domingo, agosto 30, 2009

VISUS NOCTURNUS

A empregada era uma adolescente com corpo de mulher adulta. O cabelo descia-lhe pelas costas, os olhos pareciam puros, mas a boca, a parte do corpo que está mais perto da alma, dava sinais de sensualidade e volúpia. Estavam ambos sentados num sofá, diante duma lareira onde ardiam grossos troços de lenha. Ela tinha na mão um cálice de porto, curvo e cintilante, que de vez em quando levava aos lábios. Falavam de coisas do escritório, assuntos profissionais como balanços e balancetes, conferência de contas, cálculos de amortizações e reintegrações. Ele tinha sobre as pernas um maço de papel contínuo, de listras verdes, cujas folhas ia separando pelo picotado. Ela afogueava-se com o calor que vinha do lume e levava a mão à gola alta da camisola de lã, tentando aliviar a pressão daquele colar apertado. Então, como não conseguisse afastar o desconforto, tirou a camisola, deixando entrever o limiar dos seios sob a filigrana negra do sutiã. Ficara ainda mais bela, com os cabelos descompostos e os lábios túmidos como gomos de fruta. Depois despiu as calças, tirou as botas e as meias, e o mármore das pernas coloriu-se dos reflexos do fogo.
Um feixe de luz, real como a manhã que se anunciava, caiu-lhe sobre as pálpebras frouxas, gastas, cansadas duma vida de lançamentos a débito e a crédito. Estava sozinho, como sempre. Levantou-se, ao mesmo tempo contrariado e feliz: tinha de abrir o escritório às nove, era a hora a que chegava a empregada. Talvez o sonho voltasse na noite seguinte.

Sem comentários: