terça-feira, março 08, 2011

O ROMANCE E O REAL

Tentava escrever um ensaio sobre o roman à clef[1] na literatura portuguesa da segunda metade do século XX. Tinha presente Os Meninos de Ouro de Agustina e deu consigo a pensar: quem é este José Matildes? E Farina, leitor de Swift, quem é esta figura de intelectual que andou por aí a dar o sopro da vida a um partido político? Não tinha a certeza de Farina ser uma representação do autor d’ A Torre da Barbela, tampouco Matildes o liberal que na Assembleia Nacional marcelista foi promessa de liberdades, homem providencial sem o ser, caudilho espúrio, malogrado líder caído sobre o casario de Camarate como um Ícaro de sombra. Sentia-se confuso, acometido de uma grande falta de vontade, as ideias fugindo-lhe da cabeça como pássaros de uma gaiola aberta. E procrastinava.
Nesta indecisão, resolveu não escrever o ensaio, mas o primeiro capítulo de um roman à clef: curava a ferida de cão com o pelo[2] do cão! Mas seria capaz de escrever os sucessivos capítulos de tal romance? Pelo que de si conhecia, a coisa ficaria talvez por uma novela, se calhar por um simples conto…
O conto é um género difícil, dissera-lhe uma vez um poeta. Precisa-se de muita concisão, muita agudeza de espírito para acertar no coração da narrativa. O poeta esforçava-se por o convencer, usava metáforas breves que lhe soavam a dísticos ou a haicai japoneses, mas ele não acreditava. Porque os grandes ficcionistas pouco ligam ao conto, escrevem as suas obras em centenas de páginas, a pluma rasando as resmas com as suas marcas de fogo, talvez apenas de tinta, não vale a pena tanto exagero: veja-se o Proust da Recherche, o Tolstoi da Guerra e Paz, o Durrel do Quarteto de Alexandria.
Faça-se deste poeta uma personagem à clef! Era um homem alto, os fatos de bom corte, a fala com um sotaque ilhéu que cheirava a mar e a búzios rumorejantes. Amava a poesia como se ama uma mulher desleal, dessas que dizem meias verdades e fazem versos aos amantes:

És o meu Sol que só se abre de vez em quando.
Vivo na penumbra dum sentimento
que não sei qual é.[3]

(Outra personagem à clef!)
A poesia é desleal, como toda a arte é desleal. Apetece pensar que foi Rimbaud que o disse, mas se calhar não foi. O que Rimbaud disse, ou escreveu, sim, parece que escreveu, em carta ao seu antigo professor Georges Izambard, foi je est un autre, frase gramaticalmente errada mas poeticamente certa, e que é talvez a melhor prova da deslealdade da arte. Da das mulheres nem vale a pena falar, só comparável à deslealdade dos homens!
Não escreveu o ensaio nem começou o romance. Sobreveio-lhe um grande desejo de dormir, de ver planícies de sonho e prados carregados de bruma. Quando deu por si estava do outro lado da vida, a cavalo numa dose exagerada de tranquilizantes.
O psiquiatra, que nunca lera Freud, estranhou a sua falta à sessão e ligou-lhe por mera rotina clínica. Ninguém atendeu. Que pena, logo agora que tinha decifrado mais uma personagem do roman à clef.



[1] “Romance com chave” – romance em que as personagens, tiradas do real, são apresentadas com outro nome, mas conservando os seus traços comportamentais e características físicas.
[2] Segundo as novas regras ortográficas, deixa de ter acento.
[3] Versos lidos num sonho.

2 comentários:

Ricardo António Alves disse...

E não há nome para esse poeta à clef?

Manuel Nunes disse...

Fica inominado, que é uma forma de se lhe dar nome. N' "A Confissão de Lúcio", Mário de Sá-Carneiro chamou Gervásio Vila-Nova ao pintor Guilherme Santa-Rita. Teria eu que arranjar um nome como Belindo ou Clarindo? Não vou nisso, seria excessivo.