rim direito e esse seja fisiologicamente suficiente para assegurar as funções depurativas próprias destes órgãos. A última entrou-lhe pela zona lateral do tórax, só por milagre não terá causado danos no pulmão. Não admira pois que após estas setas e mais as que se seguiram sem que delas pudesse o artista dar testemunho, se tenham convencido os carrascos da morte de Sebastião.

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Sebastião era militar do exército romano no tempo dos imperadores Diocleciano e Maximiano. Corriam severos aqueles anos do final do século III, já se sentia vacilar o poder de Roma, e Diocleciano perseguia os prosélitos da fé cristã em todos os cantos do seu vasto Império. Veja-se que até à cidade de Olisipo, na distante província da Lusitânia, chegava a mão do implacável perseguidor: o martírio dos irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia, ousados violadores dos éditos imperiais que proibiam a religião cristã. Sebastião, voltemos a ele, era um bom soldado. Tão bom e apreciado pela hierarquia militar que lhe foi atribuído o comando da primeira coorte imperial. A ingratidão de Sebastião, no entanto, não podia ter sido maior. Convertido ao cristianismo, aproveitou-se da sua posição de comando para catequizar os subordinados, subvertendo a disciplina castrense e prejudicando a religião oficial do Estado. E foi mais longe: tirando partido da sua posição e influência, converteu Nicóstrato e sua mulher Zoe, destacados cidadãos romanos; levou para a fé cristã Tranquilino, pai de Marco e Marcelino, mártires que viriam a merecer a graça da canonização; converteu também Cláudio, outro cidadão que pertencia à nata da sociedade de Roma, assim como as suas duas filhas. Foi por este cúmulo de acções, e pelo mais que a História não regista mas de que se suspeita, que Sebastião sofreu o martírio tal como vemos agora na obra do artista.

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Detenhamo-nos então no painel. O besteiro protector de Sebastião, que vemos orientar a arma na direcção do archeiro seu colega, não apresenta o mesmo uniforme militar. Pelo trajo que usa e pela grossura do porte, comparando com os retratos da época, parece-se mesmo com o senhor D. João III, rei de Portugal, possível doador da obra para a charola do Convento de Cristo. Nessa qualidade, como era então usual, podia ser representado na pintura. D. Manuel, por exemplo, aparece como rei mago em vários retábulos de que foi doador. Por que razão não havia D. João III de figurar no painel como defensor do mártir? Tal representação teria a força de um voto. E a verdade é que, por graça concedida ou simples coincidência, viria o Rei a ter como sucessor no trono o seu desejado neto D. Sebastião, assim baptizado por ter nascido a 20 de Janeiro de 1554, dia do ano consagrado aos festejos do santo.

Reparemos agora nas mãos de Sebastião – duas mãos direitas. A mão direita verdadeira está sobre a cabeça, o braço preso à coluna. A outra mão direita, a falsa, pois no seu lugar deveria estar a esquerda, surge por trás do corpo ao nível da cintura. Não tenhamos dúvidas, é uma mão direita que ali se mostra – a ser a esquerda não nos daria o polegar e o indicador na primeira linha da representação.

Ora não é crível que um artista de tão alto gabarito, pintor régio de D. João III, formado na oficina de mestre Jorge Afonso, conhecedor das fulgurações das artes flamenga e italiana, se tenha enganado no desenho como um simples principiante. Grande era a arte deste mestre. Só em Tomar passou ele três anos de intenso labor, em plena maturidade criativa, realizando painéis para a charola do Convento de Cristo: além de “Martírio de S. Sebastião”, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, pintou o painel “Senhora dos Anjos”, que repousa no mesmo museu, estando ainda no local primitivo os painéis “S. Bernardo” e “Santo António Pregando aos Peixes”. E para o altar-mor da Igreja de São João Baptista, templo então dependente da Ordem de Cristo, realizou o artista o retábulo de que restam as peças “Degolação” e “Apresentação da cabeça de S. João Baptista”. Se um pintor desta craveira dá em trocar os dedos de uma mão de tal forma que a mesma passa de sestra a destra, alguma razão teria para o fazer…

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E entramos na segunda parte da história de Sebastião. Julgado morto pelos seus algozes, o corpo cravado de setas, foi deixado na praça pública como exemplo, para que se soubesse de que forma o poder imperial castigava a deslealdade. Mas pela noite passou pelo local uma pobre viúva, de nome Irene, que vendo aquele corpo inanimado, ainda com um sopro de vida, o recolheu e tratou.

Milagre ou mero resultado dos esforçados cuidados de Irene, Sebastião sarou. A seguir, vem a parte mais surpreendente da história: Sebastião decide apresentar-se a Diocleciano e reafirmar a sua fé cristã, declarando-se disposto a continuar a campanha de conversões, o que não agradou, como é de calcular, ao imperador. Daí que tenha ordenado a sua detenção imediata, mandando-o açoitar até à morte. E aqui está um paradoxo iconográfico que não sabemos como explicar, pois Sebastião não morreu das setas mas sim a golpes de chicote, e tal martírio raramente se vê representado nas imagens devotas.

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Narrativa hermética, esta que o artista nos dá. Não só pelos dedos trocados, em que alguém já pretendeu ver uma referência à relíquia de S. Sebastião, um rádio do braço direito, saqueada por Carlos V de uma igreja de Roma, em 1527, e oferecida ao seu cunhado D. João III . A representação de duas mãos direitas, sendo a mão uma extensão do braço, teria um forte poder invocativo de tão importante relíquia. Mas também pelos múltiplos planos de difícil decifração em que se desdobra o painel para além do óbvio sacrifício de Sebastião.

Uma coisa, no entanto, é clara: conta-se aqui uma história de intolerância religiosa. O evidente martírio de Sebastião, mas também o fanatismo de sinal contrário que se figura no plano do painel à direita do archeiro quinhentista. É visível que ocorre aí uma imolação pelo fogo: dois mártires estão presos aos mastros sobre a fogueira, alguém levanta uma cruz em direcção a eles, e uma grossa coluna de fumo sobe nos ares. Um auto-de-fé. Em 1536, ano da possível execução da obra, foi introduzida a Inquisição em Portugal. O artista não desperdiçou a oportunidade de testemunhar o momento histórico.

Facilmente se passa de perseguido a perseguidor. É só deixar andar a roda do tempo. Uns anos mais tarde, em pleno delírio inquisitorial, já não poderia o artista fazer uso de tamanha liberdade criativa. Veja-se esta passagem das “Constituições Sinodais”, de 1565, divulgada pelos bispados portugueses a propósito da representação das “santas imagens”:

“…que as imagens sejão esculpidas, ou pintadas com muita decência, & que não contenhão, ou representem, cousas vãas, supersticiosas, ou aphocrifas, ou que dem (sic) ao povo occasião de erro, ou escandalo (…), que não incluam pessoas particulares vivas, ou defuntas, e que se conformem com os Mysterios, vida & milagres dos originais, que representarão, & assi na honestidade dos rostos, perfeição dos corpos, & ornato dos vestidos."
D.E.

1 comentário:

Dora Iva Rita disse...

De tão disperso escrevedor até se esquece de citar as fontes...
dir