terça-feira, fevereiro 24, 2009

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XV )

Jesuina (assim mesmo, sem diacrítico no i), protagonista de As Bicicletas em Setembro, talvez não fosse viúva no sentido usual do termo. Há muitas formas de viuvez: a mais dolorosa será, provavelmente, viuvar de alguém que se encontra vivo.
Diz-se na contracapa do livro que todos nós já perdemos alguma coisa. Todos nós já perdemos alguém, embora o mais importante nem seja a perda originada pela morte ou aquela que a separação tantas vezes impõe aos que se amam. A perda mais difícil de aceitar é a das pessoas que saíram da nossa vida pelos seus próprios pés, ou, em outra variante, a das pessoas que nunca nela chegaram a entrar.
Jesuina vivia nas margens do tempo e do espaço, reclusa na sua própria casa, cercada de jornais velhos e de crianças de quem tomava conta, lendo o Amor de Perdição, inventando cores para as palavras como Rimbaud inventara para as vogais.
Tudo isto num bairro cinzento, pesado como o odor da salsugem que sobe do rio no período da vazante – ali à beira do Largo da Paz, dos quartéis da Calçada da Ajuda, do Jardim Botânico, da casa de Alexandre Herculano, da Torre do Galo, do Salão Portugal e das Terras do Desembargador.
Jesuina não é só do bairro da Ajuda, é de todos os bairros com as suas ruas de solidão.

(Baptista-Bastos, As Bicicletas em Setembro, Porto, ASA Editores, 2007.)

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