segunda-feira, julho 18, 2011

UM NOVO BLOGUE

É altura de saudar o blogue A CURVA DOS LIVROS - www.acurvadoslivros.blogspot.com - do Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Nasceu a 13 de Julho e, por enquanto, tem apenas três contribuidores.

sábado, julho 09, 2011

NO CARTAXO, HOJE

Veja-se este monumento ao vinho e o edifício em fundo com a figuração de um tonel na artística platibanda. Já tivemos uma arquitectura do Port Wine; aqui é simplesmente do Wine ou, melhor dizendo, do Cartaxo Wine. Abençoada terra!

quinta-feira, julho 07, 2011

A " LONGA MANUS" DA JUSTIÇA PORTUGUESA

O Ministério Público solicitou um parecer à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) no âmbito da investigação aberta após queixa contra as agências de 'rating'. [Fonte: DN]

Não é impunemente que se dão murros no estômago do Primeiro-Ministro de Portugal. Força contra as forças obscurantistas dos mercados! Cavaco Silva, insuspeitíssima figura, será arrolado como testemunha; Sócrates, a estudar Filosofia em Paris, fará o seu depoimento por escrito. O País tem finalmente um novo Timor, uma nova causa. Podia parecer que nos faltava um Baltasar Garzón, mas não. “Avancemos sem medos” contra a barbárie capitalista!

domingo, julho 03, 2011

"PATOLOGIA SOCIAL"

O Primo Basílio, novo romance de Eça de Queirós, é um fenómeno artístico revestindo um caso patológico. Para bem se compreender esta obra é preciso discriminar o que nela pertence à jurisdição da arte e o que pertence aos domínios da patologia social.

Eis a doença que êste livro acusa: – A dissolução dos costumes burgueses.
O mais característico sintoma dêsse mal é a falsa educação. A educação burguesa tem um defeito fundamental: mantém na mulher a mais terrível, a mais perigosa de todas as fraquezas. Esta fraqueza consiste no seguinte: No fundo mais íntimo e mais secreto da sua existência de artifício e de aparato, a burguesa sente-se conscenciosamente mesquinha e reles. Vamos ver porquê.

Veja-se em As Farpas de Ramalho Ortigão, tomo IX, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, pp. 245-262

sábado, julho 02, 2011

VÓRTICES

Um dos vórtices da minha existência, tumultuoso e belo, foi quando me apaixonei aos catorze anos. Ela tinha a pele muito branca, os cabelos negros de azeviche, era uma menina da escola e sabia de mim da mesma forma que a flor sabe da abelha que lhe toma o néctar. Ou seja, não sabia! Não me declarei em tempo oportuno, nem sei se tão denodado acto teria tido algum efeito útil, e quando menos esperava já ela namorava com um colega meu.
O problema, para mim, era insuperável. A jovem morava na rua da escola, cem metros abaixo, quase a chegar ao Largo do Calvário do cinema Promotora e da esquadra da PSP. Cem metros era espaço curto para uma declaração vorticista que nunca poderia acontecer no pátio escolar ou nas escadas e corredores do velho edifício da Rua da Creche.
Rua da Creche, do bairro típico de Alcântara. A creche, de que recebeu o nome, ficava mais acima, na Calçada da Tapada. Quem por lá passar, ainda hoje pode ver, inscrita no frontispício dum velho edifício, a palavra “parvulário” – do latim parvulus, que quer dizer criança ainda pequena. Parvulário era um infantário, uma creche – coisas e nomes do tempo erudito da I República!
Esta Rua da Creche é histórica. Era lá que morava, num rés-do-chão revestido de marmorite e com cortinas de renda nas janelas, o mestre Fonseca, professor de dactilografia e caligrafia que escreveu livros e críticas de televisão com o sibilante pseudónimo de Mário Castrim. Foi ele que me publicou uns poemas no Diário de Lisboa – Juvenil, ou, melhor dizendo, publicou dois ou três poemas e deitou para o caixote do lixo uns vinte ou trinta. Como eu lhe agradeço a medida higiénica! Que a terra te seja leve, meu Mestre!
Foi nesta rua que a Pide matou José Dias Coelho, o pintor da balada de José Afonso, e eu estava lá para ouvir o tiro e não saber nada do que acontecera. A Rua da Creche chama-se hoje Rua José Dias Coelho e uma lápide atesta, no local, o hediondo crime.


A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai.


Foi num dia de Dezembro ao principio da noite, fazia frio nas ruas e nas almas. Um vórtice.

No Coliseu -A Morte Saiu à Rua(José Afonso) TvRip.By.Gui.

sexta-feira, julho 01, 2011

"Abandono" (Fado de Peniche) - Amália Rodrigues



Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.

Levaram-te, a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar.
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.

(Cantado ontem por Cristina Branco no espectáculo de encerramento das Festas de Lisboa.)

terça-feira, junho 28, 2011

INESPERADAMENTE A MEIO DA TARDE

Acabo de ler na introdução de José Manuel Mendes a “Encontros com Fernando Namora” as seguintes citações de Cesare Pavese (1908-1950):

1/. “A única alegria neste mundo é a de começar”;

2/. “Nada se acrescenta ao que ficou para trás, ao passado. Recomeçamos sempre”.

Fez-me bem. Atiro-me ao trabalho com renovada alegria.

quarta-feira, junho 22, 2011

REYNO DE BABYLONIA

Inspirada no tema e nos emblemas duma obra do jesuíta flamengo Hermano Hugo, também com influências da novela A Preciosa de Sóror Maria do Céu, a narrativa moral REYNO DE BABYLONIA GANHADO PELAS ARMAS DO EMPYREO, de Sóror Magdalena da Glória (pseudónimo: Leonarda Gil da Gama), foi publicada em Lisboa no ano de 1749.

Sóror Magdalena da Glória nasceu em Sintra em 11 de Maio de 1672. Professou com dezasseis anos no Convento da Esperança de Lisboa, da regra de S. Francisco, tendo falecido em provecta idade por volta de 1760.

A seguir se transcreve um resumo da narrativa, feito por este escriba em 2008 no quadro de um trabalho sobre Literatura Portuguesa do Período Barroco.

Tudo se passa num vale confuso da antiga Babilónia (o mundo terreno, lugar de pecado), onde um Príncipe, fiho do Supremo Emperador (Deus Todo Poderoso), põe os olhos apaixonados numa formosa aldeã de nome Angélica (a Alma). Longe de corresponder ao sentimento do seu amante, Angélica mantém-se indiferente, gozando os prazeres mundanos, o que desgosta profundamente o Príncipe. Este envia-lhe diversos membros da sua corte com o intuito de a demoverem de tão ingratos propósitos: fiéis conselheiras (as Virtudes), um embaixador (o Anjo da Guarda) e até um ancião muito respeitado e valoroso que era o mais importante dos seus vassalos (Santo Agostinho).
Ao longo do assédio que lhe move o Príncipe, Angélica tem momentos em que parece inclinar-se para ele, e outros, menos felizes, em que persiste nas vaidades de Babilónia. Manifesta-se então o ciúme do amador, doído por não encontrar correspondência em tal paixão, vendo a sua amada a ceder às tentações de falsos conselheiros (os anjos revoltados) que lhe enalteciam os prazeres dos cinco sentidos. Pretende o Príncipe castigá-la, pois tinha poderes para tal, mas, infinitamente bom e apaixonado, está sempre disposto a conceder-lhe o perdão.
Entre avanços e recuos, rasgos místicos e recaídas no erro, debate-se Angélica com a sua própria inconstância. São trazidos ao leitor exemplos de mulheres que nunca negaram o seu amor ao Divino Amante: Santa Luzia, Santa Rosa de Lima, Santa Catarina de Alexandria, Santa Clara.
O Príncipe, que nunca deixou de seguir a inconstante aldeã, consegue no final que ela se lhe entregue. Emendada a profia dos descaminhos, desfeitos os fumos da vaidade, Angélica une-se com o Príncipe (Jesus Cristo), subindo com ele ao trono do Empíreo.

Se estas tivessem sido as leituras de Emma Bovary…

domingo, junho 19, 2011

"MADAME BOVARY"

Isabelle Huppert (Emma) no filme Madame Bovary (1991) de Claude Chabrol

Agora que ando a reler Madame Bovary, mais me convenço de que o raio da mulher era mesmo má! Tendo-se fascinado pelo requinte do baile de Vaubyessard (fascinação simbolicamente representada pela charuteira de seda verde que amorosamente guardava), gostando portanto de frequentar a alta-roda social e os seus bons modos, não se importou de abandonar a filha recém-nascida na casa de uma ama da pior condição – uma espécie de bruxa suja, miserável e, pelo que se percebe, consumidora regular de aguardente.
E, no entanto, Emma Bovary lia. Lia e tinha amantes, uma associação de gostos (ou uma relação de causa e efeito) frequentemente estabelecida na ficção naturalista de oitocentos. A Luiza d’ O Primo Bazilio também era leitora de novelas, o que vem reforçar aquela máxima que vi inscrita não sei em que livro ou revista:
mulheres que lêem são perigosas!
Também me convenço de que O Primo Bazilio de Eça de Queiroz, em que já se viu uma imitação de Flaubert, é bem melhor do que o romance do mestre francês. Luiza, apesar de tudo, amava o marido; era vítima da criada Juliana, uma das mais notáveis personagens criadas pelo nosso grande romancista; tinha no seu círculo de amigos um conselheiro Acácio, figura muito mais interessante do que o jacobínico Homais; e quanto a refinamentos amorosos, bem, não sei se Léon ou Rodolphe alguma vez fizeram a Emma aquilo que Bazilio fez a Luiza em certa tarde de amor no “Paraíso”…
A terminar, uma pequena declaração: não concordo com a máxima citada. Acho que hoje em dia, mulheres perigosas são mesmo as que não lêem!
Tenho dito, e já me safei (espero).

segunda-feira, junho 13, 2011

PENEDONO, MEU AMOR

Castelo de Penedono: fotografia tirada há cerca de dez anos

    Ao jantar veio um naco de carne assada acompanhado de batatas loiras num molho castanho e espesso. Um arroz solto, tostado, apresentou-se em pequenas taças individuais. Uma alface de folhas lisas, rescendendo a horta, jazia na saladeira debaixo de rodelas de cebola branca, azeitonas e pimentos vermelhos como o sol  no horizonte. Um vinho de Mêda em jarro de cristal fulgia como um luzeiro sobre a toalha branca.
    Comia-se numa mesa rectangular a que se juntavam cadeiras de espaldar alto: o pai e a mãe nos topos, a filha e o convidado de cada um dos lados.
    A sala era digna de um solar: lajedo no chão, granito nas paredes, grossas traves de carvalho no tecto, candelabros de ferro forjado, retratos de avós em cima de móveis de nogueira e uma escada de madeira que rangia na direcção dos quartos.
    O leite-creme sumiu-se da travessa de loiça com os bordos pintados de flores, deixando ver no fundo uma cena bucólica em azul pálido. Vieram bagaceiras e cafés, charutos que o convidado recusou não se sabe bem porquê.
    A mãe era uma senhora roliça, com muitas rugas, setenta anos bem medidos. O pai, que andava pela mesma roda, parecia uma personagem de Buñuel, talvez o Don Lope de Tristana, Amor Perverso. Só que este Don Lope tinha mulher em casa e a filha era mesmo filha, ainda que um bocado mais velha que a Catherine Deneuve do filme.
    Isto passava-se em Penedono. Para quem não saiba, é terra que fica lá para as bandas de S. João da Pesqueira e Foz Côa, perto do Douro, à volta de um castelo medieval que parece um cenário de filme sobre cavaleiros da Távola Redonda. D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, um dos Doze de Inglaterra, saiu dali, num tempo de brumas e cavalarias, para ir defender a sua dama em terras dos Duques de Lencastre. Camões, pela boca do marinheiro Veloso, enaltece o feito no Canto VI d’Os Lusíadas – estrofes 43 a 69 para quem queira queimar os olhos com tão incerto episódio histórico.
    Veio o serão. Don Lope gabava o novo rumo que o país finalmente ia tomar, os resultados eleitorais, o governo com uma maioria e um presidente. O convidado concordava por delicadeza, os olhos postos nas traves do tecto como quem pede o auxílio de Deus, trocando olhares com a filha e fazendo uma figa atrás das costas.
    A filha ia bocejando, a semana de trabalho tinha sido dura, estava cansada e queria dormir. Subiu com a mãe as escadas rangentes.       

    Don Lope falava de economia e finanças, de política agrícola. Que havia, sim, um político em Portugal capaz de endireitar a nossa agricultura, assim o deixassem! Não só capaz de endireitar a agricultura como de restabelecer a segurança no país! Uma pouca vergonha o que se passava em matéria de segurança, a polícia sem autoridade, os tribunais contra a polícia, libertando os delituosos e atenuando-lhes as penas.   
    Parece que o político de Don Lope tinha lugar garantido como vice-primeiro-ministro! O convidado, por desfastio ou maldade, pedia mais um balão de bagaceira e lembrava-se de Alexandre O´Neill: Neste país em diminutivo… Respeitinho é que é preciso.   
    Foi por respeito que a mãe mandou a empregada preparar dois quartos. Não se tratava de um namoro de miúdos, afinal a filha até já tinha sido casada, mas há coisas que em certas casas e em certos momentos não são assumidas sem ponderação.
    Enquanto falava com Don Lope o convidado recordava-se da primeira vez que viera a Penedono, em outros tempos e noutro histórico de afectos, já lá iam uns bons dez anos, talvez mais.
    No piso de cima, dizia a mãe para a filha:
    – Se ficarem na mesma cama, desfaçam a do outro quarto como se alguém tivesse lá dormido. A empregada não tem que saber, muito menos o pai.
    O pai, Don Lope, aproveitava uma pausa na conversa para repousar os olhos. Era a sonolência que lhe costumava vir por volta das onze da noite, efeito da medicação, do vinho ou da diabetes ferina.
    O convidado aproveitou para sair de mansinho. Encaminhou-se para as escadas e começou a subi-las, enquanto uma voz lhe atravessava a mente: “Penedono, meu amor”. Por mais que quisesse, não conseguia perceber de que tempo, próximo ou distante, provinha ela.  
 

sexta-feira, junho 03, 2011

CASAMENTO DA MORTE








































Dizia um nosso grande cortesão, que havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do diabo, casamento da morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o velho.

D. Francisco Manuel de Melo
Carta de Guia de Casados


Ela dava aulas na faculdade, lia Foucault, tinha a cabeça cheia de filosofia e o corpo muito feito a satisfações metafísicas, a fenomenologias frenéticas, a ontologias gritantes. Ele limitava-se a passear os olhos por romances, por um ou outro livro de poesia, e tentava uma vaga investigação literária num trabalho académico de improvável mérito.
Como é que tudo começou? Ninguém pode dizer ao certo o princípio das coisas! Se fosse possível saber onde se levanta o vento, em que região do mar se forma a onda, em que recesso da alma desponta o amor – então o homem seria um lago de águas paradas, não haveria a emoção da vida nem o milagre da dúvida, estaria condenado ao mais pardo dos conformismos existenciais, sujeito a um determinismo tirânico, abominável e destruidor.
Na primeira noite que passaram juntos a coisa não correu mal de todo. Quando entraram na alcova, ela fechou um livro que estava aberto sobre a cama, no qual se viam grandes sublinhados a lápis castanho, tirou os óculos, a camisa e as calças, deixou brilhar o mármore dos seios e a promessa segura do triângulo púbico, e ele agiu como se lhe lesse, sem perceber, uma página densa de Heidegger. A parada era alta, mas lá se safou.
Na noite imediata foi como se lhe recitasse um poema mal decorado. Falhou nas estrofes preliminares, conseguiu recompor-se a meio do texto, e acabou no limiar duma indisposição grave, o coração a galope nas arcadas do peito.
Foram assim as duas primeiras noites. Nas que se seguiram é que foi pior. Ela queria Foucault, Deleuze, Derrida, e ele mal lhe conseguia ler um capítulo de Régio, um poema de Sophia, um artigo do JL dos mais ligeiros.
O amor pelas leituras, no entanto, parecia feito de uma liga forte. Ao fim do dia, antes de se meterem pelo Calhariz e subirem a Rua da Rosa a caminho do segundo andar do prédio em que ela morava, bebiam imperiais na Trindade e passeavam no Chiado de mãos dadas. Uma vez, uma senhora idosa que ia para a missa da tarde na Igreja dos Mártires gabou aquela ternura que via entre pai e filha, algo a que já não se assistia num tempo tão dado a conflitos geracionais. Uma amiga não menos carregada de anos que a acompanhava, mais preparada, contudo, para as realidades do século, pediu-lhe que não dissesse asneiras e ficasse calada. A senhora caiu em si e benzeu-se com veemência, rezando mentalmente a Santo Expedito por todos os que neste mundo se desviam do caminho certo.
O tempo foi passando. Na maior parte das noites não havia filosofia que viesse em seu auxílio. Ela mostrava-se compreensiva, lia e sublinhava encostada ao espaldar da cama, enquanto ele dormia, passeando por sonhos em que entravam pastoras da arcádia, toques de flauta e amores castos.
Sentiu o cheiro da morte numa madrugada de Primavera assustadora e quente. Ela lera os filósofos até tarde, os olhos correndo as páginas como se as quisesse meter dentro de si. Da rua vinha o ruído da malta dos copos, peregrinando de bar em bar. Ele estivera ao computador, escrevendo umas linhas frouxas, e a inevitabilidade do diálogo filosófico crescia como a sombra da noite. Os primeiros embates ultrapassou-os de forma satisfatória, só depois veio o mais complicado. Ela fixava-se num texto de Blanchot sobre Foucault e sexualidade, sabendo ele que quem fala em barcos quer embarcar. Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!, disse o poeta. Ele sentiu saudades de outros tempos e de outros cais onde embarcara, e deixou-se ir na corrente como quem se entrega. Acabou destroçado do excesso, um comprimido de emergência debaixo da língua. Filosofias…
Foi então que se lembrou de ter visto e fotografado no campus universitário de São Paulo, nas paredes de uma qualquer faculdade, uma inscrição a que agora dava completo sentido:

FOUCAULT É A MORTE DA FILOSOFIA!
DELEUZE E DERRIDA TAMBÉM!

Gostava muito dela, mas não aguentou o alto nível do debate filosófico em curso. Nunca mais poderá esquecer o andar velhinho da Rua da Rosa, a alcova semeada de livros, a roupa íntima espalhada pelo chão e o ruído que subia da rua até alta madrugada. Às vezes, por muito que custe, é preciso aprender com os clássicos. Casamento da morte…

segunda-feira, maio 30, 2011

BONNIE AND CLYDE

Faye Dunaway



O filme de que José Régio não gostou. Vi-o na RTP 2, no passado sábado, e só tive olhos para ela.

A VIZINHA

O assédio durava há meses. No elevador, à porta do prédio, nos encontros casuais no café da rua de baixo, a vizinha dirigia-lhe a saudação e inquiria:
- Então o seu menino como está? E a senhora? Faz tempo que não a vejo!
Ele mastigava umas palavras contidas, delicadas, que causavam consternação e dúvida.
- Então está em casa da mãe… Era o que eu devia fazer, tenho a minha mãezinha muito doente. Devia deixar tudo isto e ir ajudá-la.
A vizinha era talvez daquele tempo em que uma das filhas costumava ficar solteira para assistir a mãe nos achaques da velhice. Ela, porém, tinha constituído família, deixado o marido quando já não lhe fazia falta, e agora estava em casa da filha, que era casada- descasada-recasada, com descendência da união actual e da antecedente, e ali cumpria a sua nobre missão de auxílio doméstico: filha, netos e genro actual ao seu cuidado, a mãezinha doente que esperasse.
Isto começara em Novembro. O Inverno, entretanto, despira o arvoredo da praceta, correra veloz sobre a sombra dos dias, insuflando-lhes, semana a semana, suplementos líquidos de luz: em Janeiro uma hora por inteiro, e quem bem contar hora e meia vai achar.
O cheiro das lareiras, esfumado por chaminés altas, foi diminuindo. Escassearam as manchas brancas das garças que vinham do campo debicar a relva dos jardins. Os pássaros miúdos, de penas tufadas, já voltavam mais tarde para os ramos das árvores onde pernoitavam. No escuro da rua, encostados às paredes dos prédios, os jovens beijavam-se enquanto bebiam cervejas, línguas de alterne entre os gargalos frios das garrafas e o húmido quente das bocas.
Quando a Primavera chegou houve ameaços de felicidade em todos os rostos. De um dia para o outro passaram a vestir-se calções e camisas de manga curta. A senhora do segundo andar, que numa manhã partilhara com ele o elevador, já mostrava com naturalidade o terço superior dum seio redondo mas ainda pálido. Se ao menos a senhora do segundo andar lhe perguntasse alguma coisa… Mas não, limitava-se a um breve cumprimento, nada mais, e apenas a vizinha, avó de família, lhe dirigia impiedosamente a palavra.
Um dia em que dera com ele debruçado sobre o estendal da roupa, expondo ao sol três camisas e um par de calças, atirou-lhe de janela para janela, a voz bem timbrada como fazem os artistas de teatro, uma fala laudatória, audaciosa e clara:
- O meu marido nunca me ajudou em nada. Um homem não tem que se envergonhar de fazer o trabalho de casa.
E rematou:
- E a sua senhora, quando volta? Olhe, se precisar de alguma coisa minha…
O assédio continuava com o crescendo dos dias. Por motivos despropositados tocava-lhe à porta a meio da tarde, interpelava-o na rua, e lá vinham os rodeios, as perguntas. Ele já tinha feito o levantamento das suas rotinas: as horas em que ia ao supermercado ou ao café, quando saía para ir buscar a netinha ao colégio. E esquivava-se.
Em Maio veio um Verão precoce e desaustinado. A senhora do segundo andar continuava a mostrar o apetecível. Num domingo em que descera tranquilamente à rua deu com a figura lábil da vizinha que ia atravessando sem grandes pressas a porta larga do prédio. Tentou evitá-la. Deu-lhe a salvação e ia escapar-se, mas ela não lho permitiu:
- Olhe lá, senhor Manuel…
Ele parou, por delicadeza, e para evitar as incómodas perguntas passou ao ataque: começou a falar-lhe da reunião do condomínio, da falta de luz no terceiro andar. Há dois meses que a lâmpada ou o detector tinham falido e ninguém da administração parecia interessado em solucionar o problema; como é que ela se arranjava quando saía do elevador e tratava de introduzir a chave na fechadura da porta?
- Olhe, vou às apalpadelas. Ainda se fosse para apalpar alguma coisa de jeito.
Calou-se uns segundos e contra-atacou:
- Mostre-me as suas mãos.
Ele, surpreendido, levantou-as à altura da cara como quem se rende perante uma arma que acabasse de lhe ser apontada. E a vizinha, exultante, depois de uma observação rápida, disparou:
- Eu bem me parecia, não tem aliança! Já andava desconfiada de que alguma coisa não estava bem!
De soslaio, viu que a senhora do segundo andar se debruçava na sua varanda. Não podia garantir, mas parecia haver nela uma expressão de comiseração enternecida e calma.

sexta-feira, maio 27, 2011

PLAÇA CATALUNYA

Plaça Catalunya - Foto "La Vanguardia"


Tenho um jovem que anda por lá. A verdade é que há mais de 24 horas que não consigo falar-lhe.

terça-feira, maio 24, 2011

COLÓQUIO INTERNACIONAL CARLOS DE OLIVEIRA

27 e 28 de Maio na Casa Fernando Pessoa

"EURICO, O PRESBÍTERO"

LIMA DE FREITAS, painel de azulejos na Estação dos Caminhos de Ferro do Rossio. Evocação esotérica dum episódio de "Eurico, o Presbítero".


Há livros a que sempre voltamos, nem que seja para nos certificarmos de como estávamos errados naqueles tempos antigos em que lhes torcíamos o nariz. Eram as grandes secas dos programas escolares, os trechos das selectas literárias dissecados perante os mestres como se fossem partes de cadáveres numa mesa de anatomia.
Herculano disse de “Eurico” que não sabia como classificar o seu livro: romance histórico, lenda, ou crónica-poema. Tampouco isso o preocupava. O Romantismo foi um período de rupturas, de miscigenação dos géneros literários, de liberdade e libertação da linguagem poética. “Eurico” é um poema em prosa, dos mais belos livros que já se escreveram em língua portuguesa. Reli-o entre sábado e o dia de hoje, e não me saem dos olhos o povoado de Carteia, a sombra escura do Calpe, os alcantis dos Montes Cantábricos. Ler é encher os olhos de imagens, é viajar no espaço e no tempo.

quarta-feira, maio 18, 2011

"A SALA MAGENTA"




Duas peças paratextuais de “A Sala Magenta”


1ª Uma ADVERTÊNCIA do autor:

A acção e as figuras deste romance reportam-se a um mundo ficcional de entrada franca, sem chaves ou gazuas. Procurar moldes da vida real para acontecimentos e personagens é ter em má conta a imaginação do autor. Pode ser que ele o mereça, mas não os lesados por equívocos de leitura.

MdC


2ª Uma das cinco epígrafes do romance – parte de uma carta de Eça de Queirós em que o grande mestre do nosso realismo-naturalismo procura explicar que a personagem Tomás de Alencar de “Os Maias” nada tem a ver com a personagem real do escritor ultra-romântico Bulhão Pato:

E visto que nada agora pode justificar a permanência do Sr. Bulhão Pato no interior do Sr. Tomás de Alencar, causando-lhe manifesto desconforto e empanturramento – o meu intuito final com esta carta é apelar para a conhecida cortesia do autor da “Sátira”, e rogar-lhe o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem.


Digo-vos à puridade (comecei agora a usar esta expressão!) que acredito tanto em Eça como em Mário de Carvalho. Ou seja, apreço literário à parte, não tomo como sinceras nem a advertência do autor de “A Sala Magenta” nem a carta do grande escritor de “Os Maias”.

quinta-feira, maio 12, 2011

Catroga e as discussões de pentelhos




Já houve um ministro que contou anedotas de mau gosto sobre alentejanos; outro que fez corninhos para a assembleia. Ambos se demitiram. Será que este ainda vai chegar de novo a Ministro das Finanças?

segunda-feira, maio 09, 2011

PORTUGAL E A FINLÂNDIA

O vídeo da Câmara de Cascais para os finlandeses é um caso perfeito de esperteza saloia, um rol de vulgaridades bacocas e provincianas – como se Mourinho, Ronaldo, o futebol e o uso desproporcionado de telemóveis (esqueceram-se do Allgarve!), tivessem alguma coisa a ver com a grandeza dum povo e com a sua civilização. Garcia da Orta, Magalhães e outros casos interessantes da nossa História estão lá metidos na mixórdia, desvalorizados entre a apologia do bacalhau, do pastel de nata e do porco que se come por inteiro! Aquela do jogo do Benfica em Paris ter tido mais assistentes portugueses do que franceses é de escangalhar a rir. Como se o facto de Paris ser a cidade da Europa com maior número de portugueses não fosse a prova provada da miséria dum povo que teve de encontrar na emigração a solução para a sua sobrevivência. Sobre a cultura portuguesa – literária, artística – nem uma palavra! Parece que em Cascais não há cultura, apenas praias, tias, shopping centers e hotéis que são sempre anunciados como os maiores da Europa ou da Península Ibérica. Na resposta, os finlandeses já disseram que têm belas mulheres, algo de que os autores do nosso vídeo, coitados, nem sequer se lembraram de considerar entre os grandes trunfos das lusas gentes. E, de facto, é a melhor coisinha que temos por cá, as mulheres, especialmente aquelas que não se metem na política e se riem entre o irónico e o sério de toda esta porcaria que é feita pelos machos.

domingo, maio 08, 2011

O FIDALGO APRENDIZ de D. Francisco Manuel de Melo

Teatro Nacional D. Maria II

O que acontece a um fidalgo provinciano deslumbrado com a Corte ou como não se pode dar um passo maior que a perna. Um texto do século XVII de flagrante actualidade.

sexta-feira, maio 06, 2011

SONDAGENS

Diário de Notícias on line

O homem é arrogante, mentiroso, desonesto (até cobarde, segundo as recentes declarações do tribuno Macedo), mas a última sondagem da Universidade Católica manda-o para a frente da corrida. Coisa estranha...


quinta-feira, maio 05, 2011

JERÓNIMO!

Fotografia Yahoo! France


Li hoje na página Yahoo!France: “A utilização do nome do chefe apache Jerónimo como nome de código da operação militar americana que eliminou Ossama Bin Laden levantou protestos de vários representantes de comunidades índias dos Estados Unidos.”
O nome é, claro, politicamente incorrecto. Também entre nós, em certo quadrante político, poderá causar algum desconforto…

segunda-feira, abril 25, 2011

sábado, abril 23, 2011

sexta-feira, abril 22, 2011

MÁRIO DE CARVALHO: UMA MÁQUINA DO TEMPO

A leitura adequada para esta época. Embrenho-me então no município de Fortunata Ara Iulia Tarcisis, algures na Lusitânia, na companhia do duúnviro Lúcio Valério Quíncio. Estamos no ano 213 da era de Augusto, 928 da fundação da Urbe, sob o império de Marco Aurélio Antonino.

sábado, abril 16, 2011

TOMAR


Charolinha, Mata Nacional dos Sete Montes, Tomar


Quem não ouviu contar histórias na infância ou delas não guardou na memória o seu maravilhoso irrepetível, pode ter crescido e se tornado gente, pode até ser pessoa válida e de bem, mas encontrar-se-á fatalmente amputado na sua plenitude imaginativa e criadora. Para nos tornarmos homens, é preciso que, em meninos, tenhamos aberto os olhos de espanto perante o canto de sereia das narrativas.

Garrett deixou-nos o testemunho do efeito que nele causaram as histórias da velha Brígida, criada que tinha todo o jeito e traça de bruxa, e era cronista-mor de feitiços e milagres:

(…) Suas longas histórias recontando / De almas brancas trepadas por figueiras, /De expertas bruxas de unto besuntadas / Já pelas chaminés fazendo víspere, /Já indo, às dúzias, em casquinha de ovo /À Índia de passeio numa noite… /E ai! se o galo cantou, que à fatal hora / Encantos quebram, e o poder lh’ acaba.[1]

Amanhã vou a Tomar em passeio com a Comunidade de Leitores da Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana. Foi em Tomar que, em menino, ouvi as melhores histórias da minha vida: histórias de bruxas, de lobisomens e de almas penadas – histórias que não metiam medo e em que queria com toda a força acreditar. Acho que foram a base da minha formação e valeram tanto ou mais que todas as disciplinas e seminários da Universidade. Uma dívida que não paguei e só de uma forma conseguirei pagar: nunca esquecer quem me as contava.



[1] Dona Branca, canto terceiro, estrofe III.

tuna fanfe - de mais ninguem, jantar recepção '09

domingo, abril 10, 2011

O MALATO ENTRE O FACTO E O FATO


Um argumento que tem sido usado com alguma frequência contra o novo acordo ortográfico é o caso de facto (sinónimo de acontecimento) passar a escrever-se fato, violando a dicção do português europeu e obrigando os portugueses a falarem como os brasileiros. Isto está completamente errado! A palavra tem dupla grafia e, entre nós, continuará a escrever-se como a pronunciamos, ou seja, facto – tal como factício e factual, palavras em que o c se pronuncia, embora em fator, fatorial, fatura e faturação, em que a consoante c é muda, ela desapareça da grafia. Vem isto a propósito de uma das últimas sessões do concurso do Sr. Malato na RTP1. Tendo perguntado a uma concorrente, opiniosa mas mal informada, o que pensava do novo acordo ortográfico, respondeu-lhe a inquirida com o argumento de peso da palavra facto. Ora o que é estranho é que o Sr. Malato, que citara o linguista Ferdinand de Saussure já não sei a propósito de quê, acabou por não desfazer o equívoco da concorrente. É claro que há coisas que sempre nos escapam, e conduzir um programa de televisão é trabalho complexo que pode dar origem a erros, omissões e lapsos... Assim, depois de ter enchido a boca de Saussure, o apresentador hesitou, calou-se, e a concorrente teve o seu momento de falsa glória. Não sei se ganhou alguma coisa no concurso: mudei logo de canal.

A CRISE - IV

A esfinge de Belém foi a Budapeste falar de "imagination". Inglês por inglês, prefiro o de Jorge Sampaio.

A CRISE - III

Aguardo com interesse o comentário do Prof. Martelo. Será que tem uma nova sondagem?

A CRISE - II

Políticos que se escondem atrás dos arbustos – uma boa metáfora. Se se escondem atrás dos arbustos têm de ser pequenos… E os arbustos, quem são? Ou quem é? Aceitam-se ideias. O homem estava empolgado, cheguei a pensar que ia pedir a maioria absoluta. Uma fera!

A CRISE - I

Passos, Relvas, Macedo – grandes políticos de outros tempos! Mas quem é que se vai lembrar, de aqui a uns anos, destes que agora se perfilam com os mesmos nomes?

segunda-feira, abril 04, 2011

De Mais Ninguém - Marisa Monte - Legendado


Sim, isto rebenta com qualquer coração! Nem novela camiliana, nem concerto de Tony Carreira, nem sei lá o quê... Dá gosto ouvir e meditar nos desfortúnios da condição humana!

segunda-feira, março 28, 2011

BRUNO, MARCELO E A ESFINGE


Em que é que Bruno de Carvalho, candidato derrotado à presidência do Sporting Clube de Portugal, se compara com Marcelo Rebelo de Sousa, professor universitário e abalizado analista político da TVI? Numa coisa muito simples: na confiança que ambos têm nas sondagens eleitorais!

Bruno de Carvalho vai impugnar as eleições que perdeu porque uma sofisticada sondagem feita à boca das urnas lhe dava uma vitória que não veio a ser confirmada pela contagem dos votos. (A razão é mesmo esta, é só ouvir com atenção as declarações do frustrado dirigente). Marcelo, por sua vez, exulta com a sondagem encomendada pela TVI e já dá como certa a vitória que à distância de dois meses ainda terá de ser provada pelos resultados das urnas.

Tem-se dito que o estado calamitoso do nosso futebol é um reflexo da situação política do país. Eu neste momento tenho dúvidas: já não sei se é a política que influencia o futebol, ou se é o futebol que influencia a política.

O mais surpreendente é que segundo a lúcida análise do professor, o país não está preocupado com aumentos de impostos ou outros sacrifícios – o país não quer é este primeiro-ministro! Com outro que venha, todos os pec passarão sem problemas, se calhar até com sorrisos compreensivos de sindicalistas e deputados da esquerda mais empedernida – ilações que aparentemente podem ser retiradas da mesma sondagem!

Esperemos que em Maio ou Junho, na data que vier a ser marcada pela esfinge de Belém, os resultados das urnas se afinem pelas previsões das sondagens. Evitaríamos dúvidas e dificuldades para o país e, sobretudo, poderíamos vir a aspirar, num futuro quiçá não muito distante, a algo de tranquilizante para a nossa democracia: dispensar de vez o complexo e dispendioso processo das eleições, passando a nomear, através de sondagens cientificamente realizadas, todos os nossos deputados, todos os nossos autarcas, o presidente da república, os dirigentes desportivos, os conselhos directivos das escolas, as administrações dos bancos e das empresas públicas, os chefes das quadrilhas e os estados-maiores das forças armadas, enfim, toda a gente importante em cujas mãos nos entregamos como cordeirinhos, esperando que não nos façam muito mal e nos deixem continuar a ver o futebol, as análises do professor Marcelo, as telenovelas, os concursos das crianças cantantes na TVI, as marchas populares, tudo aquilo que não dá que pensar e nos prepara para, de seis em seis meses, com uma regularidade democrática, exercermos cada vez com mais consciência o nosso dever de eleitores.

segunda-feira, março 21, 2011

A CANÇÃO

À versão de Marisa Monte e a esta para que aqui remeto o visitante amigo, prefiro a de um fadista português que desgraçadamente não consigo encontrar no Youtube.
Depois de uma manhã em que li duas páginas das Confissões de Rousseau e acabei de preencher com náusea os questionários dos Censos-2011, descobri que tinha a máquina de lavar roupa avariada. Perante tanta infelicidade, só uma canção como esta me pode confortar.

Os versos:

Se ela me deixou a dor é minha só
não é de mais ninguém...

A sala o quarto a casa está vazia
a cozinha o corredor
se nos meus braços ela não se aninha
a dor é minha a dor…

etc. etc. etc.

Oiçam bem a letra e a música em:
www.youtube.com/watch?v=J9Yir7AXbXo

E atrevam-se lá a dizer que não é bonito!

segunda-feira, março 14, 2011

A uma carta responde-se sempre


Cristina Leimart no "Emoções Básicas":



Domingo, 13 de Março de 2011

Resposta a "Uma Carta" do Disperso Escrevedor

Bom e paciente amigo

Anda uma pessoa na sua vidinha mediana, altos e baixos, uns dias sorridos outros de sobrolhos franzidos, quando lhe salta ao caminho uma carta chamando-lhe deusa. Abana qualquer uma! Responde-se, e é como atar uma pedrinha ao cordel de um balão de hélio – retira-lhe a graça e a elevação.
Ainda assim, não resisto. Desde logo, à cortesia em ver-se o meu amigo de idade para ser meu pai. Com a nossa década e picos de diferença, já o imagino há cinquenta anos, robustecido pelas vastidões da lezíria, avesso a amores aguados mas abraçando, se não os minúsculos prazeres epistolares, certamente as emoções básicas da física do amor – e tão jovenzinho, o que só lhe fica muito bem.
Quanto à minha história com ‘hi’, pu-la a girar em torno de um manuscrito, quando se trata, em rigor, de um teclaescrito, dada a raridade atual do uso da caligrafia. Do tal Celúlio é que ainda pouco sei. Outro dia vi um gorgulho pequenino, redondo e tostado escapulir-se de um saco de arroz na minha despensa, e afinal era o Celúlio à saída da empresa de reciclagem. Tenho-o como pessoa de muitos planos, com quem a vida sempre desconversou. Vejo-lhe a alma cheia de tiques, um caminho povoado de amigos incompletos. Aquela vida junto ao tapete do enxovalho, um pouco espelho de como o país anda agora, e andava no tempo do Eça e no de D. Sebastião, não lhe é salutar. Enfim, oxalá me engane, que pareço uma vidente lendo uma bola de cristal.
E também parece que a alma lusa de Celúlio se compensa como pode, indo embeber-se naquela pura ilusão do paraíso bibliotecário. Aforismo inteiramente da lavra dele, já agora, embora eu tenha lá metido à socapa o meu arado. E depois não o estou a ver homem de citações, pois sobre livros selectos ele é ainda menos informado do que eu. Mas coitado! Como se as bibliotecas não fizessem parte do mundo. Cheias de silêncios forçados, de sons a aguardar vez, de vozes faladas em standby para que as palavras escritas possam respirar e brilhar, de folhas oprimidas por falto de uso, outras gastas por mãos ávidas, olhos fartos de letras, frases inteiras arranhadas pelas patitas dos ácaros, e pó, um pó insidioso e calado a picar leitores alérgicos. E, abaixo desses silêncios, remoinhos indizíveis, uma verdadeira tectónica das características humanas: desejos desencontrados, pulsões contidas entre leitores, intrigas e atrações entre funcionários, invejas e paixões entre personagens, empatias funcionários-personagens, e até vice-versa, sussurros de cordel, olhares atravessando mesas de leitura e que poeta algum descreveu, etc, etc.
Eu percebo o Celúlio. Adoro a superfície do silêncio acariciando-me os sentidos e o espírito, esse morno mar de silêncio com ilhotas de trabalho solitário, concentrado que é uma biblioteca. Parece que estamos ali à beira de um salto quântico qualquer. Adoro a cortesia vaga, formal nas vozes microdecibélicas de leitores e funcionários. Cada biblioteca, da mais insignificante numa estante de colectividade local, à de Alexandria ou à do congresso americano, tem o seu silêncio endémico, a sua exclusiva linguagem freática. Não sei se o Celúlio vê a coisa assim. É um bocado limitado. Possui uma mente arrumada, de matriz binária, à engenheiro. Ele nem igrejas, tão ricas de história, cultura e espírito, aprecia visitar, veja lá! Embirra que lhe leiam talhas douradas e painéis de azulejos, porque chega ao terceiro e já não se lembra do que lhe disseram do primeiro. Pronto, é como é.
E pronto também para nós, que esta resposta já vai longa e o meu amigo tem mais que fazer.
Obrigada pelas palavras. Um grande abraço.


PS: Quanto às formalidades do novo acordo, que fazer? Saiba que estrebuchei q.b., disposta até a descer a avenida da Liberdade em prol da tradição, se tem havido uma convocatória no facebook. E se não resisti mais, foi por guardar a energia dos meus estrebuchos para causas mais promissoras. Dizem que é uma atitude de sabedoria, e eu acredito.

sábado, março 12, 2011

GERAÇÃO À RASCA

Hoje, na manifestação

Ironizar sobre os impasses da situação social, como fazem os jovens do cartaz, é uma demonstração de lucidez. É meio caminho andado para se compreender que o trabalho precário, o desemprego dos licenciados e o desemprego em geral são produtos do capitalismo flexível que se estabeleceu à escala global durante as últimas décadas.
Podemos fazer alguma coisa cá dentro? Sim, mas pouco.
Mesmo assim, vale a pena descer à rua. É o nosso direito à utopia!

terça-feira, março 08, 2011

O ROMANCE E O REAL

Tentava escrever um ensaio sobre o roman à clef[1] na literatura portuguesa da segunda metade do século XX. Tinha presente Os Meninos de Ouro de Agustina e deu consigo a pensar: quem é este José Matildes? E Farina, leitor de Swift, quem é esta figura de intelectual que andou por aí a dar o sopro da vida a um partido político? Não tinha a certeza de Farina ser uma representação do autor d’ A Torre da Barbela, tampouco Matildes o liberal que na Assembleia Nacional marcelista foi promessa de liberdades, homem providencial sem o ser, caudilho espúrio, malogrado líder caído sobre o casario de Camarate como um Ícaro de sombra. Sentia-se confuso, acometido de uma grande falta de vontade, as ideias fugindo-lhe da cabeça como pássaros de uma gaiola aberta. E procrastinava.
Nesta indecisão, resolveu não escrever o ensaio, mas o primeiro capítulo de um roman à clef: curava a ferida de cão com o pelo[2] do cão! Mas seria capaz de escrever os sucessivos capítulos de tal romance? Pelo que de si conhecia, a coisa ficaria talvez por uma novela, se calhar por um simples conto…
O conto é um género difícil, dissera-lhe uma vez um poeta. Precisa-se de muita concisão, muita agudeza de espírito para acertar no coração da narrativa. O poeta esforçava-se por o convencer, usava metáforas breves que lhe soavam a dísticos ou a haicai japoneses, mas ele não acreditava. Porque os grandes ficcionistas pouco ligam ao conto, escrevem as suas obras em centenas de páginas, a pluma rasando as resmas com as suas marcas de fogo, talvez apenas de tinta, não vale a pena tanto exagero: veja-se o Proust da Recherche, o Tolstoi da Guerra e Paz, o Durrel do Quarteto de Alexandria.
Faça-se deste poeta uma personagem à clef! Era um homem alto, os fatos de bom corte, a fala com um sotaque ilhéu que cheirava a mar e a búzios rumorejantes. Amava a poesia como se ama uma mulher desleal, dessas que dizem meias verdades e fazem versos aos amantes:

És o meu Sol que só se abre de vez em quando.
Vivo na penumbra dum sentimento
que não sei qual é.[3]

(Outra personagem à clef!)
A poesia é desleal, como toda a arte é desleal. Apetece pensar que foi Rimbaud que o disse, mas se calhar não foi. O que Rimbaud disse, ou escreveu, sim, parece que escreveu, em carta ao seu antigo professor Georges Izambard, foi je est un autre, frase gramaticalmente errada mas poeticamente certa, e que é talvez a melhor prova da deslealdade da arte. Da das mulheres nem vale a pena falar, só comparável à deslealdade dos homens!
Não escreveu o ensaio nem começou o romance. Sobreveio-lhe um grande desejo de dormir, de ver planícies de sonho e prados carregados de bruma. Quando deu por si estava do outro lado da vida, a cavalo numa dose exagerada de tranquilizantes.
O psiquiatra, que nunca lera Freud, estranhou a sua falta à sessão e ligou-lhe por mera rotina clínica. Ninguém atendeu. Que pena, logo agora que tinha decifrado mais uma personagem do roman à clef.



[1] “Romance com chave” – romance em que as personagens, tiradas do real, são apresentadas com outro nome, mas conservando os seus traços comportamentais e características físicas.
[2] Segundo as novas regras ortográficas, deixa de ter acento.
[3] Versos lidos num sonho.

terça-feira, março 01, 2011

UMA CARTA

Minha Querida Amiga,
Li a história reciclada do seu Celúlio Brito, verificando com satisfação que já escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico. Não é fácil, pois são muitos anos a carregar com hífenes e a engolir consoantes mudas, adereços escriturais que têm tanta utilidade como um guarda-chuva num dia de sol. Agora que, finalmente, toda a escrita se recicla, o mais provável é que nos atrapalhemos, que dêmos um ou outro erro de ortografia, como lhe aconteceu com o diabo da consoante muda na palavra “objectiva”. Vá lá emendar, por favor.
Aproveito para dizer que fiquei satisfeito por vê-la escrever “história” e não “estória”. Embora a palavra já pertença ao léxico, podendo ser encontrada no Houaiss e noutros bons dicionários, apesar de não ficar mal de todo ao lado de “hei de”, de "hás de" e de “projeto”, a verdade é que não é do meu agrado – prefiro “história”.
Sobre o assunto da sua… história, saiba que de celulose não percebo nada. De papel, ainda menos: escrevo no computador e isso basta-me. A bilhetes e cartas não me dedico há muito, embora tenha várias histórias sobre cartas de amor, as únicas que considero no vasto domínio dos epistolários. Esta que agora lhe envio, veja-a por favor como a carta de amor que nunca lhe enviei (não se mandam cartas de amor a senhoras casadas, ainda por cima com idade para serem nossas filhas), porque o que há de mais amorável é entregarmo-nos aos prazeres da escrita – “prazeres minúsculos”, como aqueles que muito bem conhece.
Não sei o que possa acrescentar, tais as “emoções básicas” que a sua história despertou em mim… Laurinda? Achei piada ao nome, pelas razões que certamente adivinhará. Também gostei da tirada final, mas como vem em itálico fiquei sem saber se será da sua lavra ou se a tirou de algum livro selecto. Sabe, fez-me lembrar o Borges, director cego da Biblioteca de Buenos Aires… De facto, as bibliotecas não dão chatices; o chato é não aparecerem nelas os leitores! Mas isto não diz respeito à minha querida amiga, pois pelo que sei a sua casa é já uma biblioteca, isto é, um templo, a que nem sequer falta a deusa! Quando lá entrar, se algum dia lá entrar, descalço-me.
Com um grande beijo,

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

terça-feira, fevereiro 22, 2011

NO BOSQUE DA FICÇÃO

Maria, que lindo nome
Para as bocas sequiosas.
Maria, disse e ficou-me
A boca a saber a rosas.

A quadra é de António Menano, fadista de Coimbra, e apareceu-me hoje no capítulo XXI do romance Amigos Sinceros (1941) de João Gaspar Simões (1903-1987).
Podia pôr-me a falar de romance psicologista, de estética presencista ou de narrativa autobiográfica (que também o é), mas não, prefiro deixar os versos em singelo.
Não me faltam Marias na história da vida! É certo que há também as Vanessas, as Sónias, as Patrícias e as Joanas, mas são árvores da fímbria do bosque. Gosto de todas, como de boas ficções.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

A OBRA

Continuo a escrever a OBRA. Aqui deixo umas breves linhas para que possa apreciar-se a excelência do trabalho. Como notarão, há uma referência a um crítico francês, outra ao filósofo peripatético, além de palavras caras que nem vêm no dicionário. Por favor, não se riam, são perversões da idade:

Sébastien Hubier (Littératures intimes, 2003) refere a autoficção como uma expressão anfibológica das escritas do eu. Em Aristóteles e na linguística moderna o termo é usado para designar um enunciado suscetível de duas interpretações diferentes. Ora a autoficção é isso mesmo, um texto que pode ser interpretado como romance e como autobiografia, cabendo ao leitor decidir sobre o seu grau de verdade ou de mentira.
(Extraído da OBRA, p. 62)

NOTA: Texto escrito segundo as normas do novo acordo ortográfico. Nas mais de cento e cinquenta palavras que aqui ficam apenas uma tem nova grafia (“suscetível” em vez de “susceptível”). Afinal, a coisa não parece assim tão desfiguradora da nossa escrita.

quarta-feira, janeiro 26, 2011

A CABRA PUXA SEMPRE PARA O MONTE

IRONIA ROMÂNTICA

Expressão composta por dois termos, à primeira vista, incompatíveis: ironia e romantismo. O romantismo é sempre associado à ideia de modernidade, de uma nova visão do autor que consegue ter alguma objectividade dentro da sua própria subjectividade. A ironia romântica nasce dentro dessa mudança literária do século XVIII, de um movimento que reformula a forma de produzir literatura e no próprio modo como o autor, enquanto criador, tende a uma maior capacidade de autocrítica e auto-análise dentro das obras que produz.

(Maria Filomena Morgado = e-dicionário de termos literários)

Continuo amancebado com a ironia. Leio o ensaio “A Ironia Romântica”, de Maria de Lourdes A. Ferraz, e a tese que vou construindo é que estamos perante um fenómeno diacrónico que não se confina ao Romantismo e perdura na nossa contemporaneidade de pós-modernismos e outras coisas que tais.
Leia-se o Garrett das “Viagens” e o Camilo de “A Queda dum Anjo”; leia-se depois Saramago e Mário de Carvalho. Mesmo num romance de Saramago como “A Caverna”, há ironia romântica! Que dizer então de “Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina”, de Mário de Carvalho?
Num trecho deste romance, o autor/narrador convoca a personagem Maria das Dores para uma conversa, criticando-lhe a linguagem desbragada e as infidelidades conjugais que comete. Tendo a personagem reagido mal, o autor/narrador ameaça suprimi-la da história, voltando a escrevê-la desde o princípio sem a sua participação. Maria das Dores não se intimida com a ameaça do seu demiurgo e responde-lhe à letra: –
A cabra puxa sempre para o monte. Mas eu agora não quero falar disso. Acho que era de bom gosto deixar-me a intimidade em paz. Cada um é um.
Já não me lembrava da resposta de Maria das Dores, mas hoje, ao relê-la, senti um grande enternecimento. Ironia romântica e da melhor! A Literatura dá-nos estas satisfações. Difícil é compreender quem possa passar sem ela.

COLÓQUIO SOPHIA


Vou a caminho.
Programa:

segunda-feira, janeiro 24, 2011

BAPTISTA-BASTOS NO DN - mais palavras para quê?

Mário Soares foi o vencedor das eleições. A astúcia e a imaginação do velho estadista permitiram que Fernando Nobre, metáfora de uma humanidade sem ressentimento, lhe servisse às maravilhas para ajustar contas. É a maior jogada política dos últimos tempos. Um pouco maquiavélica. Mas nasce da radical satisfação que Mário Soares tem de si mesmo, e de não gostar de levar desaforo para casa. Removeu Alegre para os fojos e fez com que Cavaco deixasse de ser tema sem se transformar em problema. O algarvio regressa a Belém empurrado pelos acasos da fortuna, pelos equívocos da época, pelo cansaço generalizado dos portugueses e pelos desentendimentos das esquerdas (tomando esta definição com todas as precauções recomendáveis). Vai, também, um pouco sacudido pelo que do seu carácter foi revelado. Cavaco não possui o estofo de um Presidente, nem um estilo que o dissimulasse. Foi o pior primeiro-ministro e o mais inepto Chefe do Estado da democracia. Baço, desajeitado, inculto sem cura, preconceituoso, assaltado por pequenas vinganças e latentes ódios, ele é o representante típico de um Portugal rançoso, supersticioso e ignorante, que tarda em deixar a indolência preguiçosa. Nada fez para ser o que tem sido. Já o escrevi, e repito: foi um incidente à espera de acontecer. Na galeria de presidentes com que, até agora, fomos presenteados, apenas encontro um seu equivalente: Américo Tomás. E, como este, perigoso. Pode praticar malfeitorias? Não duvido. Sobre ser portador daqueles adornos é uma criatura desprovida de convicções, de ideologia, de grandeza e de compaixão. Recupero o lamento de Herculano: "Isto dá vontade de morrer!"
(Baptista-Bastos, DN)

terça-feira, janeiro 18, 2011

OS TEXTOS ROÍDOS

Se a Literatura é – como disse Pedro Tamen – a única História possível do homem, ela é também uma história que se faz de intermináveis histórias, um permanente fazer e desfazer das tramas, como Penélope e o seu manto perante o assédio dos pretendentes.
Agora que se fala muito do Filme do Desassossego, venho de um jantar de amigos em que a autobiografia sem factos de Bernardo Soares – o Livro do Desassossego – foi servida como sobremesa. Entre outros, lemos o fragmento 452 da edição de Richard Zenith, que nos fala do aprendiz de escritório que coleccionava tudo o que pudesse encontrar sobre viagens.
Ia este jovem pelas agências de turismo, pedindo folhetos sobre viagens para Itália, para a Índia e outros lugares; tinha fotografias de barcos e navios, mapas de países e continentes; conhecia as ligações possíveis entre Portugal e a Austrália, entre Portugal e outros pontos do mundo. Diz o narrador que ele era o maior e o mais verdadeiro viajante, pois viajava com a alma e não com o corpo!
Também pelos meus catorze anos viajava desta forma. Como não podia visitar os Campos Elísios de Paris, as margens do Reno ou as ruínas imperiais de Roma, ia pelos balcões do Turismo Francês – na Rua do Ouro –, pela secção de turismo da Embaixada Alemã – que já não sei onde ficava –, e pelo Turismo de Itália (Ente Nazionale per il Turismo) – sediado no Marquês de Pombal –, e recolhia brochuras, mapas e informações sobre aqueles locais, viajando com a alma como o jovem aprendiz do escritório de Bernardo Soares. Uma vez, aí por 1962, fui mesmo à Embaixada de Cuba – que ficava, se não estou em erro, na Rua Pascoal de Melo – e vim de lá carregado de propaganda do novo regime de Fidel de Castro. Grande e revolucionário viajante era eu naquele tempo! Mas passemos adiante, não foram estes detalhes autobiográficos que aqui me trouxeram.
Do rapazinho do Livro do Desassossego fez Mário Cláudio o narrador da novela Boa Noite, Senhor Soares. Diz ele no capítulo V: Empenhava-me em ir recortando dos jornais velhos do patrão Vasques, e das revistas que ele assinava, as ilustrações que mais me atraíam, algumas delas representando os paquetes colossais, ou até mesmo os humildes cargueiros, e enchia com tudo isto, colado a goma arábica, cadernos e cadernos de almaço que guardava em caixas de cartão, e debaixo da cama.
Assim se entrecruzam os fios no manto de Penélope. É a Literatura como autofagia criadora – os textos roídos, como diz Machado de Assis no capítulo XVII de Dom Casmurro – , o desafio dos intertextos e o permanente recontar de histórias – esse canto de sereias que não se extingue e sempre desejamos ouvir. Era sobre isto que me interessava falar, não das minhas remotas experiências de viajar com a alma.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO E IRONIA

Detalhe de Flora na Primavera de Botticelli (c. 1478)
A ironia de género do romance autobiográfico é herdeira da ironia romântica, signo de modernidade cujos efeitos ainda vivemos. Andei hoje à volta do tema – ociosidade própria de quem não tem que picar o ponto e anda relativamente distraído do que vai acontecendo nos mercados financeiros e na campanha eleitoral do país pequenino.
Se me perguntam porque está aí essa imagem, bela como uma Primavera por acontecer, respondo que faz capa na edição francesa dum grande livro: L’ ironie de Vladimir Jankelevitch, com o qual andei amigado no dia que passou.
Em termos estilísticos fala-se muito da ironia pura – que a Retórica consagrou – , da ironia disfemística, da restritiva e da contornante. Meti os olhos em todas elas, mas sem a mesma emoção de quem olha uma mulher bonita num transporte público e espera não a ver descer na paragem seguinte.
Apesar do que já li sobre o assunto, ainda me falta compreender a ironia do amor. Agradeço ensinamentos ou indicação de bibliografia.

terça-feira, janeiro 11, 2011

EXCERTOS (5)

Talvez ele não fosse um sedutor, no sentido clássico do termo. Parecia viver um casamento descolorido, com um conjunto de problemas que o diário sumariamente refere, mas para Flora essa era a forma de sedução que mais lhe dizia, o apelo de partilhar com alguém um mesmo patamar de desencanto amoroso. A verdade é que nunca se deixara atrair pela vulgaridade dos galãs, nunca valorizara em demasia o aspecto físico dos homens nem a forma como se vestiam, indo mais pelos pequenos detalhes que revelam o ser e a alma: um sorriso tímido num cumprimento, a entoação especial duma palavra ou duma sílaba, o movimento das mãos enquanto falam.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

GRANDE ENTREVISTA

Acabo de ver e ouvir a “Grande Entrevista” de Judite de Sousa na RTP 1. Surpreendeu-me o olhar ao mesmo tempo inteligente e incrédulo da jornalista – os olhos abismados sobre a figura parda do entrevistado – , perante as declarações do mais que certo ganhador das eleições presidenciais de 23 Janeiro. Segundo o próprio – o que parece causar-lhe algumas preocupações – , há seiscentos mil desempregados no nosso país, muitos deles, digo eu, beneficiando de subsídios de sobrevivência. No entanto, à data das suas aplicações financeiras na SLN/BPN, era, de acordo com a argumentação apresentada, um “mísero professor” que tinha de olhar pelas suas poupanças . Há uma falta de ética e proporção nas declarações deste senhor que se situam no campo da indignidade. Na Grécia, na Islândia ou na Irlanda nunca seria reeleito. Mas em Portugal, graças a Deus, tudo é possível.

NO DIVÃ

Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inespertas: uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos aquilo que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.

Camilo Castelo Branco (1º Visconde de Correia Botelho) em “A Queda dum Anjo”


- Não há como o divã de Camilo para aliviar a depressão.

terça-feira, janeiro 04, 2011

"MAU TEMPO NO CANAL"

Aí está o canal – um braço de mar que separa a cidade da Horta, ilha do Faial, da ilha do Pico com o seu ápice de neve e o seu anel de nuvens. O mau tempo é metáfora – a Vitorino Nemésio não interessa a meteorologia, antes a vida sofrida do povo e a prosápia das famílias gradas, unidos, apesar de tudo, pela igual condição de ilhéus, permanentes candidatos à diáspora. João de Melo, outro escritor açoriano, fala-nos de gente feliz com lágrimas.
Neste romance, cujo tempo narrativo decorre entre 1917 e 1919, não há luta de classes nem consciência disso. Os grandes senhores amam os seus servidores e estes respeitam-nos como se não pudesse ser de outra forma. Veja-se o desvelo com que é assistido na doença, pelos seus patrões Margarida Dulmo e Roberto Clark, o criado Manuel Bana.
Por isto, e pelo rigor com que nele é traçado o perfil psicológico das personagens – nomeadamente o da protagonista Margarida Dulmo – podemos considerá-lo próximo da estética presencista, embora ele suplante em originalidade e fôlego tudo o que foi feito, em matéria de romance, pelos homens da revista presença.
Vitorino Nemésio, distante e crítico em relação a José Régio, ainda colaborou em dois números da folha de arte e crítica coimbrã. É curioso que em Mau Tempo no Canal utilize a expressão “jogo da cabra-cega” numa acepção idêntica à que lhe deu o poeta de Vila do Conde e Portalegre no seu livro com aquele título: “Na velhacaria do Ladeira entrava um conhecimento quase táctil das coisas, um jogo da cabra-cega feito pelo seguro da mão, curta e rente da rasa” (capítulo “A íris da aranha” de Mau Tempo no Canal).

sábado, dezembro 25, 2010

domingo, dezembro 19, 2010

DEVERES

(Clicar na imagem para aumentar)
Ontem, navegando no ciberespaço, entrei numa página do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em que se me deparou esta informação. Estamos completamente expostos – é difícil que alguém interessado não consiga sempre descobrir alguma coisa daquilo que andamos a fazer.
De qualquer maneira, foi bom, para me lembrar dos deveres. Garanto que não deixarei de entregar em 2011 o número de páginas que Bolonha reclama. Sessenta estão escritas e aprovadas. Já não falta tudo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

EXCERTOS (4)

A primeira vez que falei com o marido de Flora foi numa manhã fria de Janeiro nas instalações do mesmo banco onde dois meses antes eu me encontrara acidentalmente com ela. O homem estava com dificuldades numa operação que tentava efectuar na caixa automática, procurando evitar a fila de espera que se formara para o balcão de atendimento. Ajudei-o, e foi então que me apresentei como tendo conhecido a sua falecida mulher. Olhou-me desconfiado, as sobrancelhas projectadas sobre as armações dos óculos, e eu tive a sensação de ter sido terrivelmente inepto na forma como lhe fizera aquela revelação.
Concluída a operação, olhou-me como quem procura perceber as minhas intenções – os lábios finos, de cujos cantos irradiavam umas lastimosas comissuras, nervosamente cerrados. Saí do banco com ele, acompanhando-o em conversa de ocasião ao longo da avenida que ia descendo a caminho da sua casa.
Lembro-me de que estávamos no período duma campanha eleitoral qualquer. Passava pela avenida um carro com instalação sonora que debitava decibéis de confiança na nação e nos candidatos a seus representantes. À medida que fomos caminhando, percebia que o homem se descontraía, avançando num diálogo que apesar de tímido me parecia isento de qualquer reserva. Assim, quando passámos à porta do café foi de comum acordo que entrámos e nos sentámos numa mesa.
Disse-me que vivia sozinho há dois anos e meio, desde que tomara a iniciativa de sair de casa. Primeiro, durante alguns meses, fora viver para uma casa de porteira dum prédio vizinho, um desses minúsculos apartamentos que existem no último piso dos edifícios, uma espécie de mansardas viradas para o declive dos telhados; depois para um apartamento desafogado que foi mobilando a seu gosto. Foi breve a nossa conversa dessa manhã, mas voltámo-nos a encontrar uns dias mais tarde, e aí já longamente falámos de diversos assuntos e também da nossa situação comum que era a de ambos nos encontrarmos a viver sozinhos, eu separado da minha mulher, ele numa espécie de viuvez .
Omiti o facto de ter em meu poder o diário de Flora. Eu não podia informá-lo da sua existência sem perceber com que tipo de pessoa estava a lidar, que constituição psicológica era a sua, se aguentaria as revelações nele contidas. Tinha-o visto muito choroso, completamente de rastos, no funeral da ex-mulher. Não queria causar-lhe maior dor, embora me custasse guardar um escrito que não me pertencia e do qual, até pela sua forma de enunciação, ele era o único destinatário.

domingo, dezembro 05, 2010

RAUL BRANDÃO E O GABIRU

Raul Brandão com a esposa, D. Maria Angelina - retrato de Columbano

Este homem tinha mulher, uma casa no campo, fazia a vindima e vendia o seu vinho como qualquer proprietário rural. Na correspondência com Teixeira de Pascoaes – que também era produtor –, há avisos sobre este negócio incerto, sempre sujeito às oscilações do mercado e às suas obscuras regras: Olhe que o vinho, com grande admiração minha – e porque neste país nunca há lógica – está a subir! Eu fiz a asneira de vender o meu por 600,000 réis – mas o meu caseiro já o vendeu por 720,000 e vizinhos por 900,000!!! É uma febre. Porquê não percebo! Acautele-se.
Em “Húmus”, porém, não é o vitivinicultor que fala, mas o homem esmagado pelo mistério da vida e da morte, pela presença ou pela ausência de Deus, pelo sentido último das coisas. Não há na literatura portuguesa outro livro como este – um misto de novela, diário e reflexão filosófica, um painel de inquietantes personagens de onde se destaca o Gabiru.
O Gabiru não é como as velhas D. Penarícia, D. Leocádia ou D. Biblioteca que moem vidas mesquinhas timbradas de invejas e aleivosias. O Gabiru mistura, resolve, extrai sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente.
“Húmus” é o livro de um eu dividido e a consciência disso. O Gabiru é a descoberta do outro, o estilhaçamento de um ser – como na heteronímia pessoana ou no eu múltiplo de Régio.
Todos somos legião, todos estamos cheios de Gabirus capazes do melhor e do pior. A dificuldade, às vezes, é descobri-lo.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

EXCERTOS (3)

Estava-se em 1975, corriam no ar os frescos eflúvios da liberdade. Flora seguia essa onda em que se descobria mais verdadeira e mais mulher. Vibrava com os lances revolucionários que se jogavam nas ruas em manifestações e comícios, acreditando que a vida e o amor eram coisas belas, tão belas como um voo de gaivota ou um dia de chuva com arco-íris. Como podia amarrar-se a um casamento com alguém que já não amava? Consumada a ruptura, foi com o seu novo amor que participou pela primeira vez na manifestação do 1º de Maio, em 1976, e a partir daí não mais deixou de descer à rua no dia da festa dos trabalhadores.
Do então namorado e futuro marido (passaram a viver juntos a partir de Fevereiro de 1977), há referências no diário aos estudos que ambos faziam em cursos nocturnos: ele na universidade, ela na escola secundária onde tirava o décimo segundo ano.
Antes de terem arranjado casa, encontravam-se ao final da tarde no apartamento dum amigo que se ausentara para França, num terceiro andar de um vetusto prédio do Alto de Santa Catarina. Naquela altura ainda estava por escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e a história dos amores dum poeta com uma criada de hotel – amores também daqueles lugares, com o Adamastor ao lado e o Tejo ao fundo. De amor eram os encontros de Flora com o namorado – aparecem agora em livro, está visto que já não há nada de novo para contar.
Ela achava-o um homem sensual, e era delicada e terna quando iam para a cama. Porém, por volta de 1980, num dos seus primeiros momentos de desencanto, o coração já falava outra língua. Página vinte e dois do diário:

Não foi paixão. Não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Porque estava fragilizada, cegou-me a tua luz, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Como o náufrago que vê passar uma tábua à tona de água, Flora tê-la-á agarrado à espera de ver chegar o barco salva-vidas. Nenhum náufrago, se tiver sorte, fica pela tábua de salvação. Ela é um meio, e não um fim. A enganadora paixão de Flora foi um meio de se libertar de um grande mal que lhe oprimia o coração.