quarta-feira, agosto 16, 2006

A GEOMETRIA DOS AFECTOS

Lídia tem carnes brancas com pequeninos sinais nos braços e no peito. Usa cabelo curto, castanho claro, tem sobrancelhas finas, escassa é a mancha de pêlos no vértice do corpo. As pernas são longas, pinta as unhas dos pés com um verniz arroxeado e prende uma fina corrente de prata no tornozelo. Os seios cabem na concha duma mão. Os olhos emanam uma luz entre o castanho e o verde, as narinas são frementes, sequiosas de ar. Os dentes superiores estão separados à frente por uma fenda de gracioso efeito, dentinhos de mentirosa, digo a brincar, e sob a linha dos lábios dissimula no queixo uma pequena cova visível apenas quando a alegria se expande no rosto. As orelhas estão perfuradas nas cartilagens superiores, atravessadas por argolinhas cintilantes de diferentes tamanhos.
Depois de apaziguado o desejo, Lídia costuma rir como uma criança. Morde-me os dedos dos pés, faz-me cócegas, ou então recita sonetos de Baudelaire e eu fico a ouvi-la até me atordoar de espanto. E beija-me muito, mesmo quando já não está à espera de amor e apenas aguarda que se esgote o tempo do nosso encontro.
Gosto de vê-la vestir-se quando terminamos. A primeira peça que põe é o sutiã. Prende-o com a parte de trás virada para a frente, os olhos orientando a perícia dos dedos, rodando-o depois para a posição correcta, ajustando-o aos seios, passando em seguida as alças pelos ombros, primeiro a alça direita, depois a esquerda, sempre por esta ordem. A roupa íntima que usa é desprovida de rendas e transparências ousadas, roupa despretensiosa, cores vivas, Eva e a serpente no tecido das calcinhas, duas maçãs mordidas nas conchas do sutiã. Enfia os braços e a cabeça na camisa que não chegou a desabotoar, depois a camisola, deixando para último as peças que cobrem a parte do corpo abaixo da linha da cintura. Calça-se, despede-se com um beijo e sai primeiro para não sermos vistos juntos.
Gosto de Lídia e da alegria do seu amor, mas devo dizer que senti alguma inquietação quando a nossa relação começou. Por duas razões: Lídia é a melhor amiga de minha mulher e é casada com um colega meu, por sinal o mais dedicado dos colegas. Mas o tempo, esse velhinho lúbrico, encarregou-se de resolver os meus cuidados. Nunca senti que os nossos amores perturbassem a amizade que continua a existir entre todos. Lídia beija a minha mulher com a mesma naturalidade com que se deita comigo, conversam muito as duas, dizem segredos uma à outra, riem, brincam, como só entre amigas costuma acontecer e é tão bonito de se presenciar. Eu e o marido de Lídia sempre nos estimámos reciprocamente, sendo de completa harmonia a vida de ambos os casais.
Um aspecto, porém, nunca deixou de me intrigar: é quando, a meio da tarde, nem eu sei de minha mulher, nem Lídia parece saber de seu marido, ausentes dos locais de trabalho, os telefones desligados, só dando sinal de vida à hora de jantar, os dois ao mesmo tempo, em enigmática sincronia. À minha inquietação reage Lídia com naturalidade: há-de aparecer, diz-me.
O mesmo se passa com o marido de Lídia quando venho de estar com ela. Há-de aparecer, digo eu, disfarçando o embaraço, confesso.
E é assim que faço por acreditar que tudo está bem entre nós: entre mim e Lídia, entre Lídia e minha mulher, entre mim e minha mulher, entre Lídia e o seu marido. Só ainda não percebi o que está mal nas horas da tarde em que minha mulher e o marido de Lídia desaparecem. Ou talvez perceba, mas não queira admitir. São infinitos os lances do amor, há sempre alguns que nos surpreendem. Talvez eu não esteja preparado para os entender na sua enorme diversidade e me recuse a ver o que está diante dos olhos. É um defeito meu, uma fragilidade, uma inaptidão para lidar com situações complexas, como a que pressinto neste trapézio de que faço parte, quadrilátero convexo, dois ângulos iguais, dois lados paralelos, os elos fortes do polígono, elas, linhas que regem e dissimulam, para deleite de todos, a geometria dos afectos.
 

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