
segunda-feira, julho 18, 2011
UM NOVO BLOGUE

quarta-feira, julho 13, 2011
sábado, julho 09, 2011
quinta-feira, julho 07, 2011
A " LONGA MANUS" DA JUSTIÇA PORTUGUESA
Não é impunemente que se dão murros no estômago do Primeiro-Ministro de Portugal. Força contra as forças obscurantistas dos mercados! Cavaco Silva, insuspeitíssima figura, será arrolado como testemunha; Sócrates, a estudar Filosofia em Paris, fará o seu depoimento por escrito. O País tem finalmente um novo Timor, uma nova causa. Podia parecer que nos faltava um Baltasar Garzón, mas não. “Avancemos sem medos” contra a barbárie capitalista!
domingo, julho 03, 2011
"PATOLOGIA SOCIAL"
Eis a doença que êste livro acusa: – A dissolução dos costumes burgueses.
O mais característico sintoma dêsse mal é a falsa educação. A educação burguesa tem um defeito fundamental: mantém na mulher a mais terrível, a mais perigosa de todas as fraquezas. Esta fraqueza consiste no seguinte: No fundo mais íntimo e mais secreto da sua existência de artifício e de aparato, a burguesa sente-se conscenciosamente mesquinha e reles. Vamos ver porquê.
Veja-se em As Farpas de Ramalho Ortigão, tomo IX, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, pp. 245-262
sábado, julho 02, 2011
VÓRTICES
O problema, para mim, era insuperável. A jovem morava na rua da escola, cem metros abaixo, quase a chegar ao Largo do Calvário do cinema Promotora e da esquadra da PSP. Cem metros era espaço curto para uma declaração vorticista que nunca poderia acontecer no pátio escolar ou nas escadas e corredores do velho edifício da Rua da Creche.
Rua da Creche, do bairro típico de Alcântara. A creche, de que recebeu o nome, ficava mais acima, na Calçada da Tapada. Quem por lá passar, ainda hoje pode ver, inscrita no frontispício dum velho edifício, a palavra “parvulário” – do latim parvulus, que quer dizer criança ainda pequena. Parvulário era um infantário, uma creche – coisas e nomes do tempo erudito da I República!
Esta Rua da Creche é histórica. Era lá que morava, num rés-do-chão revestido de marmorite e com cortinas de renda nas janelas, o mestre Fonseca, professor de dactilografia e caligrafia que escreveu livros e críticas de televisão com o sibilante pseudónimo de Mário Castrim. Foi ele que me publicou uns poemas no Diário de Lisboa – Juvenil, ou, melhor dizendo, publicou dois ou três poemas e deitou para o caixote do lixo uns vinte ou trinta. Como eu lhe agradeço a medida higiénica! Que a terra te seja leve, meu Mestre!
Foi nesta rua que a Pide matou José Dias Coelho, o pintor da balada de José Afonso, e eu estava lá para ouvir o tiro e não saber nada do que acontecera. A Rua da Creche chama-se hoje Rua José Dias Coelho e uma lápide atesta, no local, o hediondo crime.
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai.
sexta-feira, julho 01, 2011
"Abandono" (Fado de Peniche) - Amália Rodrigues
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te, a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia.
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar.
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
(Cantado ontem por Cristina Branco no espectáculo de encerramento das Festas de Lisboa.)
terça-feira, junho 28, 2011
INESPERADAMENTE A MEIO DA TARDE
1/. “A única alegria neste mundo é a de começar”;
2/. “Nada se acrescenta ao que ficou para trás, ao passado. Recomeçamos sempre”.
Fez-me bem. Atiro-me ao trabalho com renovada alegria.
quarta-feira, junho 22, 2011
REYNO DE BABYLONIA

Sóror Magdalena da Glória nasceu em Sintra em 11 de Maio de 1672. Professou com dezasseis anos no Convento da Esperança de Lisboa, da regra de S. Francisco, tendo falecido em provecta idade por volta de 1760.
A seguir se transcreve um resumo da narrativa, feito por este escriba em 2008 no quadro de um trabalho sobre Literatura Portuguesa do Período Barroco.
Tudo se passa num vale confuso da antiga Babilónia (o mundo terreno, lugar de pecado), onde um Príncipe, fiho do Supremo Emperador (Deus Todo Poderoso), põe os olhos apaixonados numa formosa aldeã de nome Angélica (a Alma). Longe de corresponder ao sentimento do seu amante, Angélica mantém-se indiferente, gozando os prazeres mundanos, o que desgosta profundamente o Príncipe. Este envia-lhe diversos membros da sua corte com o intuito de a demoverem de tão ingratos propósitos: fiéis conselheiras (as Virtudes), um embaixador (o Anjo da Guarda) e até um ancião muito respeitado e valoroso que era o mais importante dos seus vassalos (Santo Agostinho).
Ao longo do assédio que lhe move o Príncipe, Angélica tem momentos em que parece inclinar-se para ele, e outros, menos felizes, em que persiste nas vaidades de Babilónia. Manifesta-se então o ciúme do amador, doído por não encontrar correspondência em tal paixão, vendo a sua amada a ceder às tentações de falsos conselheiros (os anjos revoltados) que lhe enalteciam os prazeres dos cinco sentidos. Pretende o Príncipe castigá-la, pois tinha poderes para tal, mas, infinitamente bom e apaixonado, está sempre disposto a conceder-lhe o perdão.
Entre avanços e recuos, rasgos místicos e recaídas no erro, debate-se Angélica com a sua própria inconstância. São trazidos ao leitor exemplos de mulheres que nunca negaram o seu amor ao Divino Amante: Santa Luzia, Santa Rosa de Lima, Santa Catarina de Alexandria, Santa Clara.
O Príncipe, que nunca deixou de seguir a inconstante aldeã, consegue no final que ela se lhe entregue. Emendada a profia dos descaminhos, desfeitos os fumos da vaidade, Angélica une-se com o Príncipe (Jesus Cristo), subindo com ele ao trono do Empíreo.
Se estas tivessem sido as leituras de Emma Bovary…
domingo, junho 19, 2011
"MADAME BOVARY"

E, no entanto, Emma Bovary lia. Lia e tinha amantes, uma associação de gostos (ou uma relação de causa e efeito) frequentemente estabelecida na ficção naturalista de oitocentos. A Luiza d’ O Primo Bazilio também era leitora de novelas, o que vem reforçar aquela máxima que vi inscrita não sei em que livro ou revista: mulheres que lêem são perigosas!
Também me convenço de que O Primo Bazilio de Eça de Queiroz, em que já se viu uma imitação de Flaubert, é bem melhor do que o romance do mestre francês. Luiza, apesar de tudo, amava o marido; era vítima da criada Juliana, uma das mais notáveis personagens criadas pelo nosso grande romancista; tinha no seu círculo de amigos um conselheiro Acácio, figura muito mais interessante do que o jacobínico Homais; e quanto a refinamentos amorosos, bem, não sei se Léon ou Rodolphe alguma vez fizeram a Emma aquilo que Bazilio fez a Luiza em certa tarde de amor no “Paraíso”…
A terminar, uma pequena declaração: não concordo com a máxima citada. Acho que hoje em dia, mulheres perigosas são mesmo as que não lêem!
Tenho dito, e já me safei (espero).
segunda-feira, junho 13, 2011
PENEDONO, MEU AMOR
Comia-se numa mesa rectangular a que se juntavam cadeiras de espaldar alto: o pai e a mãe nos topos, a filha e o convidado de cada um dos lados.
A sala era digna de um solar: lajedo no chão, granito nas paredes, grossas traves de carvalho no tecto, candelabros de ferro forjado, retratos de avós em cima de móveis de nogueira e uma escada de madeira que rangia na direcção dos quartos.
O leite-creme sumiu-se da travessa de loiça com os bordos pintados de flores, deixando ver no fundo uma cena bucólica em azul pálido. Vieram bagaceiras e cafés, charutos que o convidado recusou não se sabe bem porquê.
A mãe era uma senhora roliça, com muitas rugas, setenta anos bem medidos. O pai, que andava pela mesma roda, parecia uma personagem de Buñuel, talvez o Don Lope de Tristana, Amor Perverso. Só que este Don Lope tinha mulher em casa e a filha era mesmo filha, ainda que um bocado mais velha que a Catherine Deneuve do filme.
Isto passava-se em Penedono. Para quem não saiba, é terra que fica lá para as bandas de S. João da Pesqueira e Foz Côa, perto do Douro, à volta de um castelo medieval que parece um cenário de filme sobre cavaleiros da Távola Redonda. D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, um dos Doze de Inglaterra, saiu dali, num tempo de brumas e cavalarias, para ir defender a sua dama em terras dos Duques de Lencastre. Camões, pela boca do marinheiro Veloso, enaltece o feito no Canto VI d’Os Lusíadas – estrofes 43 a 69 para quem queira queimar os olhos com tão incerto episódio histórico.
Veio o serão. Don Lope gabava o novo rumo que o país finalmente ia tomar, os resultados eleitorais, o governo com uma maioria e um presidente. O convidado concordava por delicadeza, os olhos postos nas traves do tecto como quem pede o auxílio de Deus, trocando olhares com a filha e fazendo uma figa atrás das costas.
A filha ia bocejando, a semana de trabalho tinha sido dura, estava cansada e queria dormir. Subiu com a mãe as escadas rangentes.
Don Lope falava de economia e finanças, de política agrícola. Que havia, sim, um político em Portugal capaz de endireitar a nossa agricultura, assim o deixassem! Não só capaz de endireitar a agricultura como de restabelecer a segurança no país! Uma pouca vergonha o que se passava em matéria de segurança, a polícia sem autoridade, os tribunais contra a polícia, libertando os delituosos e atenuando-lhes as penas.
Parece que o político de Don Lope tinha lugar garantido como vice-primeiro-ministro! O convidado, por desfastio ou maldade, pedia mais um balão de bagaceira e lembrava-se de Alexandre O´Neill: Neste país em diminutivo… Respeitinho é que é preciso.
Foi por respeito que a mãe mandou a empregada preparar dois quartos. Não se tratava de um namoro de miúdos, afinal a filha até já tinha sido casada, mas há coisas que em certas casas e em certos momentos não são assumidas sem ponderação.
Enquanto falava com Don Lope o convidado recordava-se da primeira vez que viera a Penedono, em outros tempos e noutro histórico de afectos, já lá iam uns bons dez anos, talvez mais.
No piso de cima, dizia a mãe para a filha:
– Se ficarem na mesma cama, desfaçam a do outro quarto como se alguém tivesse lá dormido. A empregada não tem que saber, muito menos o pai.
O pai, Don Lope, aproveitava uma pausa na conversa para repousar os olhos. Era a sonolência que lhe costumava vir por volta das onze da noite, efeito da medicação, do vinho ou da diabetes ferina.
O convidado aproveitou para sair de mansinho. Encaminhou-se para as escadas e começou a subi-las, enquanto uma voz lhe atravessava a mente: “Penedono, meu amor”. Por mais que quisesse, não conseguia perceber de que tempo, próximo ou distante, provinha ela.
sábado, junho 11, 2011
sexta-feira, junho 03, 2011
CASAMENTO DA MORTE


D. Francisco Manuel de Melo
Carta de Guia de Casados
Ela dava aulas na faculdade, lia Foucault, tinha a cabeça cheia de filosofia e o corpo muito feito a satisfações metafísicas, a fenomenologias frenéticas, a ontologias gritantes. Ele limitava-se a passear os olhos por romances, por um ou outro livro de poesia, e tentava uma vaga investigação literária num trabalho académico de improvável mérito.
Como é que tudo começou? Ninguém pode dizer ao certo o princípio das coisas! Se fosse possível saber onde se levanta o vento, em que região do mar se forma a onda, em que recesso da alma desponta o amor – então o homem seria um lago de águas paradas, não haveria a emoção da vida nem o milagre da dúvida, estaria condenado ao mais pardo dos conformismos existenciais, sujeito a um determinismo tirânico, abominável e destruidor.
Na primeira noite que passaram juntos a coisa não correu mal de todo. Quando entraram na alcova, ela fechou um livro que estava aberto sobre a cama, no qual se viam grandes sublinhados a lápis castanho, tirou os óculos, a camisa e as calças, deixou brilhar o mármore dos seios e a promessa segura do triângulo púbico, e ele agiu como se lhe lesse, sem perceber, uma página densa de Heidegger. A parada era alta, mas lá se safou.
Na noite imediata foi como se lhe recitasse um poema mal decorado. Falhou nas estrofes preliminares, conseguiu recompor-se a meio do texto, e acabou no limiar duma indisposição grave, o coração a galope nas arcadas do peito.
Foram assim as duas primeiras noites. Nas que se seguiram é que foi pior. Ela queria Foucault, Deleuze, Derrida, e ele mal lhe conseguia ler um capítulo de Régio, um poema de Sophia, um artigo do JL dos mais ligeiros.
O amor pelas leituras, no entanto, parecia feito de uma liga forte. Ao fim do dia, antes de se meterem pelo Calhariz e subirem a Rua da Rosa a caminho do segundo andar do prédio em que ela morava, bebiam imperiais na Trindade e passeavam no Chiado de mãos dadas. Uma vez, uma senhora idosa que ia para a missa da tarde na Igreja dos Mártires gabou aquela ternura que via entre pai e filha, algo a que já não se assistia num tempo tão dado a conflitos geracionais. Uma amiga não menos carregada de anos que a acompanhava, mais preparada, contudo, para as realidades do século, pediu-lhe que não dissesse asneiras e ficasse calada. A senhora caiu em si e benzeu-se com veemência, rezando mentalmente a Santo Expedito por todos os que neste mundo se desviam do caminho certo.
O tempo foi passando. Na maior parte das noites não havia filosofia que viesse em seu auxílio. Ela mostrava-se compreensiva, lia e sublinhava encostada ao espaldar da cama, enquanto ele dormia, passeando por sonhos em que entravam pastoras da arcádia, toques de flauta e amores castos.
Sentiu o cheiro da morte numa madrugada de Primavera assustadora e quente. Ela lera os filósofos até tarde, os olhos correndo as páginas como se as quisesse meter dentro de si. Da rua vinha o ruído da malta dos copos, peregrinando de bar em bar. Ele estivera ao computador, escrevendo umas linhas frouxas, e a inevitabilidade do diálogo filosófico crescia como a sombra da noite. Os primeiros embates ultrapassou-os de forma satisfatória, só depois veio o mais complicado. Ela fixava-se num texto de Blanchot sobre Foucault e sexualidade, sabendo ele que quem fala em barcos quer embarcar. Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!, disse o poeta. Ele sentiu saudades de outros tempos e de outros cais onde embarcara, e deixou-se ir na corrente como quem se entrega. Acabou destroçado do excesso, um comprimido de emergência debaixo da língua. Filosofias…
Foi então que se lembrou de ter visto e fotografado no campus universitário de São Paulo, nas paredes de uma qualquer faculdade, uma inscrição a que agora dava completo sentido:
FOUCAULT É A MORTE DA FILOSOFIA!
DELEUZE E DERRIDA TAMBÉM!
Gostava muito dela, mas não aguentou o alto nível do debate filosófico em curso. Nunca mais poderá esquecer o andar velhinho da Rua da Rosa, a alcova semeada de livros, a roupa íntima espalhada pelo chão e o ruído que subia da rua até alta madrugada. Às vezes, por muito que custe, é preciso aprender com os clássicos. Casamento da morte…
segunda-feira, maio 30, 2011
A VIZINHA
- Então o seu menino como está? E a senhora? Faz tempo que não a vejo!
Ele mastigava umas palavras contidas, delicadas, que causavam consternação e dúvida.
- Então está em casa da mãe… Era o que eu devia fazer, tenho a minha mãezinha muito doente. Devia deixar tudo isto e ir ajudá-la.
A vizinha era talvez daquele tempo em que uma das filhas costumava ficar solteira para assistir a mãe nos achaques da velhice. Ela, porém, tinha constituído família, deixado o marido quando já não lhe fazia falta, e agora estava em casa da filha, que era casada- descasada-recasada, com descendência da união actual e da antecedente, e ali cumpria a sua nobre missão de auxílio doméstico: filha, netos e genro actual ao seu cuidado, a mãezinha doente que esperasse.
Isto começara em Novembro. O Inverno, entretanto, despira o arvoredo da praceta, correra veloz sobre a sombra dos dias, insuflando-lhes, semana a semana, suplementos líquidos de luz: em Janeiro uma hora por inteiro, e quem bem contar hora e meia vai achar.
O cheiro das lareiras, esfumado por chaminés altas, foi diminuindo. Escassearam as manchas brancas das garças que vinham do campo debicar a relva dos jardins. Os pássaros miúdos, de penas tufadas, já voltavam mais tarde para os ramos das árvores onde pernoitavam. No escuro da rua, encostados às paredes dos prédios, os jovens beijavam-se enquanto bebiam cervejas, línguas de alterne entre os gargalos frios das garrafas e o húmido quente das bocas.
Quando a Primavera chegou houve ameaços de felicidade em todos os rostos. De um dia para o outro passaram a vestir-se calções e camisas de manga curta. A senhora do segundo andar, que numa manhã partilhara com ele o elevador, já mostrava com naturalidade o terço superior dum seio redondo mas ainda pálido. Se ao menos a senhora do segundo andar lhe perguntasse alguma coisa… Mas não, limitava-se a um breve cumprimento, nada mais, e apenas a vizinha, avó de família, lhe dirigia impiedosamente a palavra.
Um dia em que dera com ele debruçado sobre o estendal da roupa, expondo ao sol três camisas e um par de calças, atirou-lhe de janela para janela, a voz bem timbrada como fazem os artistas de teatro, uma fala laudatória, audaciosa e clara:
- O meu marido nunca me ajudou em nada. Um homem não tem que se envergonhar de fazer o trabalho de casa.
E rematou:
- E a sua senhora, quando volta? Olhe, se precisar de alguma coisa minha…
O assédio continuava com o crescendo dos dias. Por motivos despropositados tocava-lhe à porta a meio da tarde, interpelava-o na rua, e lá vinham os rodeios, as perguntas. Ele já tinha feito o levantamento das suas rotinas: as horas em que ia ao supermercado ou ao café, quando saía para ir buscar a netinha ao colégio. E esquivava-se.
Em Maio veio um Verão precoce e desaustinado. A senhora do segundo andar continuava a mostrar o apetecível. Num domingo em que descera tranquilamente à rua deu com a figura lábil da vizinha que ia atravessando sem grandes pressas a porta larga do prédio. Tentou evitá-la. Deu-lhe a salvação e ia escapar-se, mas ela não lho permitiu:
- Olhe lá, senhor Manuel…
Ele parou, por delicadeza, e para evitar as incómodas perguntas passou ao ataque: começou a falar-lhe da reunião do condomínio, da falta de luz no terceiro andar. Há dois meses que a lâmpada ou o detector tinham falido e ninguém da administração parecia interessado em solucionar o problema; como é que ela se arranjava quando saía do elevador e tratava de introduzir a chave na fechadura da porta?
- Olhe, vou às apalpadelas. Ainda se fosse para apalpar alguma coisa de jeito.
Calou-se uns segundos e contra-atacou:
- Mostre-me as suas mãos.
Ele, surpreendido, levantou-as à altura da cara como quem se rende perante uma arma que acabasse de lhe ser apontada. E a vizinha, exultante, depois de uma observação rápida, disparou:
- Eu bem me parecia, não tem aliança! Já andava desconfiada de que alguma coisa não estava bem!
De soslaio, viu que a senhora do segundo andar se debruçava na sua varanda. Não podia garantir, mas parecia haver nela uma expressão de comiseração enternecida e calma.
sexta-feira, maio 27, 2011
PLAÇA CATALUNYA
Tenho um jovem que anda por lá. A verdade é que há mais de 24 horas que não consigo falar-lhe.
terça-feira, maio 24, 2011
"EURICO, O PRESBÍTERO"

Herculano disse de “Eurico” que não sabia como classificar o seu livro: romance histórico, lenda, ou crónica-poema. Tampouco isso o preocupava. O Romantismo foi um período de rupturas, de miscigenação dos géneros literários, de liberdade e libertação da linguagem poética. “Eurico” é um poema em prosa, dos mais belos livros que já se escreveram em língua portuguesa. Reli-o entre sábado e o dia de hoje, e não me saem dos olhos o povoado de Carteia, a sombra escura do Calpe, os alcantis dos Montes Cantábricos. Ler é encher os olhos de imagens, é viajar no espaço e no tempo.
quarta-feira, maio 18, 2011
"A SALA MAGENTA"

1ª Uma ADVERTÊNCIA do autor:
A acção e as figuras deste romance reportam-se a um mundo ficcional de entrada franca, sem chaves ou gazuas. Procurar moldes da vida real para acontecimentos e personagens é ter em má conta a imaginação do autor. Pode ser que ele o mereça, mas não os lesados por equívocos de leitura.
MdC
2ª Uma das cinco epígrafes do romance – parte de uma carta de Eça de Queirós em que o grande mestre do nosso realismo-naturalismo procura explicar que a personagem Tomás de Alencar de “Os Maias” nada tem a ver com a personagem real do escritor ultra-romântico Bulhão Pato:
E visto que nada agora pode justificar a permanência do Sr. Bulhão Pato no interior do Sr. Tomás de Alencar, causando-lhe manifesto desconforto e empanturramento – o meu intuito final com esta carta é apelar para a conhecida cortesia do autor da “Sátira”, e rogar-lhe o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem.
Digo-vos à puridade (comecei agora a usar esta expressão!) que acredito tanto em Eça como em Mário de Carvalho. Ou seja, apreço literário à parte, não tomo como sinceras nem a advertência do autor de “A Sala Magenta” nem a carta do grande escritor de “Os Maias”.
quinta-feira, maio 12, 2011
Catroga e as discussões de pentelhos
segunda-feira, maio 09, 2011
PORTUGAL E A FINLÂNDIA
domingo, maio 08, 2011
O FIDALGO APRENDIZ de D. Francisco Manuel de Melo
O que acontece a um fidalgo provinciano deslumbrado com a Corte ou como não se pode dar um passo maior que a perna. Um texto do século XVII de flagrante actualidade.
sexta-feira, maio 06, 2011
SONDAGENS
O homem é arrogante, mentiroso, desonesto (até cobarde, segundo as recentes declarações do tribuno Macedo), mas a última sondagem da Universidade Católica manda-o para a frente da corrida. Coisa estranha...
quinta-feira, maio 05, 2011
JERÓNIMO!
Li hoje na página Yahoo!France: “A utilização do nome do chefe apache Jerónimo como nome de código da operação militar americana que eliminou Ossama Bin Laden levantou protestos de vários representantes de comunidades índias dos Estados Unidos.”
O nome é, claro, politicamente incorrecto. Também entre nós, em certo quadrante político, poderá causar algum desconforto…
quarta-feira, maio 04, 2011
terça-feira, maio 03, 2011
segunda-feira, abril 25, 2011
sábado, abril 23, 2011
sexta-feira, abril 22, 2011
sábado, abril 16, 2011
TOMAR
terça-feira, abril 12, 2011
A CRISE - V
segunda-feira, abril 11, 2011
domingo, abril 10, 2011
O MALATO ENTRE O FACTO E O FATO

A CRISE - IV
A CRISE - II
A CRISE - I
segunda-feira, abril 04, 2011
De Mais Ninguém - Marisa Monte - Legendado
segunda-feira, março 28, 2011
BRUNO, MARCELO E A ESFINGE


segunda-feira, março 21, 2011
A CANÇÃO
Depois de uma manhã em que li duas páginas das Confissões de Rousseau e acabei de preencher com náusea os questionários dos Censos-2011, descobri que tinha a máquina de lavar roupa avariada. Perante tanta infelicidade, só uma canção como esta me pode confortar.
Os versos:
Se ela me deixou a dor é minha só
não é de mais ninguém...
…
A sala o quarto a casa está vazia
a cozinha o corredor
se nos meus braços ela não se aninha
a dor é minha a dor…
etc. etc. etc.
Oiçam bem a letra e a música em:
segunda-feira, março 14, 2011
A uma carta responde-se sempre

Cristina Leimart no "Emoções Básicas":
Ainda assim, não resisto. Desde logo, à cortesia em ver-se o meu amigo de idade para ser meu pai. Com a nossa década e picos de diferença, já o imagino há cinquenta anos, robustecido pelas vastidões da lezíria, avesso a amores aguados mas abraçando, se não os minúsculos prazeres epistolares, certamente as emoções básicas da física do amor – e tão jovenzinho, o que só lhe fica muito bem.
Quanto à minha história com ‘hi’, pu-la a girar em torno de um manuscrito, quando se trata, em rigor, de um teclaescrito, dada a raridade atual do uso da caligrafia. Do tal Celúlio é que ainda pouco sei. Outro dia vi um gorgulho pequenino, redondo e tostado escapulir-se de um saco de arroz na minha despensa, e afinal era o Celúlio à saída da empresa de reciclagem. Tenho-o como pessoa de muitos planos, com quem a vida sempre desconversou. Vejo-lhe a alma cheia de tiques, um caminho povoado de amigos incompletos. Aquela vida junto ao tapete do enxovalho, um pouco espelho de como o país anda agora, e andava no tempo do Eça e no de D. Sebastião, não lhe é salutar. Enfim, oxalá me engane, que pareço uma vidente lendo uma bola de cristal.
Eu percebo o Celúlio. Adoro a superfície do silêncio acariciando-me os sentidos e o espírito, esse morno mar de silêncio com ilhotas de trabalho solitário, concentrado que é uma biblioteca. Parece que estamos ali à beira de um salto quântico qualquer. Adoro a cortesia vaga, formal nas vozes microdecibélicas de leitores e funcionários. Cada biblioteca, da mais insignificante numa estante de colectividade local, à de Alexandria ou à do congresso americano, tem o seu silêncio endémico, a sua exclusiva linguagem freática. Não sei se o Celúlio vê a coisa assim. É um bocado limitado. Possui uma mente arrumada, de matriz binária, à engenheiro. Ele nem igrejas, tão ricas de história, cultura e espírito, aprecia visitar, veja lá! Embirra que lhe leiam talhas douradas e painéis de azulejos, porque chega ao terceiro e já não se lembra do que lhe disseram do primeiro. Pronto, é como é.
E pronto também para nós, que esta resposta já vai longa e o meu amigo tem mais que fazer.
Obrigada pelas palavras. Um grande abraço.
PS: Quanto às formalidades do novo acordo, que fazer? Saiba que estrebuchei q.b., disposta até a descer a avenida da Liberdade em prol da tradição, se tem havido uma convocatória no facebook. E se não resisti mais, foi por guardar a energia dos meus estrebuchos para causas mais promissoras. Dizem que é uma atitude de sabedoria, e eu acredito.
sábado, março 12, 2011
GERAÇÃO À RASCA

Podemos fazer alguma coisa cá dentro? Sim, mas pouco.
Mesmo assim, vale a pena descer à rua. É o nosso direito à utopia!
terça-feira, março 08, 2011
O ROMANCE E O REAL
Nesta indecisão, resolveu não escrever o ensaio, mas o primeiro capítulo de um roman à clef: curava a ferida de cão com o pelo[2] do cão! Mas seria capaz de escrever os sucessivos capítulos de tal romance? Pelo que de si conhecia, a coisa ficaria talvez por uma novela, se calhar por um simples conto…
O conto é um género difícil, dissera-lhe uma vez um poeta. Precisa-se de muita concisão, muita agudeza de espírito para acertar no coração da narrativa. O poeta esforçava-se por o convencer, usava metáforas breves que lhe soavam a dísticos ou a haicai japoneses, mas ele não acreditava. Porque os grandes ficcionistas pouco ligam ao conto, escrevem as suas obras em centenas de páginas, a pluma rasando as resmas com as suas marcas de fogo, talvez apenas de tinta, não vale a pena tanto exagero: veja-se o Proust da Recherche, o Tolstoi da Guerra e Paz, o Durrel do Quarteto de Alexandria.
Faça-se deste poeta uma personagem à clef! Era um homem alto, os fatos de bom corte, a fala com um sotaque ilhéu que cheirava a mar e a búzios rumorejantes. Amava a poesia como se ama uma mulher desleal, dessas que dizem meias verdades e fazem versos aos amantes:
És o meu Sol que só se abre de vez em quando.
Vivo na penumbra dum sentimento
que não sei qual é.[3]
(Outra personagem à clef!)
A poesia é desleal, como toda a arte é desleal. Apetece pensar que foi Rimbaud que o disse, mas se calhar não foi. O que Rimbaud disse, ou escreveu, sim, parece que escreveu, em carta ao seu antigo professor Georges Izambard, foi je est un autre, frase gramaticalmente errada mas poeticamente certa, e que é talvez a melhor prova da deslealdade da arte. Da das mulheres nem vale a pena falar, só comparável à deslealdade dos homens!
Não escreveu o ensaio nem começou o romance. Sobreveio-lhe um grande desejo de dormir, de ver planícies de sonho e prados carregados de bruma. Quando deu por si estava do outro lado da vida, a cavalo numa dose exagerada de tranquilizantes.
O psiquiatra, que nunca lera Freud, estranhou a sua falta à sessão e ligou-lhe por mera rotina clínica. Ninguém atendeu. Que pena, logo agora que tinha decifrado mais uma personagem do roman à clef.
[1] “Romance com chave” – romance em que as personagens, tiradas do real, são apresentadas com outro nome, mas conservando os seus traços comportamentais e características físicas.
[2] Segundo as novas regras ortográficas, deixa de ter acento.
[3] Versos lidos num sonho.
terça-feira, março 01, 2011
UMA CARTA
Li a história reciclada do seu Celúlio Brito, verificando com satisfação que já escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico. Não é fácil, pois são muitos anos a carregar com hífenes e a engolir consoantes mudas, adereços escriturais que têm tanta utilidade como um guarda-chuva num dia de sol. Agora que, finalmente, toda a escrita se recicla, o mais provável é que nos atrapalhemos, que dêmos um ou outro erro de ortografia, como lhe aconteceu com o diabo da consoante muda na palavra “objectiva”. Vá lá emendar, por favor.
Aproveito para dizer que fiquei satisfeito por vê-la escrever “história” e não “estória”. Embora a palavra já pertença ao léxico, podendo ser encontrada no Houaiss e noutros bons dicionários, apesar de não ficar mal de todo ao lado de “hei de”, de "hás de" e de “projeto”, a verdade é que não é do meu agrado – prefiro “história”.
Sobre o assunto da sua… história, saiba que de celulose não percebo nada. De papel, ainda menos: escrevo no computador e isso basta-me. A bilhetes e cartas não me dedico há muito, embora tenha várias histórias sobre cartas de amor, as únicas que considero no vasto domínio dos epistolários. Esta que agora lhe envio, veja-a por favor como a carta de amor que nunca lhe enviei (não se mandam cartas de amor a senhoras casadas, ainda por cima com idade para serem nossas filhas), porque o que há de mais amorável é entregarmo-nos aos prazeres da escrita – “prazeres minúsculos”, como aqueles que muito bem conhece.
Não sei o que possa acrescentar, tais as “emoções básicas” que a sua história despertou em mim… Laurinda? Achei piada ao nome, pelas razões que certamente adivinhará. Também gostei da tirada final, mas como vem em itálico fiquei sem saber se será da sua lavra ou se a tirou de algum livro selecto. Sabe, fez-me lembrar o Borges, director cego da Biblioteca de Buenos Aires… De facto, as bibliotecas não dão chatices; o chato é não aparecerem nelas os leitores! Mas isto não diz respeito à minha querida amiga, pois pelo que sei a sua casa é já uma biblioteca, isto é, um templo, a que nem sequer falta a deusa! Quando lá entrar, se algum dia lá entrar, descalço-me.
Com um grande beijo,
sexta-feira, fevereiro 25, 2011
terça-feira, fevereiro 22, 2011
NO BOSQUE DA FICÇÃO
Para as bocas sequiosas.
Maria, disse e ficou-me
A boca a saber a rosas.
A quadra é de António Menano, fadista de Coimbra, e apareceu-me hoje no capítulo XXI do romance Amigos Sinceros (1941) de João Gaspar Simões (1903-1987).
Podia pôr-me a falar de romance psicologista, de estética presencista ou de narrativa autobiográfica (que também o é), mas não, prefiro deixar os versos em singelo.
Não me faltam Marias na história da vida! É certo que há também as Vanessas, as Sónias, as Patrícias e as Joanas, mas são árvores da fímbria do bosque. Gosto de todas, como de boas ficções.
quinta-feira, fevereiro 10, 2011
A OBRA
Sébastien Hubier (Littératures intimes, 2003) refere a autoficção como uma expressão anfibológica das escritas do eu. Em Aristóteles e na linguística moderna o termo é usado para designar um enunciado suscetível de duas interpretações diferentes. Ora a autoficção é isso mesmo, um texto que pode ser interpretado como romance e como autobiografia, cabendo ao leitor decidir sobre o seu grau de verdade ou de mentira.
NOTA: Texto escrito segundo as normas do novo acordo ortográfico. Nas mais de cento e cinquenta palavras que aqui ficam apenas uma tem nova grafia (“suscetível” em vez de “susceptível”). Afinal, a coisa não parece assim tão desfiguradora da nossa escrita.
quarta-feira, janeiro 26, 2011
A CABRA PUXA SEMPRE PARA O MONTE
Continuo amancebado com a ironia. Leio o ensaio “A Ironia Romântica”, de Maria de Lourdes A. Ferraz, e a tese que vou construindo é que estamos perante um fenómeno diacrónico que não se confina ao Romantismo e perdura na nossa contemporaneidade de pós-modernismos e outras coisas que tais.
Leia-se o Garrett das “Viagens” e o Camilo de “A Queda dum Anjo”; leia-se depois Saramago e Mário de Carvalho. Mesmo num romance de Saramago como “A Caverna”, há ironia romântica! Que dizer então de “Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina”, de Mário de Carvalho?
Num trecho deste romance, o autor/narrador convoca a personagem Maria das Dores para uma conversa, criticando-lhe a linguagem desbragada e as infidelidades conjugais que comete. Tendo a personagem reagido mal, o autor/narrador ameaça suprimi-la da história, voltando a escrevê-la desde o princípio sem a sua participação. Maria das Dores não se intimida com a ameaça do seu demiurgo e responde-lhe à letra: – A cabra puxa sempre para o monte. Mas eu agora não quero falar disso. Acho que era de bom gosto deixar-me a intimidade em paz. Cada um é um.
Já não me lembrava da resposta de Maria das Dores, mas hoje, ao relê-la, senti um grande enternecimento. Ironia romântica e da melhor! A Literatura dá-nos estas satisfações. Difícil é compreender quem possa passar sem ela.
segunda-feira, janeiro 24, 2011
BAPTISTA-BASTOS NO DN - mais palavras para quê?
terça-feira, janeiro 18, 2011
OS TEXTOS ROÍDOS
Agora que se fala muito do Filme do Desassossego, venho de um jantar de amigos em que a autobiografia sem factos de Bernardo Soares – o Livro do Desassossego – foi servida como sobremesa. Entre outros, lemos o fragmento 452 da edição de Richard Zenith, que nos fala do aprendiz de escritório que coleccionava tudo o que pudesse encontrar sobre viagens.
Ia este jovem pelas agências de turismo, pedindo folhetos sobre viagens para Itália, para a Índia e outros lugares; tinha fotografias de barcos e navios, mapas de países e continentes; conhecia as ligações possíveis entre Portugal e a Austrália, entre Portugal e outros pontos do mundo. Diz o narrador que ele era o maior e o mais verdadeiro viajante, pois viajava com a alma e não com o corpo!
Também pelos meus catorze anos viajava desta forma. Como não podia visitar os Campos Elísios de Paris, as margens do Reno ou as ruínas imperiais de Roma, ia pelos balcões do Turismo Francês – na Rua do Ouro –, pela secção de turismo da Embaixada Alemã – que já não sei onde ficava –, e pelo Turismo de Itália (Ente Nazionale per il Turismo) – sediado no Marquês de Pombal –, e recolhia brochuras, mapas e informações sobre aqueles locais, viajando com a alma como o jovem aprendiz do escritório de Bernardo Soares. Uma vez, aí por 1962, fui mesmo à Embaixada de Cuba – que ficava, se não estou em erro, na Rua Pascoal de Melo – e vim de lá carregado de propaganda do novo regime de Fidel de Castro. Grande e revolucionário viajante era eu naquele tempo! Mas passemos adiante, não foram estes detalhes autobiográficos que aqui me trouxeram.
Do rapazinho do Livro do Desassossego fez Mário Cláudio o narrador da novela Boa Noite, Senhor Soares. Diz ele no capítulo V: Empenhava-me em ir recortando dos jornais velhos do patrão Vasques, e das revistas que ele assinava, as ilustrações que mais me atraíam, algumas delas representando os paquetes colossais, ou até mesmo os humildes cargueiros, e enchia com tudo isto, colado a goma arábica, cadernos e cadernos de almaço que guardava em caixas de cartão, e debaixo da cama.
Assim se entrecruzam os fios no manto de Penélope. É a Literatura como autofagia criadora – os textos roídos, como diz Machado de Assis no capítulo XVII de Dom Casmurro – , o desafio dos intertextos e o permanente recontar de histórias – esse canto de sereias que não se extingue e sempre desejamos ouvir. Era sobre isto que me interessava falar, não das minhas remotas experiências de viajar com a alma.
quinta-feira, janeiro 13, 2011
ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO E IRONIA

Se me perguntam porque está aí essa imagem, bela como uma Primavera por acontecer, respondo que faz capa na edição francesa dum grande livro: L’ ironie de Vladimir Jankelevitch, com o qual andei amigado no dia que passou.
Em termos estilísticos fala-se muito da ironia pura – que a Retórica consagrou – , da ironia disfemística, da restritiva e da contornante. Meti os olhos em todas elas, mas sem a mesma emoção de quem olha uma mulher bonita num transporte público e espera não a ver descer na paragem seguinte.
Apesar do que já li sobre o assunto, ainda me falta compreender a ironia do amor. Agradeço ensinamentos ou indicação de bibliografia.
terça-feira, janeiro 11, 2011
EXCERTOS (5)
segunda-feira, janeiro 10, 2011
GRANDE ENTREVISTA

NO DIVÃ

Camilo Castelo Branco (1º Visconde de Correia Botelho) em “A Queda dum Anjo”
- Não há como o divã de Camilo para aliviar a depressão.
terça-feira, janeiro 04, 2011
"MAU TEMPO NO CANAL"

Neste romance, cujo tempo narrativo decorre entre 1917 e 1919, não há luta de classes nem consciência disso. Os grandes senhores amam os seus servidores e estes respeitam-nos como se não pudesse ser de outra forma. Veja-se o desvelo com que é assistido na doença, pelos seus patrões Margarida Dulmo e Roberto Clark, o criado Manuel Bana.
Por isto, e pelo rigor com que nele é traçado o perfil psicológico das personagens – nomeadamente o da protagonista Margarida Dulmo – podemos considerá-lo próximo da estética presencista, embora ele suplante em originalidade e fôlego tudo o que foi feito, em matéria de romance, pelos homens da revista presença.
Vitorino Nemésio, distante e crítico em relação a José Régio, ainda colaborou em dois números da folha de arte e crítica coimbrã. É curioso que em Mau Tempo no Canal utilize a expressão “jogo da cabra-cega” numa acepção idêntica à que lhe deu o poeta de Vila do Conde e Portalegre no seu livro com aquele título: “Na velhacaria do Ladeira entrava um conhecimento quase táctil das coisas, um jogo da cabra-cega feito pelo seguro da mão, curta e rente da rasa” (capítulo “A íris da aranha” de Mau Tempo no Canal).
sábado, dezembro 25, 2010
CARTA AO PAI NATAL
www.comolhosdeler.blogspot.com
antes que acabe o prazo de validade...
domingo, dezembro 19, 2010
DEVERES
De qualquer maneira, foi bom, para me lembrar dos deveres. Garanto que não deixarei de entregar em 2011 o número de páginas que Bolonha reclama. Sessenta estão escritas e aprovadas. Já não falta tudo.
segunda-feira, dezembro 13, 2010
EXCERTOS (4)
Concluída a operação, olhou-me como quem procura perceber as minhas intenções – os lábios finos, de cujos cantos irradiavam umas lastimosas comissuras, nervosamente cerrados. Saí do banco com ele, acompanhando-o em conversa de ocasião ao longo da avenida que ia descendo a caminho da sua casa.
Lembro-me de que estávamos no período duma campanha eleitoral qualquer. Passava pela avenida um carro com instalação sonora que debitava decibéis de confiança na nação e nos candidatos a seus representantes. À medida que fomos caminhando, percebia que o homem se descontraía, avançando num diálogo que apesar de tímido me parecia isento de qualquer reserva. Assim, quando passámos à porta do café foi de comum acordo que entrámos e nos sentámos numa mesa.
Disse-me que vivia sozinho há dois anos e meio, desde que tomara a iniciativa de sair de casa. Primeiro, durante alguns meses, fora viver para uma casa de porteira dum prédio vizinho, um desses minúsculos apartamentos que existem no último piso dos edifícios, uma espécie de mansardas viradas para o declive dos telhados; depois para um apartamento desafogado que foi mobilando a seu gosto. Foi breve a nossa conversa dessa manhã, mas voltámo-nos a encontrar uns dias mais tarde, e aí já longamente falámos de diversos assuntos e também da nossa situação comum que era a de ambos nos encontrarmos a viver sozinhos, eu separado da minha mulher, ele numa espécie de viuvez .
Omiti o facto de ter em meu poder o diário de Flora. Eu não podia informá-lo da sua existência sem perceber com que tipo de pessoa estava a lidar, que constituição psicológica era a sua, se aguentaria as revelações nele contidas. Tinha-o visto muito choroso, completamente de rastos, no funeral da ex-mulher. Não queria causar-lhe maior dor, embora me custasse guardar um escrito que não me pertencia e do qual, até pela sua forma de enunciação, ele era o único destinatário.
domingo, dezembro 05, 2010
RAUL BRANDÃO E O GABIRU
Em “Húmus”, porém, não é o vitivinicultor que fala, mas o homem esmagado pelo mistério da vida e da morte, pela presença ou pela ausência de Deus, pelo sentido último das coisas. Não há na literatura portuguesa outro livro como este – um misto de novela, diário e reflexão filosófica, um painel de inquietantes personagens de onde se destaca o Gabiru.
O Gabiru não é como as velhas D. Penarícia, D. Leocádia ou D. Biblioteca que moem vidas mesquinhas timbradas de invejas e aleivosias. O Gabiru mistura, resolve, extrai sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente.
“Húmus” é o livro de um eu dividido e a consciência disso. O Gabiru é a descoberta do outro, o estilhaçamento de um ser – como na heteronímia pessoana ou no eu múltiplo de Régio.
Todos somos legião, todos estamos cheios de Gabirus capazes do melhor e do pior. A dificuldade, às vezes, é descobri-lo.
quinta-feira, dezembro 02, 2010
EXCERTOS (3)
Do então namorado e futuro marido (passaram a viver juntos a partir de Fevereiro de 1977), há referências no diário aos estudos que ambos faziam em cursos nocturnos: ele na universidade, ela na escola secundária onde tirava o décimo segundo ano.
Antes de terem arranjado casa, encontravam-se ao final da tarde no apartamento dum amigo que se ausentara para França, num terceiro andar de um vetusto prédio do Alto de Santa Catarina. Naquela altura ainda estava por escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e a história dos amores dum poeta com uma criada de hotel – amores também daqueles lugares, com o Adamastor ao lado e o Tejo ao fundo. De amor eram os encontros de Flora com o namorado – aparecem agora em livro, está visto que já não há nada de novo para contar.
Ela achava-o um homem sensual, e era delicada e terna quando iam para a cama. Porém, por volta de 1980, num dos seus primeiros momentos de desencanto, o coração já falava outra língua. Página vinte e dois do diário:
Não foi paixão. Não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Porque estava fragilizada, cegou-me a tua luz, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.
Como o náufrago que vê passar uma tábua à tona de água, Flora tê-la-á agarrado à espera de ver chegar o barco salva-vidas. Nenhum náufrago, se tiver sorte, fica pela tábua de salvação. Ela é um meio, e não um fim. A enganadora paixão de Flora foi um meio de se libertar de um grande mal que lhe oprimia o coração.