Não sabes beijar, disse-lhe ele, sacudindo-a de cima de si para a borda da cama. Era noite, um feixe de luar atravessava a janela aberta que dava para um pátio onde àquela hora, em pleno Verão, ainda brincavam crianças. Ela deixou-se ficar quieta durante algum tempo, olhando o jorro de luz que lhe iluminava o corpo. Depois levantou-se com muito cuidado para não acordar o companheiro que entretanto adormecera e foi sentar-se na pequena sala de estar a ver televisão. Passava um filme romântico, um casal que se beijava num grande jardim que lhe pareceu o Central Park de Nova Iorque, isto porque acima das copas das árvores erguiam-se, enormes, as colunas de cimento dos edifícios urbanos. Um filme americano. Pôs-se a estudar a forma como os amantes se beijavam: a inclinação dos eixos das cabeças, a abertura dos lábios, a maneira como prendiam as mãos ou como as soltavam em brandas carícias de amor. Beijar sempre se lhe parecera uma coisa natural, uma manifestação de afecto desprovida de qualquer grau de ciência, algo que nos vem da alma como a luz nos entra pelos olhos. Mas agora chegava à conclusão que, em verdade, deveria haver uma maneira certa de beijar, bastava dar conta da forma como o faziam os amantes do filme. Tinha de aprender a beijar, o mais depressa possível.
Na manhã seguinte, no escritório, recordou-se das dificuldades profissionais que inicialmente tivera. Dissera-lhe o chefe, um dia, Você se não aprende a trabalhar com o computador não vai ver o seu contrato de trabalho renovado. E ela metera-se a estudar à noite naquela escola de informática do bairro, um curso de cem horas, dez semanas – Windows, Excel, Internet. Salvou o emprego. O que agora precisava para salvar a relação amorosa era de aprender a beijar. Mas escolas para aprender a beijar não conhecia. Uma colega tinha andado a frequentar um curso de etiqueta, outra aprendera dança do ventre, sabia de quem tivesse cursado arte de dizer, decoração de mesas, como receber visitas e organizar recepções, mas sobre a arte de beijar não conhecia nenhum curso em cujas aulas pudesse inscrever-se. Passou a ver os filmes da televisão e as telenovelas com maior atenção, e parecia-lhe que alguma coisa ia aprendendo com eles. Só que na prática não via confirmados os progressos que pensava estar a fazer. O companheiro continuava a achar uma sensaboria os beijos que ela desentranhava para o fazer feliz, negando-lhe a boca que ela tanto procurava.
Lembrou-se então daquele seu grande amigo de infância com quem tinha vivido as inocentes brincadeiras de criança. Perdera-lhe o rasto na adolescência, quando a família dele se mudara para outra cidade, mas viera a reencontrá-lo mais tarde, acabado de sair de um divórcio muito traumático. Decidiu telefonar-lhe. Da mesma forma que, na altura, o encorajara a superar o difícil transe que ele atravessava, podia agora esperar a ajuda que só um amigo pode dar, o conselho, a orientação, tanto mais que se tratava de pessoa com experiência adquirida no domínio dos desacertos amorosos. Encontraram-se. O amigo ouviu-a com interesse, os olhos brilhantes. Segurou-lhe uma das mãos como quem transmite uma força, e passando-lhe um dedo no recorte da boca, disse: Vou ajudar-te. Como?, perguntou ela, pressentindo uma resposta que não podia conhecer antecipadamente mas que depois de dada compreendeu ser a única possível: Vou ensinar-te a beijar.
Começaram em casa dele, ao fim da tarde, seguindo um programa de formação minuciosamente estabelecido, com uma clara definição dos objectivos a atingir. Primeira sessão, só beijos de lábios. Depois, nas sessões seguintes, as aulas práticas progrediram em exercícios de dificuldade acrescida, trabalhando com a língua e os dentes, misturando secreções salivares, beijos sôfregos e de cortar a respiração. Por hoje chega, dizia ela, preparando-se para retocar os lábios com um batom que tirava da mala de dentro dum estojo de que fazia parte um pequeno espelho. Era sempre ela a pedir o fim da sessão. Ele, por sua vontade, continuaria. Voltavam no dia seguinte. Como fazia muito calor começaram a aliviar-se das roupas para uma execução menos penosa do trabalho: ele tirava a camisa, ficando nu da cintura para cima, e ela despia a blusa deixando apenas o sutiã. Os teus beijos são já tecnicamente perfeitos, disse-lhe ele de certa vez, É a altura própria para passarmos a práticas pedagógicas mais exigentes. E começaram a combinar beijos com carícias: enquanto as bocas sorviam ou mordiam furiosamente, as mãos soltavam-se sobre os corpos, tocavam as zonas erógenas, metiam-se sob o pano das roupas à procura de ocultas delícias. As sessões tinham lugar muitas vezes sobre o tapete da sala, na horizontal.
Não é possível saber quando terminaram exactamente as sessões, o momento em que o formador deu por concluída a formação ou mesmo a altura certa em que formanda sentiu já estar formada em arte de beijar. Também não é possível determinar se ele se limitou a ensinar-lhe a matéria inicialmente proposta ou se se terá alongado por artes e conteúdos extra-curriculares. Sabe-se sim que ela se tornou outra mulher, mais segura, mais ardente e confiante nas suas capacidades.
Sabe-se ainda que em certa noite, já no fim do Verão, estando ela deitada com o companheiro naquele mesmo quarto onde havia uma janela que dava para um pátio, ele se aproximou, tendo começado a beijá-la. Coisa estranha, talvez se tratasse dum apetite passageiro originado por algum estímulo inesperado. Ela não disse nada, mas pensou, enquanto se abandonava quase indiferente àquela surpreendente manifestação de afecto, que afinal era ele que não sabia beijar.
A noite estava fresca, já não se ouvia a algazarra das crianças brincando, só lhe apetecia dormir. E nenhum raio de luar atravessava a janela do quarto para iluminar o seu corpo.
D.E.
Na manhã seguinte, no escritório, recordou-se das dificuldades profissionais que inicialmente tivera. Dissera-lhe o chefe, um dia, Você se não aprende a trabalhar com o computador não vai ver o seu contrato de trabalho renovado. E ela metera-se a estudar à noite naquela escola de informática do bairro, um curso de cem horas, dez semanas – Windows, Excel, Internet. Salvou o emprego. O que agora precisava para salvar a relação amorosa era de aprender a beijar. Mas escolas para aprender a beijar não conhecia. Uma colega tinha andado a frequentar um curso de etiqueta, outra aprendera dança do ventre, sabia de quem tivesse cursado arte de dizer, decoração de mesas, como receber visitas e organizar recepções, mas sobre a arte de beijar não conhecia nenhum curso em cujas aulas pudesse inscrever-se. Passou a ver os filmes da televisão e as telenovelas com maior atenção, e parecia-lhe que alguma coisa ia aprendendo com eles. Só que na prática não via confirmados os progressos que pensava estar a fazer. O companheiro continuava a achar uma sensaboria os beijos que ela desentranhava para o fazer feliz, negando-lhe a boca que ela tanto procurava.
Lembrou-se então daquele seu grande amigo de infância com quem tinha vivido as inocentes brincadeiras de criança. Perdera-lhe o rasto na adolescência, quando a família dele se mudara para outra cidade, mas viera a reencontrá-lo mais tarde, acabado de sair de um divórcio muito traumático. Decidiu telefonar-lhe. Da mesma forma que, na altura, o encorajara a superar o difícil transe que ele atravessava, podia agora esperar a ajuda que só um amigo pode dar, o conselho, a orientação, tanto mais que se tratava de pessoa com experiência adquirida no domínio dos desacertos amorosos. Encontraram-se. O amigo ouviu-a com interesse, os olhos brilhantes. Segurou-lhe uma das mãos como quem transmite uma força, e passando-lhe um dedo no recorte da boca, disse: Vou ajudar-te. Como?, perguntou ela, pressentindo uma resposta que não podia conhecer antecipadamente mas que depois de dada compreendeu ser a única possível: Vou ensinar-te a beijar.
Começaram em casa dele, ao fim da tarde, seguindo um programa de formação minuciosamente estabelecido, com uma clara definição dos objectivos a atingir. Primeira sessão, só beijos de lábios. Depois, nas sessões seguintes, as aulas práticas progrediram em exercícios de dificuldade acrescida, trabalhando com a língua e os dentes, misturando secreções salivares, beijos sôfregos e de cortar a respiração. Por hoje chega, dizia ela, preparando-se para retocar os lábios com um batom que tirava da mala de dentro dum estojo de que fazia parte um pequeno espelho. Era sempre ela a pedir o fim da sessão. Ele, por sua vontade, continuaria. Voltavam no dia seguinte. Como fazia muito calor começaram a aliviar-se das roupas para uma execução menos penosa do trabalho: ele tirava a camisa, ficando nu da cintura para cima, e ela despia a blusa deixando apenas o sutiã. Os teus beijos são já tecnicamente perfeitos, disse-lhe ele de certa vez, É a altura própria para passarmos a práticas pedagógicas mais exigentes. E começaram a combinar beijos com carícias: enquanto as bocas sorviam ou mordiam furiosamente, as mãos soltavam-se sobre os corpos, tocavam as zonas erógenas, metiam-se sob o pano das roupas à procura de ocultas delícias. As sessões tinham lugar muitas vezes sobre o tapete da sala, na horizontal.
Não é possível saber quando terminaram exactamente as sessões, o momento em que o formador deu por concluída a formação ou mesmo a altura certa em que formanda sentiu já estar formada em arte de beijar. Também não é possível determinar se ele se limitou a ensinar-lhe a matéria inicialmente proposta ou se se terá alongado por artes e conteúdos extra-curriculares. Sabe-se sim que ela se tornou outra mulher, mais segura, mais ardente e confiante nas suas capacidades.
Sabe-se ainda que em certa noite, já no fim do Verão, estando ela deitada com o companheiro naquele mesmo quarto onde havia uma janela que dava para um pátio, ele se aproximou, tendo começado a beijá-la. Coisa estranha, talvez se tratasse dum apetite passageiro originado por algum estímulo inesperado. Ela não disse nada, mas pensou, enquanto se abandonava quase indiferente àquela surpreendente manifestação de afecto, que afinal era ele que não sabia beijar.
A noite estava fresca, já não se ouvia a algazarra das crianças brincando, só lhe apetecia dormir. E nenhum raio de luar atravessava a janela do quarto para iluminar o seu corpo.
D.E.
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